
Isabela Thomé explica Os Borges, um disco que conta a história de uma das maiores famílias de músicos do país – pelo menos numericamente
Isabela Thomé, 29 anos, escritora e jornalista de Criciúma/SC. Desde 2021 mantém a newsletter semanal eu destruirei vocês, uma das maiores publicações brasileiras do Substack, onde escreve sobre cultura pop obscura e não-tão-obscura para mais de 17 mil assinantes. Escritora da newsletter jardel contra o marília, com textos sobre cada partida do Criciúma Esporte Clube.
Ilustração de Nazura. Artista visual e mestra em História Social, nascida em São Paulo. Sua pesquisa e prática orbitam o “Tempo-Afrofuturista”, investigando o corpo como território de memória, ancestralidade e resistência. Atua no muralismo, ilustração, moda e estéticas digitais, explorando subjetividades por meio de retratos simbólicos, cores vibrantes e narrativas afetivas.
Entre todas as inúmeras famílias de músicos que permeiam a música popular brasileira, de Bethânias e Caetanos a Chicos e Miúchas, nenhuma é maior que a família Borges. Ao menos em quantidade numérica; de onze irmãos, criados em uma pequena casa no bairro de Santa Teresa, Belo Horizonte, praticamente todos seguiram, de um modo ou outro, o caminho da música.
Apesar da longínqua e celebrada carreira, o mais famoso dos irmãos, Lô Borges, não foi o primeiro a trilhar tais rumos. Márcio Borges, irmão mais velho, iniciou a carreira de compositor ainda em meados dos anos 1960, escrevendo canções para discos, entre outros, de Elis Regina, Milton Nascimento e Taiguara. Foi peça fundamental do Clube da Esquina, juntamente com o próprio Lô, Milton e o compositor Fernando Brant, e ao longo dos anos acumulou mais de 400 composições cantadas pelos mais célebres artistas brasileiros.
Marilton Borges, pianista, fez parte da banda de Milton Nascimento por décadas e gravou algumas canções para coletâneas de música mineira no início da década de 1970, enquanto Telo Borges trilhou os caminhos das composições e contribuiu com o Clube da Esquina em diversas oportunidades. A irmã Solange, única mulher da família a seguir carreira musical, lançou um disco solo nos anos 1980 e participou do clássico “A Via Láctea”, de Lô. Nico, o caçula da família, cantou aos 12 anos de idade a faixa “Pablo”, que fecha o “Milagre dos Peixes” de Milton Nascimento, e Yé Borges foi o responsável, juntamente com Márcio, pelo dueto entre Lô e Milton em “Um Sonho Na Correnteza”. Projetos solo, projetos paralelos, projetos em família.
No final dos anos 1970, após clubes de esquinas e discos solo de Lô, a família Borges decidiu unir as suas forças musicais e gravar um disco. Os Borges, lançado pela EMI em 1980, juntou pela primeira vez em um único LP os irmãos Lô, Márcio, Marilton, Nico, Solange, Telo e Yé Borges. A capa de Os Borges mostra o quarto de infância da família Borges, camas e beliches para todos os cantos, guitarras e violões atirados pelo cômodo quase implorando para serem tocados. Na contracapa, o mesmo quarto, agora ocupado pelos membros do grupo-família, banda-irmandade, acompanhados pelo olhar atento do pai Salomão, creditado na foto como seu Salomão, e a mãe, dona Maricota. Familiar, e ao mesmo tempo único.
Ao longo de suas doze faixas tipicamente mineiras, violões tranquilos tocados por Lô e pianos quase tropicais-mas-sem-mar de Marilton, cada irmão tem a oportunidade de brilhar. A primeira faixa, “Em Família”, não poderia ser mais direta; isto é um disco cheio de afeto. “Na minha casa sempre tem lugar pra quem vem de fé, de paz, de bem“, cantam em coro e harmonia os irmãos, uma família Wilson do sudeste brasileiro. Escrita por Márcio e Yé Borges, ela dita o tom do álbum como poucas canções poderiam. Sim, isso é em família, e “onde dorme um / mais um também já quer dormir“. A faixa conta com participação de Naná Vasconcelos na percussão, apenas um dos vários colegas e amigos que contribuíram na produção do disco. A segunda canção, “Carona”, escrita por Marilton, é cantada pelo próprio e por Gonzaguinha, um lindo dueto em uma composição sensível e tipicamente Lennon-adjacente como tantas canções da família. “O quão bom é poder viver livre” quase como um mantra.
“Ainda”, composição de Márcio e Telo, talvez seja uma das mais belas canções de toda a cena mineira da época. Uma abertura de novela das 8 oitentista que nunca existiu. O piano elétrico de Guilherme Arantes, mais uma participação especial, dita o tom da canção que, como tantas no disco, é sobre uma nostalgia que se mistura com o passado e o futuro. Poucas vezes na música brasileira o amor fraternal foi descrito de forma mais bonita do que na letra “seremos todos amigos antigos agora”. Uma canção sobre tranquilidade, sobre um abraço, sobre sonhos, “é meu destino ir seguindo e acreditar”. A dupla contribuiu também com “Voa, Bicho”, terceira faixa do álbum, vocais do próprio Telo e de Solange. Uma andorinha metafórica fazendo verão, “sem dinheiro nem pra um pastel chinês”, vidas jovens e indecisas, voando veloz pelos quatro cantos do mundo.
