A música como combustível da vida. Por Mauro Ferreira
Mauro Ferreira é crítico musical carioca, fã de cantoras, mas escreve sobre discos brasileiros de todos os ritmos e tons. Colecionador de CDs iniciou sua carreira profissional em 1987, ainda universitário, assinando a página de música do jornal “O Municipal”. No ano seguinte, trabalhou no jornal “Adiante”. Atuou como repórter e crítico musical do “Segundo Caderno” do jornal “O Globo”, como editor de música do jornal “O Dia” e também no site imusica. Criador do blog Notas Musicais é também colaborador fixo da revista Rolling Stone desde 2007. Em 2012, lançou seu primeiro livro na área musical, Cantadas — A sedução da voz feminina em 25 anos de jornalismo musical. Atualmente mantém o seu blog na seção Pop & Arte no G1.
Ilustrações por Heloisa Etelvina, artista gráfica graduada em Gravura pela Escola de Belas Artes da UFMG com mestrado em Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Desde 2005, trabalha com experimentações gráficas utilizando-se de um pequeno acervo tipográfico. Participou de exposições de arte nacionais e internacionais. Garimpando ornamentos de gráficas antigas até ferro-velhos, incorpora as falhas e o improviso para criar estampas e desenhos únicos, ricos em detalhes. Utiliza da linguagem da gravura para construir imagens. www.heloisaetelvina.com
“Música é perfume.” Proferida pela cantora baiana Maria Bethânia, a sentença explicita o caráter sensorial embutido na arte e na memória musical. No jogo aparentemente ilógico da memória, a música também deixa aromas, sensações, impressões que um ser humano pode carregar por toda a vida a partir de uma canção. “Há canções e há momentos” — já disse o poeta mineiro Fernando Brant (1946–2015) numa composição feita com seu parceiro Milton Nascimento e gravada pela própria Bethânia em 1986.
As junções de canções com momentos da vida de um ser humano formam um memorial musical que o indivíduo armazena sem perceber. Esse memorial aciona sentimentos sempre que tais canções lhe vêm à mente: pode ser o acalanto com que sua mãe o embalou ainda bebê, pode ser a canção ouvida na trilha sonora do programa de TV preferido da infância ou a música que tocava na hora do primeiro beijo furtivo da adolescência. Somatório de escolhas, trilhas e afetos vividos ao longo de sua existência, o ser humano encontra na música uma poderosa aliada para que fatos e sentimentos importantes não se percam nos escaninhos e caminhos embaralhados da memória.
Talvez a vida sem música não fosse um erro, como argumentou o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844–1900). Mas certamente seria mais complicado de fazer sentido do jogo de erros e acertos da memória sem a música, porque a música tem o poder de dar vida a um instante fugaz, de eternizar na memória um momento de celebração e — talvez o mais importante — de despertar sensações e sentimentos na alma humana. Um manancial de emoções armazenadas fica guardado na memória psíquica de cada ser humano — memória que é individual, única. Os aromas da memória musical de um indivíduo nunca serão exatamente os mesmos das lembranças sonoras de outro ser humano.
Dentro desse quadro, a música parece indissociável da existência humana, e é possível concluir que não existe uma memória sem uma trilha sonora. E como a música está diretamente conectada aos sentimentos, por vezes pouco pode importar a riqueza ou pobreza de sua arquitetura melódica e/ou poética. Uma canção de formato simplório, por exemplo, pode significar muito para um casal de refinada educação musical caso essa canção esteja voluntária ou involuntariamente ligada a um momento feliz e fundamental da vida desse casal.
O poder da música é tamanho que em 2015, cientistas divulgaram relatos de estudos sinalizando que a audição cotidiana de música clássica — para muitos, a forma mais superior de música — pode ajudar a prevenir doenças neurológicas de caráter degenerativo que comprometeriam mais tarde as funções do cérebro e, por consequência, da memória. Contudo, cientistas trabalham com a razão, enquanto a música surte efeito primordial na emoção do indivíduo — ainda que ela, a música, também possa ser analisada de forma fria e racional.
Na vida cotidiana, o Homem normalmente abdica da razão em favor do prazer de ouvir música, e esta, sobretudo a música popular, pode ser também um fator de união entre indivíduos pertencentes a classes sociais similares. Exemplo desse fator de união encontra-se na MPB, a sigla criada e propagada em 1965 — no ano inicial da era dos festivais da canção que inflamaram a segunda metade dos anos 1960 — para designar a Música Popular Brasileira. A MPB é a trilha sonora residente na memória de um círculo social específico, de formação urbana e universitária, que vivenciou esse tipo de música na década de 1960 e ao longo de todos os anos 1970. A MPB não foi a trilha sonora de todo o Brasil, como o significado de sua sigla — atualmente já datada e com pouca expressão na produção musical nacional — quer fazer crer, mas de um povo que comungou de ideais comuns numa determinada época. Para esse povo, as canções politizadas do compositor carioca Chico Buarque, para citar somente um exemplo de ídolo associado à MPB, podem ainda residir na memória afetiva como a trilha de tempos de resistência a um regime ditatorial. Para outras camadas sociais, no entanto, tais canções podem pouco ou nada significar, pois não foram vivenciadas por essas pessoas.
A música tem o poder de convergir sonhos e memórias de uma determinada época. Mas a formação musical de uma determinada tribo ou classe social pode também ser um fator de desunião com a criação de guetos e nichos, como se observa atualmente no mercado musical brasileiro. Expressiva parcela da juventude que cultua o funk — música preferencial na trilha sonora das favelas — pode ser ignorada ou até mesmo rechaçada por segmentos populacionais que consomem outro tipo de música, como o sertanejo pop que domina as paradas com sua produção massiva, feita em escala industrial para atender a grande demanda.
Nesse sentido, a memória musical pode ser um fator de desunião quando não há traços mínimos em comuns. Contudo, qualquer que seja o ritmo, todo ser humano tem sua memória musical, tem a chamada trilha sonora de sua vida. Funkeiros, sertanejos, sambistas, forrozeiros irmanam-se quando a audição de uma determinada música lhes desperta uma sensação boa (como a felicidade romantizada da infância) ou ruim (como o término de um romance, por exemplo).
Mesmo que a memória transforme no futuro determinada canção na lembrança desagradável de um momento infeliz, a música está associada em tese ao princípio do prazer. Ouve-se música no dia a dia para ter prazer, para proporcionar alegria a si próprio — e aos outros, no caso de uma festa que tem sua trilha sonora arquitetada pelo anfitrião — e para viver bem. Se a música no futuro será reprocessada pela memória como uma reminiscência dissociada do prazer, isso somente o tempo poderá dizer. No momento presente, música é vida, é o alimento que nutrirá a memória de sensações e sentimentos mais ou menos prazerosos.
Combustível de emoções entranhadas na memória, a música pode ser também um prazer útil pelo poder terapêutico de acalmar indivíduos nervosos, de estabilizar bebês em agitação e de aliviar o sofrimento de doentes justamente por acionar sentimentos embutidos na memória. Música é perfume, como entende Maria Bethânia. E cada indivíduo guarda na memória, mesmo que de forma subconsciente, os aromas e sentimentos da trilha sonora de sua vida. Acionar somente os cheiros e sentimentos bons é uma questão de sensibilidade, de exercício cotidiano da memória.
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