UMA | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

Compartilhe:
Foto: Marcelo Machado

🇧🇷 🇺🇸

Entrevista com Ymoirá Micall | Intérprete

O espetáculo trata de percepções sobre identidade e trabalha entre texto, dança e música. Como é esse jogo? 
UMA se constrói a partir do conceito de corpo-palavra. No meu processo, a escrita e a criação coreográfica acontecem de forma quase uníssona: o movimento sinuoso da palavra se transforma em gesto, ritmo e presença no corpo. É como se uma coisa não pudesse existir sem a outra. Para mim, o jogo entre o texto denso e o gesto se torna algo genuíno, porque ele traduz uma característica muito forte da minha pesquisa. O movimento da palavra – materializado no papel – se torna matéria coreográfica. Ao mesmo tempo, o gesto alimenta a escrita, expande o texto para além do verbal. Não se trata de ilustrar o texto com o corpo ou de escrever uma partitura de movimentos. É uma ação composta em dualidade, em diálogo, na qual uma linguagem projeta a outra. Elas se distinguem pela forma, mas se alimentam no conteúdo e na potência expressiva, criando um terceiro espaço: de presença entre corpo e palavra. A obra traduz a experiência de um corpo “estranho” no mundo – que se depara com a incompreensão ou a distorção de sua identidade – e revela a tensão entre o que se é e o que os outros projetam. Nesse processo, escancara as fragilidades das construções sociais de identidade e propõe um olhar mais sensível, fluido e autêntico sobre o ser.

Tanto os movimentos criados para a cena quanto os movimentos da vida são atravessados por uma urgência: a de permanecer viva e em movimento

UMA. Foto: Venâncio Cruz
Foto: Venâncio Cruz

Como foi a criação gestual e coreográfica? 
A criação partiu das minhas vivências, do histórico de repressões e silenciamentos que marcaram meu corpo. A escrita surgiu como forma de externalizar essas tensões, e devolveu ao corpo uma possibilidade de existência mais ampla. A repetição de certos movimentos se tornou uma marca na obra, refletindo as inúmeras situações em que vivi o constrangimento e o não reconhecimento da minha identidade. São gestos que retornam como ecos de experiências vividas, mas agora ressignificados em potência poética. Ao longo do processo, percebi que este solo não era apenas uma coreografia – era uma revelação da minha coragem. Coragem de expor artisticamente algo que por muito tempo questionei: a potência do meu ser e a forma como me posiciono como uma travesti negra. Neste solo, compreendo que tanto os movimentos criados para a cena quanto os movimentos da vida são atravessados por uma urgência: a de permanecer viva e em movimento. A dança me confronta e me afirma.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Enxergo a dança como uma potente ferramenta de emancipação. Vivemos ainda em uma realidade marcada por diversas formas de opressão e, nesses contextos, nossos corpos acabam se moldando a essas estruturas, muitas vezes revelando uma dificuldade de expressar livremente nossos desejos e identidades. A dança nos mobiliza a um processo profundo de tomada de consciência e autoconhecimento. Ela revela aspectos latentes da nossa época e aponta caminhos possíveis para uma sociedade mais sensível, justa e conectada.

UMA. Foto: Venâncio Cruz
Foto: Venâncio Cruz

Sinopse

UMA

Construído a partir do conceito de corpo-palavra, o solo de Ymoirá Micall investiga as percepções em torno da ideia de “ser”. A artista combina texto, coreografia e música, mergulhando em suas próprias vivências como pessoa preta e travesti, no histórico de repressões e silenciamentos que a marcaram. Em cena, ela cria um jogo de dualidades entre o texto denso e a expressão corporal, estabelecendo um diálogo e também uma desconexão entre os dois – a voz e as palavras são suas, mas quase todo o tempo não saem de sua boca, e sim de um áudio gravado que a acompanha. Nesse espaço onde o jorro verborrágico e a dança coexistem, a performer transpõe o movimento sinuoso de sua escrita para seus gestos inquietos. Cria um rito de expurgo das normas de construção de identidade, propondo um olhar mais sensível e fluido sobre o ser.


🇧🇷 🇺🇸

Interview with Ymoirá Micall | Performer

The show addresses perceptions of identity through text, dance, and music. How does this interplay work? 
Only One Woman is built around the concept of the body-word. Writing and creating a choreographed dance is virtually a seamless process to me: the meandering movement of the word turns into gesture, rhythm, and presence in my body. It is as if one thing cannot exist without the other. The interplay between hard-hitting text and gesture becomes genuine to me, because it translates a very strong characteristic of my research. The movement of the word — embodied on paper — becomes a choreographic matter. Meanwhile, the gesture feeds the writing, expanding the text beyond the verbal. It is not a matter of illustrating the text with the body or writing a score of movements. It is an action composed in duality, in dialogue, in which one language projects the other. Their form is different, but they feed off each other through content and expressive force, creating a third space: one of presence between body and word. This work translates the experience of an “alien” body in the world — one that faces misunderstanding or distortion of her identity — and reveals the tension between what one is and what others project. In this process, it lays bare the fragility of social constructs of identity and proposes a more sensitive, fluid, authentic view of being.

Both the movements created for the stage and the movements of life are permeated by a sense of urgency: to stay alive and keep moving

UMA. Foto: Venâncio Cruz
Foto: Venâncio Cruz

How was the creative process in terms of gesture and choreography? 
It came from my experiences, from the history of repression and silencing that has marked my body. Writing emerged as a way to externalize these tensions and gave my body back a possibility for a broader existence. The repetition of certain movements became a hallmark of the piece, reflecting the countless situations in which I have experienced embarrassment and the non-recognition of my identity. These are gestures that come back as echoes of lived experiences, but now they are reinterpreted with poetic power. I’ve realized through this process that this solo was not just a choreographed number — it was a revelation of my courage. My courage to artistically expose something I had long questioned: the power of my being and the way I position myself as a Black travesti. In this solo, I understand that both the movements created for the stage and the movements of life are permeated by a sense of urgency: to stay alive and keep moving. Dance confronts me and affirms me.

How do you see the role of dance in today’s society and what can it mobilize or reveal about our times?
I see dance as a powerful tool for emancipation. We still live in a reality marked by different forms of oppression, and, in these contexts, our bodies are ultimately shaped according to these structures, often revealing how hard it is to express our desires and identities. Dance mobilizes us toward a profound process of awareness and self-knowledge. It reveals latent aspects of our time and points to possible paths toward a more sensitive, just, and connected society. 

Synopsis

Only One Woman

Built around the concept of the body-word, Ymoirá Micall’s solo investigates perceptions around the idea of “being.” She combines text, choreography, and music, diving into her own experiences as a Black person and as a travesti, into the history of repression and silencing that have marked her. On stage, she creates a play of dualities between a hard-hitting text and bodily expression, establishing a dialogue and also a disconnect between the two — it is her voice and words we hear, yet they seldom come out of her mouth, but from an audio recording that plays while she performs. In this space where verbal outbursts and dance coexist, the performer transposes the meandering movement of her writing into her restless gestures. She creates a ritual, purging the norms of identity construction, proposing a more sensitive and fluid view of being.

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.