Uma viagem pela música brasileira no box Tesouros da MPB 

01/09/2025

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O box Tesouros da MPB é um lançamento físico do Selo Sesc que reúne canções aclamadas da história da música brasileira. Clássicos nas vozes de artistas como Sérgio Ricardo, Jackson do Pandeiro, Ivan Lins, Fafá de Belém e Sá & Guarabyra se apresentam em quatro CDs, acompanhados de um encarte com 116 de páginas. O projeto celebra a riqueza artística da MPB e resgata um importante capítulo da nossa história cultural. 

Um patrimônio musical raro 

Cinco décadas nos separam dos registros sonoros presentes nesta caixa. Para alguns, essas vozes evocam memórias e sentimentos de uma época vivida. Para outros, as letras revelam um clima de hipervigilância e urgência, refletindo a luta e o protesto de um Brasil em transformação. 

O ano de 1975 marca o nascimento da Sombrás – a Sociedade Musical Brasileira, importante agente na discussão sobre arrecadação e distribuição dos direitos autorais no país. Os shows realizados no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, foram fundamentais para arrecadar fundos e defender a reforma do sistema de direitos autorais, em um ambiente de repressão política e efervescência cultural. 

De fato, os Tesouros da MPB são uma riqueza artística e cultural, além de uma raridade finalmente descoberta. O compositor Guttemberg Guarabyra, guardião das gravações originais, e o Selo Sesc são responsáveis por trazer à luz essa obra de relevância artística e um inestimável documento histórico.  

capa Tesouros da MPB
Capa do box Tesouros da MPB

O box está disponível nas Lojas Sesc, com um projeto gráfico especial e um encarte que contextualiza cada faixa e artista. Um convite a uma imersão profunda na rica história da música popular brasileira. 


TESOUROS DA MPB: A HISTÓRIA DA LUTA POR DIREITOS AUTORAIS E A UNIÃO DOS ARTISTAS, por Guttemberg Guarabyra 

A HISTÓRIA DA LUTA pelo aperfeiçoamento da arrecadação e distribuição do direito autoral no Brasil remonta aos primórdios do século vinte. Traçada no início por mais erros do que acertos, incluindo muitos episódios nada elogiáveis, de qualquer modo ela conseguiu marchar no sentido do aprimoramento do sistema, e hoje a forma como os direitos são arrecadados e distribuídos, mesmo que ainda tenha amplo espaço para aperfeiçoamentos, já é bastante razoável. 

Um dos episódios mais notáveis, se não o mais extraordinário dessa história, está contido nessa coleção que resgata a gravação desta série espetacular de shows apresentados no Rio de Janeiro, quando muitas dezenas de músicos, compositores, intérpretes e produtores de todos os níveis de atuação no cenário da música popular brasileira se reuniram para denunciar, com arte, humor, discursos tocantes, interpretações inesquecíveis, irrepetíveis, e absolutamente inéditas, que estavam unidos contra as oligarquias que tentavam dominar de cima para baixo as regras do sistema que controlava seus direitos. 

O ouvinte vai se emocionar, vai sentir na resposta da plateia e até mesmo nos zumbidos do sistema de som quase improvisado — após as gravações terem sido restauradas durante meses num laboratório de engenharia de som e ter conseguido a façanha de preservar esse estupendo episódio da história da MPB — a grandiosidade desse Tesouro. 

O Sesc não poderia oferecer maior presente aos amantes de nossa música. 

Aproveitem. 

box tesouros da mpb

TESOUROS DA MPB: A REVOLUÇÃO MUSICAL E A LUTA PELOS DIREITOS AUTORAIS, Pedro Alexandre Sanches 

A COLEÇÃO TESOUROS DA MPB abre finalmente um baú que permaneceu trancado por 50 anos, desde a realização e gravação de uma série fabulosa de shows coletivos, reunindo em palcos cariocas o que acontecia de mais novo e impactante na música popular brasileira a partir do advento da bossa nova. O objetivo coletivo era arrecadar fundos para a recém-criada Sociedade Musical Brasileira, ou Sombrás, outra novidade absoluta concebida pela classe musical de então na virada de 1974 para 1975, sob censura cerrada. 

