
Em mais de seis décadas de carreira, ator e diretor Antônio Pitanga divide suas histórias enquanto celebra a beleza do agora
Por Lucas Rolfsen
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A atuação de Antônio Pitanga no longa-metragem Bahia de Todos os Santos (dirigido por Trigueirinho Neto, 1960) não foi apenas uma ocasião para o artista firmar uma parceria inesquecível com Glauber Rocha (1939-1981), que conheceu nos bastidores das filmagens, dando início à sua participação no movimento Cinema Novo, nas décadas de 1960 e 1970. Foi também com esse trabalho que Antônio Luiz Sampaio adotou seu sobrenome artístico, assumindo o nome de seu personagem no longa.
Ator e diretor, Pitanga atravessou sua carreira de mais de 65 anos como um artista indissociável da história cultural brasileira. No cinema, trabalhou em obras como Os fuzis (Rui Guerra, 1964), Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006) e Oeste outra vez (Érico Rassi, 2024). Atrás das câmeras, dirigiu os longas Na boca do mundo (1979) e Malês (2024), título que marca seu retorno à direção após um hiato de mais de quatro décadas. Na televisão, atuou em dramaturgias desde os anos 1960, tendo integrado o elenco de telenovelas como A próxima vítima (1995), O clone (2001) e Celebridade (2003). Em 2019, sua jornada foi celebrada no Carnaval do Rio de Janeiro, no enredo Antônio Pitanga, um negro em movimento, da escola de samba Unidos do Porto da Pedra.
Como condensar a trajetória desse griô de 86 anos, nascido em Salvador (BA), no Pelourinho? “Não sou o dono da verdade, sou um mensageiro, tenho uma missão. O maior e mais importante aprendizado é jamais perder minha ancestralidade”, apresenta-se. “Continuo de pé, acreditando na força, no olhar, e na labuta, produzindo, trabalhando”, pontua o artista.
Neste Depoimento, Pitanga fala sobre sua vida em Salvador, as dificuldades de lidar com o mundo que se apresentava, suas visões e os caminhos que fizeram dele uma figura fundamental no audiovisual brasileiro. “Jamais me empolguei pela vitrine da sedução. Como lutador, a capoeira do Pastinha [Vicente Ferreira Pastinha, conhecido como Mestre Pastinha (1889-1981)] me serviu. Jogar bola três vezes por semana, ler, estar perto da minha história, isso é a coisa mais importante para me manter vivo”, destaca.
Sou filho de Maria da Natividade, uma mulher neta de um homem escravizado. Aos 12 anos, ela já era empregada doméstica. Quem nasce no Pelourinho, na Bahia, não nasce por acaso: até para me batizar, foi difícil. Minha mãe me batiza na única igreja construída pelos negros: a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos [criada em 1709]. Me colocou muito jovem na Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, dos dez aos 15 anos. Saí munido de todas as profissões que você possa imaginar: marceneiro, carpinteiro, alfaiate. Aprendi linotipia, além de estudar e me formar no colegial. Fiz um concurso para o Telégrafo Inglês [The Western Telegraph Company]. Essa formação foi me dando estrutura e possibilidade para que fosse alguém.
Me acho sempre inaugurador de amigos: Othon Bastos, Helena Ignez, João Augusto [João Augusto Azevedo Filho, autor, ator e diretor teatral (1928-1979)]. Vindo do trabalho [na Western] para casa, vi atores se movimentando em um clube onde negro não entrava. Esse universo me fascinou. Sem poder entrar, essa aproximação aconteceu esperando eles saírem [do clube]. Criou-se uma amizade, e fui convidado para o teste do filme Bahia de Todos os Santos, em 1958, para ser o [personagem] Pitanga. Nasce aí o Pitanga.
O longa Bahia de Todos os Santos desencadeia o Cinema Novo: Glauber vai entrevistar o Trigueirinho, e surge uma amizade entre Glauber e eu, que me faz a pergunta clássica: “Você quer ser ator?”. Eu poderia ter dito: “Já sou ator, estou trabalhando”, mas falei: “Quero sim”. [Glauber disse]: “Você tem que fazer teatro”. Respondi que teatro era para rico, teatro era de tarde. Morava em pensão, minha mãe tinha acabado de morrer. Ele me levou para a casa da família [e me apresentou] à Dona Lúcia [Lúcia Mendes de Andrade Rocha (1919-2014)], ao pai, Adamastor, à irmã Anecy Rocha e à mulher, Helena Ignez. Isso tudo, para que eu tivesse garantida a refeição, antes de ir para a escola de teatro.

