Imagens e sons como forma de luta, ensaio de Georges Didi-Huberman

17/10/2018

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Didi-Huberman na conferência dada em 17 de outubro de 2017, no Sesc Pinheiros | Foto: Alexandre Nunis

No aniversário de um ano da conferência que o filósofo francês realizou no Sesc Pinheiros por ocasião da abertura da exposição Levantes (2017), é disponibilizada a tradução integral e inédita do texto que serviu de base para a fala do curador da mostra

Em 18 de outubro de 2017, o Sesc Pinheiros inaugurou Levantes, uma exposição transdisciplinar sobre as diferentes formas de representação de atos populares e políticos, engajados nas transformações sociais, nas revoltas e revoluções. A mostra, que esteve aberta ao público da unidade até 28 de janeiro de 2018, foi realizada pelo Sesc São Paulo em parceira com o Jeu de Paume e apoio da Embaixada da França no Brasil e do Institut Français.

Levantes, cujo catálogo foi publicado pelas Edições Sesc, contou com a curadoria do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman (1953), um dos grandes intelectuais franceses de sua geração, autor de dezenas de livros. Suas reflexões abrangem desde a filosofia da imagem à história da arte, passando pelo cinema e pela literatura.

Abaixo é disponibilizado, de forma inédita em língua portuguesa, o texto completo do ensaio Images et sons à bout de bras [Imagens e sons como forma de luta], redigido pelo pensador francês e que serviu de base para sua fala na conferência que ocorreu em 17 de outubro de 2017. Não se trata da transcrição do que foi dito por Didi-Huberman, com suas sínteses e digressões, naquela terça-feira à noite, mas da tradução para o português do texto integral que ele redigiu para a oportunidade.

Imagens e sons como forma de luta (texto integral)
Ensaio por Georges Didi-Huberman
Tradução de Edgard de Assis Caravalho e Mariza Perassi Bosco
 

É difícil revivificar os próprios sonhos, construir a partir do heterogêneo, desenvolver a arte de reinventar de outro modo a própria vida, até então mutilada. É por isso que engendramos levantes sem-fim. Sem-fim porque com muita frequência tudo se repete, tudo fracassa; tudo fracassa nas praias do conformismo ou contra as falésias dos serviços de ordem. O recomeçar, porém, também é sem-fim. Sem-fim: sem que jamais o objetivo final — o apaziguamento de tudo, a reconciliação obtida, o desejo finalmente satisfeito — seja alcançado. Mas também sem jamais deixar de reacender o desejo e, com ele, a coragem de desobedecer, a pulsão de inventar, a força de fazer diferente, a energia de não mais se assujeitar. Por essa inesgotável multiplicidade demonstrada pela história das sociedades humanas, os levantes, tomados em conjunto, formariam a grande arte política do não finito. Isso para explicar simultaneamente sua fragilidade constitutiva — ou constitucional: fragilidade de se indefinir em relação ao poder — e sua potência propriamente infinita. Potência de vulcões, de vagas gigantes, de poeiras em movimento, ou de furacões.

Já que na história nada jamais terminou, engendrar um levante talvez fosse simplesmente recuperar a capacidade de saber recomeçar. Recomeçar a qualquer preço, recomeçar senza fine, infinitamente. Seria a faculdade de se tornar um sujeito que renasce, que se põe em movimento, que começa a inventar gestualidades e formas de vida pelas quais não se sentirá mais assujeitado. Repito, ao mesmo tempo, que não se deixa jamais de começar, de recomeçar, de continuar a se debater ou a se bater. “Eu vou continuar”, não foi assim que Samuel Beckett concluiu seu debate íntimo no livro O Inominável, logo após ter declarado sua própria tentativa de voltar a partir com a expressão “É preciso continuar, será que eu posso continuar”? Não é evidente que isso também queria dizer: “Lá onde tudo me diz não, vou continuar, apesar de tudo, a arriscar, a tentar, a desejar, a falar, a afirmar, a inventar, a dizer não ao não“? Suportamos muitas coisas e depois, um dia, dizemos a nós mesmos que aquilo não pode mais continuar. Por muito tempo, mantivemos os braços abaixados. Entretanto, mais uma vez — como havia sido possível fazer em certa ocasião, como outros com frequência fizeram antes de nós — erguemos os braços acima dos ombros, ainda atordoados pela alienação, curvados sob o peso da dor, da injustiça, do abatimento que até então nos dominava. Nesse momento nos reerguemos: projetamos nossos braços para o alto e para frente. Erguemos a cabeça. Reencontramos a potência liberadora de olhar em frente. Nós abrimos, nós reabrimos a boca. Nós gritamos, nós cantamos nosso desejo. Discutimos com nossos amigos como fazer isso, refletimos, imaginamos, avançamos, agimos, inventamos. Passamos a ser protagonistas de um levante.

