
O espetáculo se debruça sobre a loucura, partindo de pesquisas teóricas e de campo. Que questionamentos foram levantados no processo?
O processo nos levou a refletir sobre como o conceito de loucura, na sociedade ocidental, está profundamente atravessado por marcadores de raça e classe. A partir das nossas pesquisas com os usuários do Caps [Centro de Atenção Psicossocial] e com os estudos de Foucault, Nise da Silveira e da reforma psiquiátrica, entendemos como os corpos negros são historicamente associados ao desvio, ao perigo, à anormalidade. Ao nos aproximarmos da visão de mundo dos dogon, no Mali, a partir da pesquisa da Denise Dias Barros, pudemos pensar em outras possibilidades de existência: lá, aquilo que o Ocidente chama de loucura faz parte da continuidade ancestral e das redes de convívio. O grande questionamento que atravessa o espetáculo é: como pensar saúde e cuidado para a população negra se o sistema insiste em nos tratar como problema, como sintoma a ser contido? Como romper com essa lógica que historicamente adoece os nossos corpos?
O grande questionamento do espetáculo é: como pensar saúde e cuidado para a população negra se o sistema insiste em nos tratar como sintoma a ser contido?

Como é colocado em cena esse antagonismo entre esses corpos socialmente invalidados (portadores de loucura) e produtivos (sujeitos ao capitalismo)?
A estrutura cênica e a trilha sonora ao vivo foram pensadas para criar uma imersão que desorganiza o olhar e os sentidos do público. Logo no início, a plateia é dividida em duas, separada por uma grande cortina que simboliza o olhar ocidental sobre a saúde mental: de um lado, a lógica manicomial, de exclusão e contenção; do outro, a lógica antimanicomial, controle químico. Essa divisão leva o público a experimentar o desconforto, o estranhamento e a potência dos corpos negros que o sistema insiste em excluir e adoecer. A instalação coreográfica e os demais elementos criam uma rede sensorial que atravessa quem está assistindo. Coreograficamente, com base na metodologia Dança da Indignação, trabalhamos com estados que tensionam o corpo negro entre o esgotamento imposto pela lógica produtiva e o corpo que resiste, que cria, que rompe com os padrões. O corpo do “improdutivo” aparece em sua potência expressiva, em gestos que escapam à normatividade, enquanto o corpo produtivo é mostrado no automatismo, na repetição, na exaustão. A fricção entre esses estados constrói a dramaturgia.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A dança, para mim, é uma linguagem que consegue atravessar o que as palavras nem sempre dão conta de dizer. Ela cumpre o papel urgente de revelar os corpos e as vidas que são sistematicamente colocados à margem, sobretudo os corpos negros, que sofrem os impactos do racismo estrutural em todas as dimensões, inclusive na saúde mental. A dança pode mobilizar afetos, gerar reflexão e criar frestas por onde a gente consegue questionar os padrões de normalidade impostos por uma sociedade que nos mede a partir da lógica da produtividade, do consumo e do lucro.

Baseando-se em investigações em torno da loucura, numa abordagem decolonial e de perspectiva africana, o espetáculo questiona a dualidade entre o corpo entendido como improdutivo (portador de desvario) e aquele visto como produtivo (sujeitado à lógica do capitalismo). Para isso, a Cia. Sansacroma cria uma instalação coreográfica que imerge o público e busca desorganizar seu olhar e seus sentidos. Os intérpretes se alternam entre corpos produtivos, que surgem em movimentos automatizados, esgotando-se em exaustão; e os improdutivos, vistos não pela perspectiva da insanidade, mas por sua potência expressiva, em gestos que escapam à normatividade. O grupo questiona, assim, a lógica que invalida e violenta o corpo lido como desviante. Discute a maneira como marcadores de raça e classe permeiam a noção de loucura, uma força que insiste em existir apesar do sistema que a tenta anular.
The show is an investigation into madness, drawing on theoretical and field research. What questions were raised in the process?
The process has led us to reflect on how the concept of madness in Western society is deeply intertwined with markers of race and class. Based on our research with users of the CAPS [Psychosocial Care Center] and studies by Foucault, Nise da Silveira, and psychiatric reform scholars, we understand how Black bodies have been historically associated with deviance, danger, and abnormality. As we approached the worldview of the Dogon people from Mali, through research by Denise Dias Barros, we were able to consider other possibilities for existence: what the West calls madness is part of ancestral continuity and social networks there. The big question that emerges throughout the show is: how can we think about health and care for Black people if the system insists on treating us as a problem, as a symptom to be contained? How can we disrupt this logic that has historically made our bodies sick?
The show’s big question is: how can we think about health and care for Black people if the system insists on treating us as a symptom to be contained?

How is this antagonism between socially invalidated bodies (carriers of madness) and productive bodies (subject to capitalism) performed on stage?
The stage design and live soundtrack were conceived to create an immersive experience that disrupts the audience’s gaze and senses. Right at the beginning, the audience is divided in two, separated by a large curtain that symbolizes the Western view of mental health: on one side, the logic of the asylum, of exclusion and containment; on the other, the anti-asylum logic, chemical control. This division leads the audience to experience the discomfort, uneasiness, and power of Black bodies that the system insists on excluding and making sick. The choreographic installation and other elements create a sensory network that permeates the audience. Choreographically, based on a methodology called Dance of Outrage, we work with states that produce tensions in the Black body between the exhaustion imposed by the logic of production and the body that resists, creates, and disrupts these patterns. The body of the “unproductive” emerges as an expressive force, in gestures that escape normativity, while the productive body is shown through automation, repetition, and exhaustion. The friction between these states builds the dramaturgy.
How do you see the role of dance in today’s society and what can it mobilize or reveal about our times?
Dance for me is a language that can convey what words cannot always express. It fulfills the urgent role of revealing the bodies and lives that are systematically marginalized, especially Black bodies, which endure the impacts of structural racism in all dimensions, including mental health. Dance can mobilize emotions, generate reflection, and create openings through which we can challenge the standards of normality imposed by a society that measures us based on the logic of productivity, consumption, and profit.
Based on investigations into madness, adopting a decolonial approach and an African perspective, this show challenges the duality between the body understood as unproductive (carrier of madness) and one that is seen as productive (subject to the logic of capitalism). To do this, Cia. Sansacroma creates a choreographic installation that immerses the audience and aims to disrupt their gaze and senses. The performers alternate between productive bodies, which emerge in automated movements that keep going until exhaustion; and unproductive bodies, seen not from the perspective of insanity, but for their expressive force, in gestures that escape normativity. The group thus questions the logic that invalidates and violates the body that is read as deviant. It discusses the way in which racial and social class markers permeate the notion of madness, a force that insists on existing despite the system that tries to nullify it.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.