Não sou o dono da verdade, sou um mensageiro, tenho uma missão. O maior e mais importante aprendizado é jamais perder minha ancestralidade.
Antônio Pitanga em cena, no espetáculo Embarque imediato, em 2020, no Sesc Consolação, no qual contracena com o filho e ator Rocco Pitanga. Foto: Alexandre Nunis
Quando entro para o círculo dos amigos do Glauber, que eram: Jorge Amado (1912-2001), Carybé (1911-1997), Jean Pierre Verger (1902-1996), João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), me torno também uma cabeça pensante [do movimento Cinema Novo]. Sou convidado para fazer o [personagem] Firmino Bispo dos Santos [no filme Barravento (1962)] e tanto o Cinema Novo quanto a interpretação são inaugurais. Faço cinema antes do teatro, e tem ali, nos personagens que protagonizava, uma maneira que não é Brecht [Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão (1898-1956)], não é Stanislavski [Konstantin Stanislavski, ator, diretor, pedagogo e escritor russo (1863-1963)], não é Grotovski [Jerzy Grotowski, diretor polonês (1933-1999)]. É uma interpretação genuinamente brasileira: o corpo que dança, o corpo que grita, o corpo que fala.
O Cinema Novo era político e cultural, contra todo tipo de preconceito racial, feminicídio e invisibilidade. Entrei como uma ferramenta necessária: eu era, exatamente, o povo. Meu primeiro personagem é um líder sindical, no Bahia de Todos os Santos, do movimento dos estivadores. Se você vai entender o [personagem] Pitanga, nesse movimento inaugurador, ele não está sozinho. Em 1949, antes de ir para o colégio interno, vi [o grupo] Filhos de Gandhy. Não podia haver desfile de negros. Eles se reúnem, são estivadores e irrompem o coração da Bahia, em Salvador, com um desfile monumental. Você vai compondo, por meio de vivências, à sua maneira.
Meu movimento foi esculpido por meio dessas situações que presenciei. Então, não é uma coisa solta, é um grito. Meu professor de capoeira foi um dos maiores professores de que pouco se fala: Mestre Pastinha. Meus personagens dançam e, pela minha dança, estou colocando alguma coisa. E eles foram muito importantes para a construção de uma interpretação cinematográfica genuinamente brasileira.
Você começa a entender, desde cedo, qual é o lugar do negro: existe lugar de negro? Estou falando do século 20, mas aqui no século 21, continua a mesma coisa. Nos pontos estratégicos de poder, o negro não está. Você encontra um aqui, outro ali. A gente nem percebe. Acabei de fazer um filme chamado Malês (2024), e têm reitores que não sabem da rebelião de escravizados. A população brasileira não sabe que já tivemos um presidente negro no Brasil chamado Nilo Peçanha (1867-1924), em 1909, não tem isso no currículo, não está na banca dos saberes.
Com o seu aguçamento, a juventude me possibilita banhar nesse movimento e não ficar no passado. Meu tempo é hoje. Eu trago a memória do passado, mas vivo o hoje e tenho uma relação que me engrandece, me enriquece e até rejuvenesce. Essa juventude tem feito exatamente isso: me recebido para dialogar, interagir. E eu não venho como o dono da verdade.
Eduquei os meus filhos, dona Camila e seu Rocco Pitanga, porque me separei muito cedo e, na conversa que tive com a Vera Manhães, que é a mãe dos dois, ela me disse: “Pitanga, você tem melhores condições econômicas e, psicologicamente, está melhor do que eu, por que esse negócio de separar e a mãe ter que ficar com os filhos? Por que você não fica?”. Então, de repente, em 1986, eu estava com duas crianças. Comprei uma casa. Procurei um bom advogado. Tinha um irmão [de consideração], que já nos deixou, o Ziraldo (1932-2024). Conversando com ele, disse: “Se eu morrer, você vai tomar conta das crianças e da casa deles”.
A velhice pode estar depositada em um corpo de 32 anos, na pessoa que desiste de tudo. É um comportamento que você constrói: não é porque tem rugas, cabelo branco, que é velho. É a tua cabeça que envelhece. O teu corpo só vai envelhecer se sua cabeça permitir. Eu não tenho tempo para isso: dizer que a velhice me cansa, me dá reumatismo. Acho que fui atropelando tudo isso que a carcaça permite.
Assista a trechos desse Depoimento com o ator Antônio Pitanga, realizado no Sesc Campo Limpo, em junho de 2025.
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