Todos os braços se erguem. Como os dos marinheiros do Encouraçado Potemkin, que, em um primeiro gesto de desobediência, arrancaram de cima de suas cabeças o pano branco que os recobria com uma ameaça mortal. Como os dos náufragos cheios de esperança que pedem socorro no quadro A Balsa da Medusa, de Théodore Géricault. Como os da senhora Liberdade, no célebre quadro de Eugène Delacroix, que agita sua bandeira no posto avançado dos revolucionários franceses de 1830.  Como os dos meninos de Zero de conduta, filme de Jean Vigo, que de cima do telhado de sua escola atiram tudo ao alcance de suas mãos. Ou como os do lumpenproletariado de Goya, ainda à procura de uma forma de expressar seu desespero e sua cólera. Em uma tela, que hoje se encontra no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, Goya representou uma cena de massacre análoga à dos Desastres da Guerra. O que se vê é uma carnificina de uma violência inconcebível: o poder o das armas é mostrado em sua capacidade de aniquilar qualquer potência (em particular a de uma mulher, à esquerda do quadro, de braços abertos, e que imaginamos, isso porque seu rosto se reduz a uma mancha marrom, grita a plenos pulmões).

Mais acima, sozinho sobre a colina, um ser humano — esboçado, sem dúvida alguma, para que nele não se reconheça nada mais do que um ser humano comum — ergue os braços. Trata-se simultaneamente de um gesto de total desespero diante da atrocidade da cena que se desenvolve no seu entorno, gesto de pedido de socorro dirigido aos eventuais salvadores externos e, sobretudo, gesto de imprecação trágica, que ultrapassa — ou permeia — qualquer invocação à vingança. Assim como no célebre fuzilado do quadro Três de Maio, que também ergue vigorosamente os braços, é menos a significação psicológica isolada do personagem que se trata de identificar do que a direção de sentido dada pelo pintor no quadro como o um todo:  de qualquer modo, em cenas como essas é efetivamente a potência da população anônima que protesta e se subleva diante do poder das forças armadas que vieram para subjugá-la ou massacrá-la. Tudo isso será encontrado, sem surpresa alguma, na Guernica, no qual Picasso projeta fortemente os braços dos personagens, com seus olhos, com suas bocas em um mesmo elã, e que feridos ou aniquilados os corpos continuarão a clamar contra com uma energia poderosa, na constante dialética entre as formas patéticas da morte infringida e os signos vetoriais, dinâmicos, da vida permanentemente sublevada.

non finito da história reside exatamente nisso:  abatimentos e sobressaltos, refluxo com retorno dos fluxos, limites rígidos subitamente ultrapassados, perdas seguidas de levantes, e isso sem trégua. No meio de tudo — simultaneamente como embarcações à mercê das vagas e até mesmo como intermediários da política, pela qual um refluxo poderá dar lugar a um retorno do fluxo — estão os corpos com suas gestualidades, suas imaginações, suas linguagens, suas ressubjetivações, suas ações no espaço público. Razão pela qual a política se vê sempre “encenada” em sua perpétua vocação de aparecer, como afirmou Hannah Arendt em sua coletânea de textos intitulada “O que é a política?”, e segundo uma problemática comentada posteriormente por Étienne Tassin. Essa encenação vai bem mais além — ou melhor, fica bem aquém pelo fato de ser intimamente cotidiana, disseminada, polimorfa, em múltiplas escalas — das alegorizações políticas familiares, tais como a “assembleia do Povo”, ou a imagem do “corpo da Liberdade” tão frequentemente representadas no século XIX, principalmente de David a Delacroix. O “corpo da Liberdade” não passa de uma representação que também é gesto, presença, ou “apresentação” até em seus momentos de aparecimento público, que em francês se denomina perfeitamente manifestações (termo que, fenomenologicamente falando, parecerá bem mal traduzido em inglês pela palavra extremamente argumentativa demonstração).

Isso porque na palavra manifestar incluem-se primeiro as mãos, depois os próprios braços e o corpo inteiro. Em latim, o manufestus é o indivíduo que é “preso no ato”, ou, explicando melhor: é “pego em flagrante” ou “com a mão na cumbuca”. Como uma contravenção visível à regra social, a palavra manifestatio designa tudo o que se descobre, tudo o que se expõe — de acordo com o duplo sentido do termo aparecer e de correr o risco, e até mesmo do crime de lesa-majestade — de modo visível, “manifesto”, ou transgressivo, como um desafio à ordem em vigor. Manifestar seria, então, ter desejado clamar seu desejo e, nesse momento, desobedecer por meio de ações, ou até mesmo de gestos premeditados. É impressionante que na genealogia social das manifestações políticas na Europa, os funerais, procissões e festas típicas tenham constituído uma matriz antropológica para os agrupamentos ou cortejos reivindicativos, como demonstrou Vincent Robert em seu livro Os Caminhos da Manifestação. Manifestar seria, então, “reencontrar o desejo”: transformar a perda em levante, a imobilidade do abatimento em fluxo de rio, a paralisia do medo em progressão absoluta, em gesto de emancipação. Entre muitos outros exemplos possíveis, é o que demonstra o caso dos funerais de Jean Jaurès, descritos, em 1938, por Paul Nizan em seu romance A Conspiração:

“O bulevar ficou repleto de gente: eram os operários dos subúrbios, a massa densa vinda de bairros do Leste e do Norte da cidade; eles ocuparam a rua ponta a ponta, o rio finalmente começava a correr. […] Não se podia pensar senão em potências compactas, em seiva, em um rio, no fluxo do sangue. De súbito, o bulevar bem mereceu seu nome de artéria. […] Os homens imóveis não resistiram mais aos homens em movimento, os espectadores ao espetáculo, os taciturnos aos cantores, eles desceram para conhecer o movimento do rio; Laforgue, Rosenthal e Bloyé […] também se juntaram e começaram a cantar.”

É claro que em uma manifestação nada jamais é resolvido com antecedência: tudo permanece em suspenso diante das aleatoriedades do acontecimento, pelo não finito da história e das relações das forças presentes. Trata-se, portanto, de um drama que sempre se encena quase “classicamente”, com suas unidades de tempo e de lugar nas quais a rua ou a praça assumem a função de palco principal (A Rua como Palco, de Mathias Reiss, é o título de uma coletânea de estudos sobre essa questão). No caso da França, historiadores como Charles Tilly e Danielle Tartakowsky demonstraram a evolução dos “repertórios da ação coletiva”, desde as insurreições de subsistência ou “confisco de grãos” do Antigo Regime até os movimentos de greve, reuniões eleitorais e outras manifestações de rua da contemporaneidade.  Na verdade, as pessoas se manifestam de acordo com os diferentes modos possíveis de expressão pública e as diferentes estruturas da organização política: o paradigma revolucionário de 1789 — é preciso tomar as bastilhas — ou a constituição do movimento operário, por exemplo.

Como aconteceu antes dele, com Michelet ou Victor Hugo, a descrição de Paul Nizan é ao mesmo tempo alegórica (a “seiva revolucionária” que se eleva com a aglutinação da multidão em marcha, reunida pelo canto da Internacional) e morfológica: na verdade, naquele exato momento, o bulevar “bem mereceu seu nome de artéria”, isso porque o povo finalmente circulava por ele em um mesmo movimento fluido, simultaneamente compacto e potente. Nesse caso, mais uma vez, trata-se de uma questão de morfologia dinâmica, o que demonstram sobejamente os estudos históricos ou sociológicos sobre o fenômeno das manifestações políticas, desde os trabalhos de Pierre Favre até os de Olivier Fillieule ou, no caso das insurreições urbanas, de Alain Bertho. A manifestação revela, então, toda a complexidade de seus aspectos, seus processos, suas dialéticas: principalmente entre seu contexto e sua explosão, quando o ato de se manifestar depende de um direito democrático inscrito na Constituição, e de um ato de dissenção radical, de luta imprevista que as forças policiais tentarão não apenas reprimir, como ainda prevenir e deslegitimar por todos os meios possíveis.

Esses jogos de forças manifestam-se por si mesmos; aparecem diretamente nas ruas, nas praças e, por isso, não poderiam ser compreendidos sem uma observação — ou seja, uma antropologia — táctil, sonora, visual do espaço sensível como um todo. Processos agônicos de um lado — quando aparecer é entrar em contato, ou seja, combater — processos de participações efusivas ou de fraternizações do outro; espaços de  solicitação com espaços de recusa; vontade de ser compreendido com o sentimento de não sê-lo; “serviços de ordem” com o objetivo de “manutenção da ordem” que visam não apenas a repressão dos “transbordamentos”, mas ainda o sufocamento do próprio fenômeno,  segundo protocolos que nada mais são do que atentados às liberdades públicas fundamentais. Torna-se evidente, então, que a manifestação ocupa o espaço sensível, visível principalmente a partir de uma resistência da representatividade política em vigor: ela revela uma expressão política — qualificá-la de “direta” talvez não seja exato uma vez que ela é sempre intermediada por suas escolhas de percurso, de palavras de ordem, de iconografia, de comportamentos mais ou menos obrigatórios — que contesta  fundamentalmente as aquisições preliminares da representação política, seja ela parlamentar ou mesmo sindical.

Razão pela qual os manifestantes inventam para si próprios gestualidades, canções, ou imagens originais: artes de fazer que os caracterizam muito bem. Os braços se erguem, mas não apenas para votar, como se faz em uma assembleia parlamentar clássica. As bocas se abrem e as línguas se liberam, mas não apenas para emitir uma opinião política stricto sensu. Eles caminham, dançam, correm, gesticulam e atiram todo tipo de coisas. Eles se reagrupam, se dispersam. Cantam e provocam. Abre-se espaço para o retorno de uma dimensão carnavalesca — ou seja, de uma festividade que reivindica o direito de virar o mundo social de cabeça para baixo — como demonstraram Kuba Majmurek, Kuba Mikurda e Janek Sowa no contexto do Solidariedade, ou mesmo Rocío Martínez no do Chiapas, no México.  Não era, portanto, sem razões antropológicas e políticas que Pierre Clastres falava do exercício da autonomia e da construção de liberdades sociais dos indígenas da América do Sul, os Guaiakis ou os Guaranis, por meio da “Fala Sagrada” dos mitos — narrativas simultaneamente de memórias e de desejos — na medida em que são cantadas por toda a Sociedade contra o Estado:

“Os homens se preparam para cantar e nessa noite […] sua meditação forja o acordo sutil de uma alma e de um instante sobre as palavras que irão dizê-lo. Uma voz logo se eleva, de início quase imperceptível, de tão interior que ela é, murmúrio prudente que ainda nada articula antes de se dedicar à busca paciente de um tom e de um discurso exatos. Pouco a pouco, porém, ela se intensifica, doravante o cantor está seguro de si e, subitamente, glorioso, livre e contraído, seu canto brota. Estimulada, uma segunda voz se junta à primeira, depois outra; elas proferem palavras rápidas, como respostas a questões que elas sempre previram. Agora os homens cantam todos juntos. Permanecem imóveis, o olhar um pouco mais perdido; eles cantam todos juntos, mas cada um canta seu próprio canto. Eles são donos da noite e cada um pretende ser dono de si.”

É extraordinário constatar como os povos mais oprimidos sabem se forjar uma potência poética que por si só significa um levante em certas situações — coloniais, por exemplo — nas quais o poder político está fora de alcance e, com frequência, não é nem mesmo desejado. No exemplo descrito por Pierre Clastres, as mulheres também tomam a palavra e seu canto manifesta, então, como por tradição, um patos particular: “o canto das mulheres jamais é […] alegre. Os temas de suas canções são sempre a morte, a doença, a violência dos Brancos e, na tristeza de seu canto, as mulheres assumem toda a dor e toda a angustia do povo Aché.” Mesmo entre os Guayaki, insiste Pierre Clastres, “o homem é um animal político”: mas retorna ao canto para expressar a alternativa de um outro desejo político, o de “não ser mais o que se é” quando se é oprimido. Em 1903, em sua obra fundamental As almas do povo negro, William Du Bois consagrou um capítulo inteiro aos cantos de dor. Bem mais tarde, Jerry Silverman conseguiu, sob o título A Chama Imortal recolher um conjunto de cento e dez canções — em dezesseis línguas diferentes — inventadas em meio aos tormentos do Holocausto.

Desse modo, cantam sem-fim — como uma outra resposta invocatória e reconvocatória ao não finito da história — os povos oprimidos. Lutos, cóleras e desejos mesclados. É a música dos párias, dos sem-nome, dos revoltados, dos exilados, dos proletários. Temos a música armênia, os rebetiko das populações gregas atiradas ao mar pelos turcos. Há os mineras (cantos das minas), ou os carceleras (cantos das prisões), o canto jondo cigano-andaluz, do qual José Luis Ortiz Nuevo e Alfredo Grimaldos mostraram o conteúdo essencial social e subversivo. Temos os tangos políticos do submundo de Buenos Aires, recentemente coletados por Javier Campo e Ofelia Flores. Existem, sem dúvida, todos os cantos da luta política na Europa, desde a Revolução Francesa, até seu elemento anarquista, cuja história Larry Portis retraçou. Existem cantos políticos que foram inventados e ressoam por toda parte no mundo, desde a Catalunha até a Cabília, na Argélia, ou do México até a Itália, dos quais um colóquio realizado recentemente tentou esboçar uma cartografia geral com o título Cantar a Luta.

Dizem com razão que esses cantos — essas práticas musicais em geral — são “populares”. Nessa expressão, ainda é preciso não reconduzir as hierarquias acadêmicas nas quais erudito e popular se ignorariam reciprocamente. As lamentáveis polêmicas que opuseram Arnold Schönberg e Bertolt Brecht, desde seu exilio político em Los Angeles, polêmicas entre música de vanguarda e música do povo, certamente não podem mais ser levadas em conta a partir de suas opiniões isoladas e hostis. Archie Shepp, citado por Philippe Charles e Jean-Louis Comolli em sua obra Jazz livre, poder negro, afirmava que “não é possível ver três crianças e uma igreja explodirem sem que alguma coisa permaneça em sua própria experiência cultural. A vanguarda é [exatamente] isso”. Considerada de uma perspectiva na qual a memória da música Hobo [música boêmia] — com a figura marcante do cantor lumpemproletário Joe Hill que, nas primeira décadas do século XX, foi cognominado “trovador da revolta” em razão de suas palavras de ordem simultaneamente poéticas e políticas — bem como a grande tradição do blues caminhavam lado a lado, com um espírito de experimentação sobre as formas musicais que ia de encontro aos desejos políticos emancipadores dos negros americanos nos anos 1950 e 1960.