Inicialmente em poder do compositor Guttemberg Guarabyra, as raras gravações aqui reunidas constituem uma amostragem preciosa de uma agitação que partia da arte e ia além, misturando de modo complexo a mais pura e cristalina música popular brasileira, conflito de gerações, o vespeiro dos direitos autorais, luta de classe e a resistência contra o cerco promovido pela ditadura sobre a cultura nacional. 

Havia no pano de fundo uma troca de guarda geracional na MPB. Os criadores musicais mais novos, vindos da bossa nova, da canção de protesto, do iê-iê-iê, da tropicália, do Clube da Esquina etc., queixavam-se publicamente do funcionamento das sociedades vigentes de arrecadação de direitos autorais, ainda dominadas por compositores que fizeram a música popular da primeira metade do século XX. 

Um dos estopins aconteceu quando a Sicam (Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais), tida até então como modernizadora da arrecadação, gestão e distribuição de direitos devidos pela execução pública de músicas brasileiras, expulsou autoritariamente alguns de seus associados. O grupo, expulso por ter ousado exigir maior transparência na prestação de contas, incluía autores jovens como João Bosco, Aldir Blanc, Sueli Costa, Vitor Martins, Jards Macalé, Ruy Maurity e Guarabyra, entre outros. 

O ato arbitrário precipitou a solidariedade aos rebeldes, materializada na fundação não de mais uma entre várias sociedades arrecadadoras, mas de um movimento político encabeçado pela nova MPB. A Sombrás nomeou como primeiro presidente ninguém menos que o maestro Antônio Carlos Jobim, secundado na diretoria por Hermínio Bello de Carvalho, Sérgio Ricardo, Aldir, Macalé e outros. Aos quadros da nova entidade se filiaram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Erasmo Carlos, Gonzaguinha, Martinho da Vila, Egberto Gismonti, Paulo César Pinheiro e Vinicius de Moraes, só para citar alguns. 

A militância convertida em entretenimento nos shows da Sombrás escondia uma cordilheira sob o palco. Os líderes do movimento assumiram a conduta ambivalente de seguir protestando contra o autoritarismo e os desmandos na gestão dos direitos autorais, mas ao mesmo tempo mergulhar as mãos no lodo, negociando diretamente com o governo de Ernesto Geisel, na figura de seu ministro da Educação e Cultura, Ney Braga. Entre os frutos colhidos sob liderança da Sombrás figuram a implementação do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), na tentativa de centralizar a cobrança até então pulverizada entre um sem-fim de associações, e a edificação do CNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral), que seria desativado em 1989 pelo presidente Fernando Collor e até hoje não foi retomado. 

A disposição de ir à luta exigiu especial equilibrismo dos autores para dialogar com um governo militar que, nos subterrâneos, continuava censurando suas letras mais indignadas e afrontosas. Aqui é que entram os shows da Sombrás, de cujas sombras emanava um estado de espírito melancólico, introspectivo, por vezes depressivo, mas também o fogo para enfrentar, pela linguagem da fresta, o estado de coisas orquestrado pelo regime autoritário. Não à toa, em Tesouros da MPB o alívio das tensões que carregam o ar só acontece na participação solar de Jackson do Pandeiro, curiosamente um egresso das gerações pré-bossa nova. No mais, o espírito do tempo de opressão grita em cada sutileza emitida como música quase silenciosa pelos artistas que se apresentavam solidária e gratuitamente em suporte à Sombrás. 

