Orquestrar futuros no Instituto Baccarelli

01/12/2025

Compartilhe:

Diretor executivo do Instituto Baccarelli, maestro Edilson Ventureli reflete sobre o papel da música como ferramenta de transformação

Leia a edição de Dezembro/25 da Revista E na íntegra

POR LUCIANA ONCKEN
FOTOS NILTON FUKUDA

A iniciativa de levar música de concerto para a comunidade de Heliópolis, na zona Sul de São Paulo (SP), partiu do maestro Silvio Baccarelli (1931- 2019), em 1996, logo após um incêndio de grandes proporções na região. Movido pelo desejo de oferecer algum conforto à população naquele momento de dor, Baccarelli criou um projeto que, no começo, atendia pouco mais de 30 crianças. O que ele talvez não imaginasse era que essa semente  se tornaria o Instituto Baccarelli, uma referência mundial de transformação social por meio da música. Felizmente,  o maestro teve a oportunidade de ver boa parte desse caminho se concretizar diante dos seus olhos antes de falecer, em 2019.

Nos primeiros anos, as crianças participantes eram levadas até a sede da empresa de Baccarelli, na Vila Clementino, também na zona Sul da cidade, para aulas de música. Hoje, quase três décadas depois, o movimento se inverte: com cerca de 1,6 mil alunos atendidos dentro de Heliópolis, o instituto dá um novo passo e se prepara para a inauguração do Teatro Baccarelli. Será a primeira casa de concertos no mundo, de padrão internacional, construída numa favela. Um marco simbólico e poderoso de inclusão social, que convida o público a atravessar os muros do preconceito e viver a cultura no território.

A Orquestra Sinfônica de Heliópolis, fruto dessa iniciativa do Instituto, já se apresentou nas principais casas de concerto do mundo e consolidou-se como símbolo de excelência musical. Além disso, o Instituto expandiu sua atuação para além da música, assumindo a gestão de 12 CEUs (Centros Educacionais Unificados). Criou também um restaurante-escola que forma e emprega mulheres da comunidade, além do Teatro Bacarelli, primeira sala de concertos do mundo construída dentro de uma comunidade, inaugurada em novembro. Quem narra essa trajetória com orgulho é o maestro Edilson Ventureli, diretor executivo do Instituto Baccarelli, à frente da gestão da iniciativa há mais de 25 anos.  Nesta Entrevista, ele conta como testemunhou e fez parte dessa transformação desde a adolescência, aos 13 anos, assumindo a gestão do instituto em 1998, e reflete sobre como uma ação individual pode gerar um impacto coletivo.

No começo, as crianças saíam de Heliópolis para estudar música no Instituto Baccarelli, na Vila Clementino. Agora, a cidade é convidada a entrar na comunidade, com a inauguração do Teatro Bacarelli. Como estão as expectativas para essa nova fase da história do Instituto?
Esse teatro é um sonho antigo. Quando começamos a desenhar o projeto da sede, em 2005, ele já fazia parte da visão do que queríamos construir. Em 2009, conseguimos inaugurar esse prédio onde estamos. Em 2013, o prédio ao lado. E agora, estamos finalizando o complexo com a construção do teatro, unindo todos esses espaços em um mesmo conjunto arquitetônico e simbólico. Ele é o coroamento de uma história de insistência, planejamento e, acima de tudo, propósito. A obra começou no ano passado e percebemos que aquele sonho de 2005 já estava defasado. Tivemos que revisar tudo, até os materiais e os acabamentos. O projeto acústico sempre foi muito bem pensado. Costumo dizer que somos meio “metidos” aqui na favela. Quem está cuidando disso é o mesmo escritório que fez a Sala São Paulo, a Sala Minas, o Teatro Cultura Artística. Só que, de 2005 para cá, o mundo mudou. Outras salas foram construídas, os materiais evoluíram, os parâmetros de excelência aumentaram. Então, mesmo mantendo as dimensões do espaço, por conta das fundações já feitas, repensamos todo o interior.  Por exemplo, no projeto original a plateia era toda em granilite. Eu disse:  quero madeira, não só pela acústica, mas pelo calor que ela transmite. A madeira acolhe. É aconchegante. Eu quero que, ao entrar aqui, o público sinta o mesmo que sente ao entrar na Sala São Paulo ou no Cultura Artística, porque Heliópolis merece uma sala de concertos de padrão internacional. 