O fato de o jazz ter sido literalmente “mal compreendido” por Theodor Adorno — mas estávamos em 1937 — nada exime do caráter surpreendente do primeiro, nem tampouco das exigências filosóficas do segundo. Na opinião dos nazistas, a música de Arnold Schönberg ou de Alban Berg não era menos degenerada do que a das orquestras de jazz. E as “utopias sonoras” da música erudita contemporânea, como foram denominadas por Laurent Feneyrou, não provocaram menos levantes — até mesmo em suas questões políticas, por vezes manifestas, como aconteceu com o compositor Luigi Nono — com os clamores magistrais de John Coltrane, Albert Ayler ou Ornette Coleman. É surpreendente que em seu primeiro grande livro de filosofia política, O Espírito da utopia, escrito entre 1915 e 1917, Ernst Bloch quis separar a questão das formas da questão estética: uma oportunidade para chegar a uma verdadeira “filosofia da música” que constituiu a parte central dessa obra de um marxismo bastante ortodoxo. Isso porque na opinião de Ernst Bloch, toda forma — sonora, visual ou literária — é capaz de surgir no espaço público “como um dom visionário transformado”. Desse modo a forma se revela um “signo anunciador”, e até mesmo o segredo de nós mesmos (exatamente porque ela sempre volta a representar) o tempo e o lugar rememorado. Essa seria a significação essencialmente anunciadora, “apocalíptica” e utópica, da forma estética entendida como desejo do outro — outro tempo, outro lugar, outro regime semiótico, outro mundo político — no levante de nós mesmos.

Nós mesmos: ou seja, nossos corpos em movimento. Todo corpo em movimento também poderia ser considerado como um “corpo da Liberdade” — e relembremos que Delacroix retomou a dinâmica dessas antigas figuras de ninfas que denominamos “Vitórias” em marcha. Todo corpo manifestante não seria como a proa de um pesado navio que avança atrás dela? Essa proa, por sua vez, possui suas próprias proas: uma frente que “faz frente” e olhos que “ardem de desejo”, por exemplo. Mas também a boca que , em geral, é “o começo, ou, se quisermos, a proa dos animais”,  como escreveu Georges Bataille na revista Documents: “Nas grandes ocasiões, a vida humana ainda se concentra bestialmente na boca, a cólera faz ranger os dentes, o terror e o sofrimento atroz fazem da boca o órgão de gritos  lancinantes” — coisas às quais se oporiam, por exemplo, a expressão de um funcionário de banco com “o caráter de constipação rígida [de sua] atitude estritamente humana, o aspecto magistral da face boca cerrada, bela como um cofre-forte.” A boca se escancara para clamar, para reclamar, para transgredir, seja por um processo de “regressão”, comentado por Pierre Fédida, a partir de Bataille, em seu livro Por onde começa o corpo humano.

Os “corpos da Liberdade” avançam, bocas na frente. Bocas abertas entoando seus cantos de convocação ou sua reclamação fundamental. Ao mesmo tempo, vamos repetir, os braços se erguem: é como se, ao se exporem, os corpos manifestantes se abrissem para o mundo e quisessem abrir o próprio mundo com o gesto de empunhar os braços, de seus braços erguidos à frente. Não existe, porém, nada de humano — menos ainda de político — que não seja aparelhado, meditatizado. O fato de os corpos manifestantes se manterem perpetuamente entre expressão e representação, na análise de Emmanuel Soutrenon ou Dominique Memmi, isso não impede que imagens, ou todo tipo de objetos, tenham a função de intermediar a reivindicação em causa, agitadas pela força dos braços com o intuito de desempenhar seu papel no espaço sensível dos levantes. É preciso, então, se perguntar: o que empunham os braços dos sujeitos em levante. O que braços como esses agitam, sublevam ou projetam no ar?

Primeiramente, suas próprias mãos, ou seus punhos. Lembramos que no Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, os punhos dos moradores de Odessa, revoltados com a morte injusta do marinheiro, se crisparam de cólera — cada um por si — antes de se erguerem unanimemente em sinal de revolta que, na ocasião, era muito mais do que uma simples expressão afetiva: punhos erguidos todos juntos que, a partir de então, se tornaram o emblema gestual por excelência da reivindicação comunista. Já em A Greve, os braços se ergueram com as mãos abertas para o céu, clamando, por assim dizer, seu desejo de emancipação. Um pouco mais tarde, Jean Jaurès iria arengar as multidões do Pré-Saint-Gervais com o punho do braço direito cerrado — marca da intensidade —, e o do esquerdo firmemente agarrado à bandeira vermelha hasteada acima dele. Tratava-se de uma versão antimilitarista — o próprio tema desenvolvido em seu discurso — de A Liberdade guiando o povo, na qual a bandeira era agitada à direita e o fuzil com baioneta à esquerda, versão encontrada também na imagem de Gustave Courbet impressa na revista A salvação pública na época da Revolução de 1848.

