Patrícia Campos Mello alerta para os efeitos da desinformação

01/04/2024

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Premiada jornalista e escritora Patrícia Campos Mello alerta para os efeitos da desinformação sobre os rumos do país 

Leia a edição de ABRIL/24 da Revista E na íntegra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Cada vez menos, a população brasileira tem interesse em entrar em contato com notícias. E quando o faz, informa-se, principalmente, por plataformas de mensagens, como WhatsApp, e redes sociais, como Instagram e TikTok. Além disso, a prioridade no consumo de notícias tem sido dada ao perfil de influenciadores digitais em detrimento do de jornalistas profissionais, segundo a última edição da pesquisa Digital News Reports, publicada pelo Reuters Institute, em 2023. De acordo com esse levantamento realizado no Brasil e em outros 45 países, 47% dos entrevistados brasileiros consomem notícias via redes sociais. Mas, como identificar e distinguir notícias de informações falsas nos ambientes digitais? Afinal, as mesmas plataformas que servem ao entretenimento, à democratização da informação e à interação social também podem ser ferramentas de desinformação e manipulação da realidade. 

Ao investigar as engrenagens desse mecanismo durante o segundo turno das eleições de 2018, a repórter especial do jornal Folha de S. Paulo e comentarista da TV Cultura Patrícia Campos Mello se tornou alvo de ataques no ambiente digital, com episódios de ameaça e difamação. Essa experiência traumática, somada ao seu trabalho de investigação sobre o uso de redes sociais nas eleições dos Estados Unidos (2008, 2012 e 2016) e Índia (2014 e 2019), resultou no livro A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital (Companhia das Letras, 2020). “Se não houver uma regulação da internet que, de alguma maneira, torne as plataformas, as big tech, responsáveis, por exemplo, por tentativas de golpe de estado, e pela proliferação nas redes de conteúdo incitando a violência, elas não vão ter um incentivo para agir”, analisa.  

Formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo, com mestrado pela Universidade de Nova York, Patrícia Campos Mello é reconhecida por uma trajetória de mais de 20 anos de coberturas jornalísticas nas áreas de política, tecnologia, relações internacionais e direitos humanos em mais de 50 países, entre eles Síria, Iraque e Ucrânia. Já recebeu o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa (2019) e o Prêmio de jornalismo digital Rei da Espanha (2018), entre outros. Neste Encontros, a jornalista reflete sobre o descontrole da propagação de notícias falsas, novas formas de censura e o futuro do jornalismo. 

FURAR A BOLHA 

Ser repórter é o melhor emprego do mundo. O problema é garantir emprego e salário, mas tirando esses dois detalhes, todo o resto é maravilhoso. É um privilégio poder entrar em contato com tantas realidades, ouvir pessoas fascinantes e, de repente, descobrir alguma coisa que pode, de alguma maneira, mudar a realidade. Eu adoro esse emprego e fui ser jornalista por inspiração do meu pai [Helio Campos Mello]. Eu sou superfã dele, que foi fotojornalista, diretor de revista. Só que, a princípio, ele trabalhava muito e nunca estava em casa. Pensei: “Eu não quero essa vida dura”, daí prestei Direito, e fiz por seis meses. Depois entrei na USP, em jornalismo, e logo no começo, arrumei um estágio no Jornal da Tarde, cobrindo saúde, polícia. Você sai de uma bolha e entra na vida real, vai conhecer a cidade, as pessoas e sai do seu mundinho privilegiado para ver o quão mal distribuída é a renda no mundo.  