E o que esse teatro representa para Heliópolis?
É muito simbólico esse movimento se inverter agora. Lá atrás, ouvi de vários colegas do meio da música clássica: “Vocês querem transformar música de concerto em coisa de favela?” Pois é. Conseguimos. E com a inauguração do nosso teatro, isso se torna literal. Vai ser a primeira sala de concertos no mundo, de nível internacional, construída dentro de uma favela. E não é só para a nossa programação. Eu quero que grupos nacionais e internacionais venham se apresentar aqui. Já conversei com o governador, com o prefeito, e vou continuar conversando: quero que os corpos artísticos oficiais também venham. Porque isso muda a lógica da cultura. Não basta só levar quem está na favela para fora, é preciso trazer quem está fora, pessoas com poder político, econômico, de decisão, para dentro. Para conhecer, para entender, para participar. Isso é inclusão social de verdade. Quando essas pessoas conhecem o território, podem pensar políticas públicas mais eficazes, podem tomar decisões que realmente impactem a realidade de quem está aqui. A gente vai continuar tendo desigualdade, claro, mas não precisa ser tão abissal. A gente está em uma favela onde pessoas passam fome e não dá para pensar em um mundo melhor e seguro enquanto as pessoas não conseguirem pôr comida na mesa para alimentar seus filhos. 

A história do Instituto tem início com uma visão do maestro Silvio Baccarelli, e começou com 36 crianças matriculadas no ensino de música. Como você enxerga esse primeiro passo do maestro e o impacto que teve?
Essa é, para mim, a maior herança que o maestro deixou: a capacidade de transformar indignação em ação. A maioria das pessoas se sensibiliza com a dor do outro, e a gente vê isso o tempo todo. Quando alguém passa por uma pessoa dormindo na rua ou por famílias inteiras morando na rua, principalmente depois da pandemia, sente que aquilo não deveria estar acontecendo. Mas aí vem o bloqueio: achamos que só vale agir se for para fazer algo grandioso. Então, não fazemos nada. O maestro fez o oposto. Ele viu a tragédia em Heliópolis, se comoveu, mas, ao invés de parar no sentimento, ele se perguntou: “o que eu posso fazer com o que eu tenho?” E a resposta foi simples e poderosa: “sei música, então vou ensinar música”. Começou com 36 crianças. Se ele tivesse esperado por uma grande estrutura, financiamento e equipe, talvez não tivesse começado nunca. E o mais bonito é que ele não saiu da área dele e, sim, ofereceu o que já sabia fazer com o que tinha à disposição.

Edilson Ventureli considera o Instituto Bacarelli como uma missão de vida, confiada a ele pelo maestro Silvio Baccarelli.

Como foi esse primeiro período?
Quando ele começou o projeto em Heliópolis, ele bancava tudo, dentro das próprias possibilidades. Aos poucos, mais gente foi chegando, contribuindo, fortalecendo. Muita gente passou ao longo desses anos, alguns ficaram, outros seguiram outros caminhos, mas todos deixaram sua marca. Como eu sempre digo: todas as honras a ele. Porque se ele não tivesse dado o primeiro passo, nenhum de nós teria dado o segundo. E tem coisas que parecem mesmo guiadas por outra força. Eu sempre conto que, naquela época, quando ele subiu a Estrada das Lágrimas e parou na primeira escola pública para começar o projeto, o patrono da escola era ninguém menos que Gonzaguinha (1945-1991). Uma escola pública, na favela, com um músico como patrono. Parece pouco, mas para mim é simbólico. São sinais. Às vezes a gente executa aqui na Terra algo que foi pensado em outra dimensão. O importante é estar disponível, com o coração aberto para fazer acontecer. E o maestro estava. E continua, em tudo que a gente constrói.