Uma célebre fotografia de Willy Ronis, feita em 1938 na sessão de estofamento das fábricas Citroën, de Javel, em Paris, mostra uma mulher que arenga seus camaradas. À frente de sua boca está seu braço erguido. Na extremidade do braço um indicador apontado em direção a um ponto qualquer do espaço exterior. Ela segura uma pequena folha de papel. Ela incita os trabalhadores a reivindicarem seus legítimos direitos. E, naquele mesmo dia, a fazer greve. Ela informa igualmente, como o próprio Willy Ronis testemunhou, as ações tomadas pela CGTU, da qual ela era militante, para reiterar a “solidariedade com os cidadãos da Espanha”. Seu nome era Rose Zehner. Assim que a greve terminou, ela foi afastada da empresa e só obteve reconhecimento público bem mais tarde, quando a fotografia — que era muito subexposta para encontrar lugar na revista comunista Regards, para a qual era destinada — foi finalmente publicada em 1980. Uma maneira de constatar que, em todo caso, o braço erguido acompanha a palavra do levante: ele a prolonga e difunde em direção ao outro, quando se trata, como nesse caso, de reunir um grupo por uma causa política. Além disso, o braço erguido concentra diversas operações: ele abre o espaço à frente para um outro lugar, e, consequentemente colabora para ressubjetivar qualquer um que tenha razões para “reivindicar” em um grupo que, coletivamente, irá “fazer reivindicações no espaço público”.

Nesse sentido, o gesto de Rose Zehner — e das passionárias em geral, desde a veemência das mães trágicas, estudadas por Nicole Loraux, até as célebres arengas de Dolores Ibarruri, em Madrid, de Federica Montseny, em Barcelona, e em outros lugares também — encontra seu prolongamento contemporâneo no gesto simples, mas extraordinariamente potente, inventado, ou reinventado, pelas feministas, no início dos anos 1970. Como bem lembrou Laura Corradi, esse gesto “faz parte da linguagem de sinais utilizada pelos deficientes auditivos, os surdos e pessoas com deficiências da fala: ao abrir o indicador e o polegar de cada uma das mãos formamos a letra L, quando as extremidades dos dois polegares e dos dois indicadores se juntam forma-se um triangulo, signo da vagina, utilizado em nosso país [a Itália] no decorrer das manifestações feministas dos anos 1970. Trata-se, porém, de um signo usado na mais alta Antiguidade” e que remonta, pelo menos, à civilização suméria. Nesse caso, ele foi reapropriado como desdobramento feminino do V da vitória, como signo de rebelião, como imagem do sexo feminino assumido através de uma ressubjetivação política e pública.

Ilaria Bussoni o denominou, com razão, um “gesto de autorrealização”. As mulheres efetivamente se reuniam para expor do alto de seus braços erguidos, à frente de si próprias, a imagem gestual do que constituía, simultaneamente, a parte mais íntima de sua anatomia — lugar do prazer, mas também do sofrimento comum de se ver coisificada ou controlada pela predação machista — e o elemento reivindicado de sua liberdade sexual ou de sua decisão quanto ao gênero. Tratava-se, acima de tudo, de uma ressubjetivação auxiliar, um “novo sexo” inventado, ainda nas palavras de Ilaria Bussoni, que subitamente, surgia no espaço público entre as mãos dessas mulheres. Gesto de sexo: que belo paradoxo! Esse não foi um gesto sublimado, “pleno” e “seguro de si”, de tomadas de partido, de braços simplesmente erguidos na vertical, de punhos cerrados, ou, como se vê algumas vezes, de mãos imitando um revólver apontado para o inimigo. Foi um gesto de desejo que indicava uma relação de si com o outro, que designava o espaço interior de cada um, que podia estar aberto para o mundo comum, ou podia desenquadrar, ou enquadrar à sua maneira.  Ele enfrenta (por que está erguido em frente) e, ao mesmo tempo, deixa passar (pois esboça uma abertura). Ele assinala, com isso, a afirmação de uma fissura — ou de uma nova dialética — em nossas habituais linhas de divisão no que diz respeito às relações entre o mundo subjetivo e o mundo público, o desejo e a política.

Talvez não fosse por um mero acaso que, inventado nos anos 1970, esse gesto evocasse igualmente a forma em losango escolhida por Jacques Lacan para indicar a relação de “punção” no que ele denominava o “fantasma fundamental”, que liga e desliga um sujeito ao objeto que ele deseja. Como dizia ele, em seu seminário de 1959 sobre O Desejo e sua interpretação, essa relação “assegura ao suporte do desejo sua estrutura minimal”. Essa “estrutura minimal” já é complexa e, para completar, dialética: ela “se complexifica pelo fato de ser em uma relação mediadora com o fantasma que o sujeito se constitui como desejo”. Por isso, ela é o que faz com que “o sujeito se entregue à medida em que se enfraquece” em sua relação com o objeto no mundo real. Aqui, essa seria, então, uma maneira complementar de compreender o gesto feminino: uma forma dada, reafirmada, dirigida, mas também uma “forma da ruptura” — intrínseca ao desejo —, que Lacan desenvolvia na época, reiterando que essa relação nos faz compreender, fundamentalmente, que “todo sujeito não é um“. O que, a seu modo, as feministas clamavam em público. “Gesto-punção” por isso mesmo: um gesto que simultaneamente corta e junta, separa e reúne. Gesto do compartilhamento por excelência, no sentido dialético que essa palavra poderá assumir na ordem do desejo, bem como na da política, em algum lugar entre uma imagem de revolta e uma imagem de esperança. Coisas que obras decisivas de artistas como Ana Mendieta, Valie Export, Cindy Sherman ou Helena Almeida desvelam no que se denomina “cultura visual feminista”.