DEMOCRACIA E JORNALISMO 

A função do jornalismo é empoderar o cidadão para que ele possa tomar decisões informado. Trata-se de investigar e mostrar aspectos da realidade para que as pessoas usem essa informação para tomarem suas próprias decisões, principalmente decisões eleitorais: quais serão os políticos que vão determinar o futuro delas. Ninguém consegue tomar uma decisão consciente se não tiver todas as informações. Assimetria de informação é um problema gigantesco. Não tem um blog, quer dizer, deve ter algum, que está lá puxando o orçamento do governo para ver se tem desvio ou que está pesquisando obras da seca. Mas, quem vai fazer isso é o jornalismo profissional. Não é opinião, não é comentário, não é blog, e muito menos esses sites que distorcem as notícias. Então, acho que você precisa muito do jornalismo profissional, que tem essa função cívica de empoderar os cidadãos para que eles possam exercer a sua cidadania e escolher de posse de uma informação de qualidade. 

ALVO NAS REDES 

Quando comecei a escrever A máquina do ódio, não tinha nada de mim no livro. Eu, como muitos jornalistas, não gosto de me colocar em história nenhuma. A gente gosta de saber do outro, escrever sobre o outro. Então, comecei a escrever o livro a partir de várias coberturas que eu tinha feito na Índia, nos Estados Unidos e aqui, no Brasil, sobre o uso de redes sociais, e de dados pessoais dos eleitores, para tentar manipular eleições. Aí, virei alvo de campanhas de desinformação. Eu simplesmente estava fazendo uma cobertura normal da eleição de 2018. No meio do caminho, fui descobrindo algumas coisas e fiz uma matéria. Meu mundo virou de ponta-cabeça. Pela primeira vez, tinha vídeo manipulado e editado com minha imagem na internet, tinha fotomontagem, fake news. A partir disso, comecei a perceber que preservar a família e a vida pessoal é algo cada vez mais difícil. Mencionaram minha família, depois houve ameaças contra o meu filho. Todo mundo já foi, de alguma maneira, exposto numa rede social. É um tipo de assassinato de reputação. Eu precisei tomar ações jurídicas, entrar com processo, uma coisa que nunca tinha feito. Então, resolvi começar o livro falando a respeito disso. 

Marcos Villas Boas

O JORNALISMO TEM ESSA FUNÇÃO CÍVICA DE EMPODERAR OS CIDADÃOS PARA QUE ELES POSSAM EXERCER A SUA CIDADANIA E ESCOLHER DE POSSE DE UMA INFORMAÇÃO DE QUALIDADE 

Foto: Marcos Villas Boas

NOVA CENSURA 

Essa máquina do ódio é como se fosse uma nova versão de censura. Isso pode ser instrumentalizado por atores políticos. A gente sabe que vários líderes populistas no mundo usam, de forma muito hábil, esse tipo de “ferramenta de marketing digital” porque, na prática, esses ataques começam orquestrados, mas, depois, você tem uma adesão genuína. Inclusive, porque há um efeito perversamente liberador nessas pessoas: “Que legal, agora eu posso ser homofóbico”; “Agora eu posso ser misógino”; “Agora eu posso me juntar à turma que está xingando e que tem esse ressentimento”. Esse tipo de ataque funciona como uma censura. Você acaba silenciando certas vozes que são, geralmente, de grupos minorizados de alguma maneira. Você vê que para mulheres, negros e para a comunidade LGBTQIA+ é muito mais difícil, eles são alvos frequentes.  

AMBIENTE TÓXICO  

Vamos pensar em uma coisa: a Inteligência Artificial raspa informações de vários sites da internet, inclusive de redes sociais, para alimentar modelos. Se você tem um ambiente tóxico para grupos minorizados, você tem menor participação dessas vozes na internet. Com isso, o que você vai ter de conteúdo para a Inteligência Artificial é um mundo de menor participação dessas pessoas, que se tornam alvo desses instrumentos virtuais. São muitas as implicações. Por exemplo, o quanto isso muda a nossa visão de mundo e o ecossistema de informação é grave. A censura também não é uma censura “clássica”, de um jornal com censor, com publicação de receita de bolo. Você tem uma censura pelo barulho, pela intimidação e ambiente tóxico virtual. 