E como aconteceu a virada de chave, a constatação de que as atividades deveriam ser desenvolvidas dentro da comunidade?
As atividades aconteciam na empresa de casamento do maestro na Vila Clementino. Alugávamos um ônibus que buscava as crianças e as trazia de volta. Começamos a perceber que gastávamos mais tempo no trajeto do que nas atividades. Percebemos que precisávamos estar aqui dentro. E foi quando a gente começou a tentar vir para cá, porque percebemos que a gente podia fazer mais, e de uma forma melhor para a garotada, se estivéssemos dentro da comunidade. A gente, como sociedade, ainda carrega muito preconceito com a favela. Acha que é lugar de gente ruim, perigosa. E nós mesmos, quando começamos aqui, também fomos atravessados por esse olhar. Quando projetamos esse prédio, por exemplo, pensamos em uma porta blindada: “precisamos proteger isso”. Mas o tempo mostrou que não precisava, porque aqui dentro há muito respeito por esse trabalho. Nunca perdemos um instrumento. Os instrumentos vão para a casa dos alunos, ficam com crianças, jovens, famílias. E se, por algum motivo, alguém precisar ir embora, eles vêm e devolvem. A verdade é que a gente não vivenciava a favela, a gente não entendia o que ela era de verdade. Favela é lugar de gente boa. De gente solidária. E eu costumo dizer que quem melhor sabe conjugar o verbo “ajudar” é quem já precisou ser ajudado.

O que responde a colegas que mantém uma visão de que música de concerto não cabe dentro desse universo? Esse preconceito mudou?
Hoje, felizmente, tem muitos projetos sociais que usam a música como ferramenta de transformação social espalhados pelo mundo. Projetos sociais que são celeiros das grandes orquestras. Por exemplo, o Theatro Municipal de São Paulo tem 102 músicos. Nove deles são daqui, saíram do Baccarelli, de Heliópolis. Tem oito na Filarmônica de Minas Gerais, na Orquestra Nacional do Chile, na Orquestra da Dinamarca. Sem contar, pelo Brasil: Bahia, Pernambuco, Fortaleza, Rio Grande do Sul, Paraná. Todos esses lugares têm gente nossa. Fora aqueles que estão aí pelo mundo, concluindo seus estudos. A gente tem um menino que foi aprovado, recentemente, como músico profissional da Orquestra de Lyon, na França. Então, eu acho que hoje, no mundo da música clássica, não existe mais esse preconceito. Lá atrás foi bem difícil, a gente não conseguia se apresentar. Os teatros não abriam data para a gente. Era difícil, mas a gente é muito guerreiro e nasceu para quebrar paradigmas. 

Há uma inovação, em muitos aspectos, no trabalho da orquestra. Ela vai além desse diálogo entre diferentes gêneros musicais?
Fomos a primeira orquestra brasileira a adotar vestidos coloridos para as mulheres, desafiando a tradição do preto no mundo da música clássica. No início, houve resistência, pois a mente coletiva do músico clássico associava a seriedade ao preto. Demorei a convencê-las, mas, em determinado momento, precisei decidir. A recepção no primeiro concerto foi tão positiva que elas se sentiram felizes e abraçaram a ideia. Hoje, não preciso mais insistir, e outras orquestras no Brasil já se inspiram em nossa iniciativa. As cores trazem mais beleza, mais alegria, quebram a sisudez. Eu falo sempre que podemos continuar apresentando as mesmas obras de 300 anos atrás, tocar Beethoven (1770-1827), posso e devo, mas podemos entregá-‑las em um “pacote diferente”, em um embrulho mais atual. É exatamente isso que buscamos com nossas experiências.

Na prática, como a música se tornou uma ferramenta de transformação social no Instituto?
Nós atendemos 1,6 mil alunos aqui na sede do Baccarelli e você pode me perguntar: “Todos se tornarão músicos?”. Com certeza, não. Mas tenho outra certeza: 100% deles se tornarão pessoas melhores. É isso que buscamos em nosso trabalho. Nós temos um time de professores aqui de excelência. Caso o menino ou a menina queira ser um musicista profissional, a educação que a gente fornece aqui conduz a esse caminho. A música desenvolve habilidades muito legais. Quando a gente se apresenta, seja em um ensaio aberto para os pais, recebendo uma visita ou num grande palco, as pessoas nos aplaudem. Nosso esforço é reconhecido. O reconhecimento é algo poderoso. Isso mostra que somos potentes, talentosos, que podemos ser o que quisermos. Podemos acreditar em nós mesmos, e esse é o principal que a gente promove aqui. Para isso, a música é muito eficiente.

“Nunca perdemos um instrumento. Os instrumentos vão para a casa dos alunos, ficam com crianças, jovens, famílias. E se, por algum motivo, alguém precisar ir embora, eles vêm e devolvem”, conta Edilson Venturelli.