Que gestos são esses que se expressam por intermédio de nossos braços erguidos? O corpo que espera ainda tem as mãos vazias. O corpo que resiste procura outra mão para segurar a sua e ampliar sua ação. Quando precisa se render e se sente condenado, ele ainda lança as palmas da mão em direção ao mundo — ou rumo aos tempos futuros — em um gesto de desafio desesperado. O corpo sublevado se posiciona à frente de modo mais aparente e alegre. Mas quais são suas estratégias, seus aparelhos de protensão, de progressão? A resposta é de uma inventividade sem-fim, um grande não finito de escritos, de imagens e de objetos. No conflito, previsto nas manifestações violentas, usam-se sobretudo a funda, o coquetel Molotov, o paralelepípedo, ou até mesmo uma simples pedra. Em casos extremos de guerras civis ou de guerras de ocupação, como a que Goya representou em sua tela Desastres de Guerra, é uma mão inexperiente, uma mão de mulher, que ousa armar uma peça de artilharia quando todos os combatentes ao seu redor já estão mortos. No curso de sua pesquisa sociológica sobre as Estratégias da rua, Olivier Fillieule retirou do serviço central da CRS, Companhia Republicana de Segurança francesa uma fotografia que mostra, depositados sobre um pano branco, os objetos confiscados no levante de Creys-Malville, em 1977 — fundas, porcas de metal, ferros de solda — expostos como troféus de guerra.

As maneiras não violentas são ainda mais inventivas e variadas: como se fosse preciso simular uma arma, um gesto, ou falsear uma imagem usando o menor objeto ao alcance. Sem dúvida alguma há a bandeirola que precede os manifestantes e que, de qualquer modo, clama em nome deles. Philippe Artières consagrou a ele uma útil monografia reduzindo-o à dimensão única de “cartaz escrito”. A bandeirola é tanto uma superfície de visibilidade como de legibilidade: por exemplo, constitui um sistema ao lado das bandeiras que com frequência saturam o espaço sensível das manifestações. Ele é quase sempre figurativo. Se Henri Cartier-Bresson cruzou o mundo incansavelmente a fim de fotografar tudo o que pudesse dos cortejos de manifestantes — tarefa infinita sem sombra de dúvida, arte do não finito diante da história — foi porque para ele a relação dos corpos com os estandartes assemelhava-se a uma forma antropológica exemplar da vida social na qual, cada pessoa caminha no levante de todos e sob o olhar de todos.

Razão pela qual ninguém se contenta em erguer os braços para tomar a palavra, como acontecia nas assembleias de estudantes, em 1968, ou para indicar ao cortejo de manifestantes o caminho a seguir. Sempre existem imagens  que os sublevados empunham nos levantes: são bandeiras que, por vezes, assumem a dimensão lírica e infantil de grandes cervos voadores, são balões de gás, alguns imensos e surpreendentes, com os quais as forças policiais não sabem mais o que fazer, tampas de panelas com as quais se fazem panelaços, mas que também são imagens de escudos protetores ; construções carnavalescas de material reciclado parecidas com charretes festivas (por exemplo uma bicicleta-megafone ou uma grande catapulta feita de ursos de pelúcia, expostos na coleção Objetos de Desobediência, reunidos no Victoria & Albert Museum, de Londres, em 2014), mascaras ou disfarces, como se vê nos feministas ou nos “zaps” do Act Up, estudados por Victoire Patouillard em um artigo da revista Sociétés Contemporaines, em 1998. Como se nessas mascaradas fosse preciso reinstaurar a “política do riso”, inerente às sátiras e às caricaturas do passado, ou então reproduzir as “festas de loucos” das quais Michel Foucault, que as assistiu pessoalmente, percebeu a profunda dimensão blasfematória.

Razão pela qual, de maneira semelhante, os membros aguerridos do exército zapatista, em Chiapas, se dedicaram tão pacientemente a bordar seus tecidos figurativos e a confeccionar suas bonecas meio-tradicionais, meio-propagandistas. Por toda parte, os que protagonizam levantes fabricam imagens que exibem e fazem circular. Foi fato notório que, em maio de 1968, paralelamente à intensa atividade dos fotógrafos e cineastas, as prensas tipográficas, litográficas e serigráficas funcionaram a pleno vapor. Quatro anos depois, alguns artistas pintores da “Cooperativa dos Malassis” se viram obrigados a utilizar os quadros que pintaram para uma exposição — uma exposição oficial encomendada pelo Presidente Georges Pompidou, e que eles haviam decidido desertar — como estandartes figurativos ou escudos improvisados diante de um regimento da gendarmaria, incapazes, então, quem ou o que “verbalizar”. Os artistas também manifestam, as manifestações se revestem de todo tipo de invenções formais.