O sempre combativo Sérgio Ricardo, por exemplo, pressiona o dedo na ferida em seu libelo sincero “Vou Renovar”, de 1973 (“o novo sempre vem”, concordaria o cearense Belchior pouco tempo depois): “Eu sou um cantador da classe média (…)/canto para a classe A/canto para a classe B/cantoria popular/que não é nem A nem B/cuja fonte está no povo/onde eu vou buscar o novo/e aprender meu beabá”. O arremate é uma bofetada vazada de ironia no regime opressor: “Não me diga que ela é C/ porque C é comunista/ e vai dar muito na vista/ e os ‘home’ vão te apanhar”. 

Os Tesouros da MPB resgatados pelo Selo Sesc colecionam momentos dessa natureza, ao longo de uma saborosa seleção de músicas saídas do forno e de releituras de clássicos de nossa canção popular. O estado de espírito vigente na geração Sombrás grita quando a paraense Fafá de Belém canta “Negação” (“eu digo não!”), de Bosco e Blanc, então inédita e que só receberia uma gravação hoje esquecida, pela breve cantora Aline, em 1979. “Pois É, pra Quê?”, pergunta, desalentado, o carioca Sidney Miller, retomando um protesto que transformara em sucesso em 1968. 

Maurício Tapajós materializa o “Pesadelo” (1972) que ronda a cultura (e o país) com versos anticensura hoje clássicos de Paulo César Pinheiro: “Você corta um verso, eu escrevo outro”. Cantando em dupla com Lucinha Lins, Maurício dá novo sentido a versos do sambista histórico Nelson Cavaquinho em “Rugas” (1946), como “morro cedo, amor” e “finjo-me alegre”. Mais explícita, a dupla apresenta “Dias Piores”, carta musicada de Hermínio para Maurício, que permanecia inédita até hoje: “Dias piores virão, meu amor/enxugue os olhos e jogue um sorriso bem falso no rosto/não fale agora nem abra a boca/que é para não se trair”

Ivan Lins sublinha o clima pesado dos anos de chumbo em “Corpos” (1975), parceria com Vitor Martins: “Existem mais corpos/ou vivos ou mortos/entre eu e você”. Cria versões jazzísticas graves para dois sambas de protesto apresentados em 1964 por Zé Keti, “Acender as Velas” e “Opinião”: “podem me prender, podem me bater (…)/que eu não mudo de opinião”. Noutro registro, Ivan acena para uma esperança de futuro no final do túnel, em “Abre Alas” (1974): “Abre alas pra minha bandeira/já está chegando a hora”

Cesar Costa Filho é outro que apela à negação, nas inéditas “Não Mudo” (“sou mudo por questões de tato/não mudo por razões de fato”) e “Velhos Gemidos”, e também espeta uma leve alfinetada na censura, na supostamente romântica “Tesoura Cega”, gravada por Beth Carvalho em 1974. Walter Queiroz, parceiro de Cesar nessa última, atira sua mensagem na garrafa em “Quadro Negro”: “Quem cala prepara/e um dia faz”. Sá & Guarabyra confessam o medo em “Justo Momento” (1974) e cobiçam o mistério e o segredo em “Mundo Invisível” (1975): “A verdade e o silêncio estão aqui/(…) mesmo aquilo que não se pode ouvir/se percebe de longe”

Para além do otimismo do “Abre Alas” de Ivan Lins e da alegria anti-imperialista do “Chiclete com Banana” (1959) de Jackson do Pandeiro, outra nesga de esperança é oferecida por Sérgio Sampaio, numa versão especialmente dolorida de sua “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (1972), ainda hoje um hino da MPB e um grito por liberdade, libertação e autonomia. No balanço das horas, não era a alegria, mas o medo que movia os ativistas sublevados da Sombrás – mas não um medo paralisante. As letras e melodias dos medrosos elegiam enfrentar as sombras de peito aberto, contra tudo e contra todos. 

CDs do box Tesouros da MPB

Tesouros da MPB está disponível nas Lojas Sesc

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