A única composição de Lô Borges aparece na segunda metade, a vibrante “Eu Sou Como Você É”, cujo título já diz tudo. “Meu irmão, eu sou como você é”, cantam em dueto Lô e Marilton, sintonizados em uma mesma frequência desde os primeiros momentos de vida. Menções aos aprendizados da vida, às separações familiares, às idas e vindas físicas e emocionais, “tantas emoções antigas no mesmo lugar” e tudo mais. Uma canção tipicamente Lô Borges, uma canção tipicamente família Borges.
“Outro Cais”, composta por Marilton em colaboração com Duca Leal, conta com um vocal quase fantasmagórico de Elis Regina, um dos grandes destaques do álbum. Dois minutos de poucas palavras que dizem muito. “Te arranquei do teu cais, me lancei no teu mar”, uma produção orquestral, com pianos e violinos, uma canção que não estaria deslocada em uma seleção musical da era de ouro do rádio. Uma Dalva de Oliveira anacrônica. A participação de Milton Nascimento, uma necessidade em um disco da família Borges, fica para a última faixa, escrita por Nico e Duca Leal. “Pros Meninos” é singela, calma e, realmente, pros meninos. Memórias de infância, “meninos correndo perigo”, tempos mais simples, “voando cabelos de mel”, uma ode às “coisas menores”. Crescer e não esquecer do que já passou, crescer e aprender.

Os Borges é um disco sobre família, claro, mas também sobre uma infância e adolescência compartilhadas, sobre experiências divididas, sobre vínculos fortalecidos, sobre o convívio. Sobre irmãos, mas também sobre amizades. Um quarto compartilhado e vidas compartilhadas, o olhar da mãe e do pai, carinho.
Os Borges foi o único disco oficialmente creditado à família Borges, mas pode-se dizer que há uma sequência espiritual do álbum. Em 1984, a irmã Solange Borges lançou o sublime Bom Dia Universo, pela Bemol, que conta com composições de Nico, Yé e Telo, além de canções da própria Solange. Praticamente um reencontro de uma família que não se separou. Bom Dia Universo não fez tanto barulho na época, mas é um daqueles discos supostamente esquecidos da música popular brasileira que é redescoberto por uma nova geração de ouvintes que pensa, em voz alta, por que ninguém prestou atenção na primeira vez. É um álbum quase místico, tanto em grandeza quanto em sonoridade. O som de uma manhã de domingo no interior, e talvez seja apenas um interior idealizado, mas logo nos seus primeiros acordes você é imediatamente transportado para esse lugar. Uma viagem temporal.
A primeira canção do disco, “Bom Dia Universo”, composta por Solange e o irmão Nico, é quase um bluegrass come-quieto. Um sertanejo de alta intensidade sobre a simplicidade de uma vida tranquila, um sítio e uma mesa com o café da manhã. Uma música que se parece com a capa do disco: a imensidão da natureza, pedras, grama e uma neblina ao fundo, uma paisagem do planeta Terra, mas que poderia ser um outro planeta ainda desconhecido. Bom dia, universo. “Pelas janelas do mundo, ver os fundos dos quintais”. Não precisamos de muito. Sentimento ecoado na faixa “Águas de Rios”, outra colaboração de Solange e Nico, a beleza da natureza, o céu estrelado do interior, “somos apenas águas de rios que caminham para o mar”.
As canções de Bom Dia Universo parecem chegar rápido e partir cedo, como uma visita no fim de tarde. Várias canções lidam com encontros: encontrar um amigo, jogar conversa fora, talvez beber uma cerveja gelada e não fazer muito mais do que isso. Talvez o verde no fundo. “Santa Teresa”, de Tito Andrade e Yé Borges, é uma ode ao bairro de Belo Horizonte, “olhar perdido nas recordações” e “abraços pra moçada“, lembrar de momentos do passado, pensar no futuro. “Convite” é sobre um convite. Vamos dar uma volta? “Tantas coisas já vivemos e esquecemos de viver“.
Bom Dia Universo é sobre coisas poucas, e não tem problema. Nem tudo precisa ser gigantesco e descomunal, já que a vida, em geral, não é isso. Uma tarde com amigos próximos pode ser memorável, e talvez em nossos últimos momentos, as recordações que mais fiquem sejam exatamente essas. Os tempos tranquilos, os tempos que já se foram. Mas é bom recordar.
A partir do final da década de 1990, o irmão Telo Borges passou a se dedicar a uma carreira solo, lançando uma série de álbuns independentes. Entre eles, destaque para Telo, de 2019, que conta com uma série de participações especiais; Samuel Rosa canta na faixa “Tatibitate”, um semi-forró composto por Antenor Pimenta, enquanto os vocais e o piano de Guilherme Arantes na ótima “Tanta Graça” parecem diretamente vindos de uma década passada. Beto Guedes empresta sua voz para a naturalística “Passagem”, e Claudio Venturini aparece em “Amor e mais nada”.
E, claro, o próprio irmão Lô dá as caras na composição “Amor a Nossa Força”, creditada aos dois irmãos. Uma canção que exemplifica bem a relação entre ambos e, por que não?, todos os irmãos Borges. “O amor, a nossa força, cantar quando a gente se vê, levar pra sempre a canção”. É exatamente o que a família Borges vem fazendo há décadas.
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