MANIPULAÇÃO DA REALIDADE 

Esse tipo de arma, de tentativa de manipular a realidade, a opinião pública, o eleitorado, é um negócio que a gente precisa entender que, infelizmente, é a nova realidade. A gente precisa, inclusive, como jornalista, fazer um trabalho muito bem checado e apurado. Porque tudo que esses atores que se aproveitam da desinformação querem é que o jornalista cometa erros. Acho que essa manipulação veio para ficar, não acho que o pior já passou. Vamos ver agora com a eleição municipal, pode ser um show de horror, como foi em 2022, quando a gente viu esse foco de desinformação, de manipulação da realidade ao falar que o sistema eleitoral é fraudado.  

ALGUÉM ME DISSE 

Agora você tem essa tiktokização dos algoritmos, que é o algoritmo do Tik Tok, algo que não fica te mostrando a última novidade da sua tia ou a matéria compartilhada pela sua prima. É uma coisa de influenciadores, de conteúdos aleatórios que o algoritmo, pelos padrões, diz que vai engajar. O Instagram está cada vez mais assim, o Facebook e outras redes também. Algo que, inclusive, essas plataformas estão querendo é cada vez menos notícias. Porque há uma queda de braço com os veículos de mídia para que sejam pagos pelo uso do conteúdo. Para as plataformas é assim: “Notícia não engaja tanto, então, vamos fazer a tiktokização com conteúdo de influenciadores e usar cada vez menos notícia”. Ou seja, é mais difícil chegar até as pessoas, pois muita gente se informa pelas redes sociais. Fiz uma entrevista com o CEO do WhatsApp e ele falou uma coisa impressionante: o Brasil não é o maior mercado do aplicativo, mas é onde mais se manda mensagem de áudio, por exemplo, onde há mais grupos e onde se usa mais intensamente o WhatsApp. E a gente sabe que, raramente, a pessoa que recebe algo pelo WhatsApp vai entrar na internet para checar. Então, fica aquilo como a verdade. 

FUTURO DO JORNALISMO 

Estamos num momento muito difícil de como conseguir chegar nas pessoas num mundo ditado por algoritmos. Muito do que a gente vê é um público consumidor de notícias passivo. Há esse desafio de a notícia real viralizar. A gente está numa fase em que há cada absurdo, que você fala: “Não é possível que isso esteja acontecendo”. Mas no geral, por que a desinformação viraliza? Por que ela é tão eficiente? Porque ela suscita essas emoções fortes e isso, por sua vez, gera engajamento. Como hoje em dia você tem esse consumo passivo de informação, você fica à mercê de um conteúdo que engaja. Nosso desafio é conseguir empacotar a informação de qualidade, checada, apurada, inclusive, uma checagem desmentindo informações falsas, de um jeito que a informação consiga engajar mais o leitor.  

REGULAÇÃO DA INTERNET 

Por muito tempo se disse que com a educação midiática se combate fake news. Sim, é superimportante saber diferenciar [o que é notícia], checar a fonte da informação, entender o que é opinião e o que é informação, mas isso está longe de ser o suficiente. Primeiro porque, em muitos casos, a pessoa não é ignorante e sabe exatamente que a fonte daquela informação não é de confiança, mas aquilo corrobora suas visões e ela vai compartilhar. Não é falta de alfabetização midiática. E segundo, não é suficiente: se não houver uma regulação da internet que, de alguma maneira, torne as plataformas, as big tech, responsáveis, por exemplo, por tentativas de golpe de Estado, e pela proliferação nas redes de conteúdo incitando a violência – coisa que, supostamente elas dizem que não deixam, que isso é contra suas regras –, elas não vão ter um incentivo para agir, porque esse tipo de conteúdo engaja muito, o que, por sua vez, é dinheiro de venda de anúncio. Nesse sentido, acho que a educação midiática não é suficiente. É preciso haver uma regulação e, no caso do jornalismo, essa é uma questão de vida ou morte.    

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