Além desse benefício individual, de que forma esse trabalho impacta o coletivo?
Além do reconhecimento, a música desenvolve habilidades essenciais para atuar coletivamente. Nossas crianças aprendem a trabalhar para o conjunto. Numa orquestra, eu toco para que o seu solo brilhe, e depois a música inverte os papéis e você oferece o seu melhor para que eu me destaque. Como a gente costuma dizer, no nosso universo, como músicos, artistas, estamos numa constelação de estrelas. Quando tem uma só estrela no céu, ninguém olha para o céu. Aqui, a gente aprende que quanto mais pessoas brilham ao seu lado, mais você brilha. O brilho da minha estrela vai para você, volta para mim, e a gente se une, se soma, e consegue muito mais. Trabalhamos concentração, foco, disciplina. Nós, músicos de orquestra, somos como atletas de alta performance. São duas, três horas de ensaio. O negócio é tão intenso, estou sempre tentando me superar, sempre oferecendo o meu melhor som, a minha melhor afinação, a melhor audição. Você sai de um ensaio mentalmente cansado. E é uma competição consigo mesmo e não com o outro. Com o outro, é parceria.  É isso que a gente desenvolve.

Quando tem uma só estrela no céu, ninguém olha para o céu. Aqui, a gente aprende que quanto mais pessoas brilham ao seu lado, mais você brilha.

Como deram esse passo de assumir a gestão de 12 unidades dos CEUs? 
Foi parte de um sonho que toda instituição do terceiro setor, que ganha maturidade, tem: se tornar uma política pública. Em determinado momento, entendemos que precisávamos ampliar nosso alcance e estar em outros territórios. Mudamos nosso ordenamento jurídico, nosso estatuto. Hoje, somos uma organização da sociedade civil, o que nos permite fazer parcerias com governos. Em 2021, houve quatro editais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para o gerenciamento de 12 unidades dos CEUs (Centro Educacional Unificado) e resolvemos participar. Lembro que a publicação no Diário Oficial saiu num sábado. Acordo muito cedo e, logo no início da manhã, vi que tínhamos vencido os quatro editais. Eu fiquei mudo. De apenas uma sede, passamos a ter, de repente, 13 sedes para cuidar. Não foi um crescimento progressivo, demos um salto muito grande. Hoje, estamos presentes em outras 12 regiões da cidade de São Paulo por meio dos CEUs, e oito desses estão em regiões de favela. Logo que assumimos a gestão, pedi aos gerentes de unidade, que contratamos às pressas, a mapear todas as lideranças do território e chamá-‑las para um bate-papo. Fui surpreendido positivamente ao ver como fomos bem recebidos por já virmos de uma favela, e da maior favela de São Paulo. Não éramos estranhos.

Diante de tudo o que construiu, como você avalia sua própria trajetória? Consegue se enxergar em outro lugar que não seja aqui?
Aqui é a minha vida, aqui é a minha missão. Um jornalista, há alguns anos, me perguntou onde eu via o Instituto daqui a dez anos, e eu respondi tranquilamente. Então, ele me perguntou onde eu me via daqui a dez anos. Eu nunca tinha me feito essa pergunta, mas eu pensei um pouquinho e respondi para ele: eu não me vejo, eu já estou. E é fato. Assim, não existe proposta, não existe nada que possa acontecer que me tire daqui. Eu falo para a turma que eles estão perdidos, porque eu vou viver mais de 100 anos e eu vou viver aqui. Eu não sou o maestro hoje que eu era há três anos. Hoje, por exemplo, eu pouco rejo programas de música clássica, de música erudita que exigem muita preparação, muito tempo dedicado. Não tenho esse tempo. Tenho que sentar na cadeira onde o Instituto mais precisa. E hoje é como gestor. Eu me sinto plenamente realizado, amo o que eu faço. A gestão dos CEUs foi o nosso grande desafio nos últimos três anos, mas a minha sala, a minha mesa, a minha cadeira continua aqui em Heliópolis, eu nunca saí daqui. Mesmo durante a pandemia, uma coisa tão louca, que mesmo com tudo fechado, eu vinha para cá e ficava sozinho. Eu precisava estar aqui, sentir a energia, respirar esse espaço. Estar aqui é a missão que o mestre Baccarelli me deixou. Eu sou o filho que ele não teve em vida e entendo que essa é a missão que ele me confiou. Vou honrar até o final da minha vida.

Assista a trechos da Entrevista com o maestro Edilson Ventureli, realizada no Instituto Bacarelli, em julho de 2025.

A EDIÇÃO DE DEZEMBRO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de DEZEMBRO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.