Essa é a origem da proliferação das marcas visuais e das “cores manifestantes”: as da “revolução laranja”, na Ucrânia, ou do Black Bloc, por exemplo. É a origem também da escala quase industrial da produção de camisetas e de bottons militantes. As mais comoventes, no entanto, são as imagens ampliadas que os manifestantes agitam, e que representam aqueles cujo recente desaparecimento provocou lágrimas e para quem se reclama justiça: foi o que aconteceu em Paris, nos funerais das vítimas do massacre de Charonne, em 1962 — cortejo que também foi fotografado por Henri Cartier-Bresson —, no momento trágico dos desaparecidos argentinos, em 1983, bem como, no mesmo ano, na  Marcha pela Igualdade, quando abrindo o cortejo estavam as fotografias dos jovens franceses de origem magrebina assassinados pela polícia francesa.

Não são apenas os livros de filosofia ou de literatura que são brandidos simultaneamente como imagens e como escudos contra a polícia: é o caso do Book Bloc. Da mesma maneira que sabem confeccionar máscaras contra os gases lacrimogêneos — uma garrafa de plástico é quase suficiente para isso —, os manifestantes por vezes fabricam grandes escudos em forma de livros. Entre duas placas de acrílico, basta espalhar duas camadas de espuma de borracha de um lado, do outro um pedaço de papelão duro, e representar sobre a face anterior do escudo a capa de título do livro de sua escolha. O que se pôde ver nas insurreições de Londres, em dezembro de 2010, foi um grande Espectros de Marx proteger um manifestante dos cassetetes da polícia. O espaço sensível do levante assume, então, uma estranha figura: como se uma imensa biblioteca se espalhasse pelas ruas para fazer com que sua reclamação fosse ouvida. Não se trataria, uma vez mais, de um fenômeno de ressubjetivação? Diante dos cordões policiais, dos cassetetes, dos Flash Ball, ou dos lança-chamas, não são efetivamente esses livros, cada um com sua “mensagem”, que doravante tomam a palavra e se agrupam para fazer ouvir o direito dos povos? Foi assim que, em Roma, Mil Platôs protestava ao lado de A República, ou de Dom Quixote, da Ética, ou das Almas mortas. Em Londres, A Insurreição que vem caminhava ao lado de Ulisses e de Fim de Parte; deliberadamente pintados de cores vivas, todos esses títulos escondiam das forças da ordem o rosto daqueles que, sem dúvida, os haviam lido e tinham decidido levá-los nos braços erguidos como seus porta-vozes.

É simultaneamente significativo e banal constatar que, na imagem da manifestação de Londres, uma câmera de vídeo foi dirigida —ela também erguida nos braços — para o ponto de contato entre a polícia e os militantes do Book Bloc. Nos dias atuais, no mundo inteiro as pessoas se manifestam com um telefone celular, utilizado como câmera ou máquina fotográfica, agitado no espaço real e imediatamente colocado em rede no espaço digital. O que faz com que as imagens sejam utilizadas bem além de sua simples função informativa ou representativa: por essa razão, elas podem também funcionar, psíquica e socialmente, como operadores de ressubjetivação.  É espantoso constatar, por exemplo, que Che Guevara precisou percorrer seus próprios campos de combate com uma máquina fotográfica a tiracolo: o importante para ele era documentar o estado das populações indígenas, fazer retratos de seus amigos na prisão, imortalizar as paisagens do maqui cubano ou, mais tarde, as grandes manifestações em Havana.  Em meio a tudo isso — como mostra muito bem a coletânea Che fotógrafo, organizada por Joseph Monzó, em 2008 — era preciso para ele se deter também nas ruinas antigas e, além disso, se sacrificar, ao que parecia quase um ritual compulsivo de autorretrato, como se fosse exigido da imagem que ela se colocasse na interface mais íntima, afetiva ou estética de sua “subjetividade” e de sua “figura” de revolucionário histórico.

Em contrapartida, quando percorremos a vida e a obra de Tina Modotti, ambas extraordinárias, deparamo-nos imediatamente com essa potência — tão frágil que pode cessar a qualquer instante — que as imagens possuem de refigurar um indivíduo sensível a partir de seus desejos mais fundamentais, da sexualidade até o fervor revolucionário. Nos dias atuais, nas florestas insurgidas de Chiapas, a “participação das mulheres no governo autônomo”, explicada em grande parte do Manual de la Escuelita Zapatista (no qual se escreve aos Zapatistas para não separarem o masculino do feminino), é acompanhada igualmente de um trabalho de imagem. Como Guiomar Rovira revelou em Mulheres de Milho, e Rocío Martínez analisou posteriormente, em 28 de março de 2001, uma mulher indígena tomou a palavra no Parlamento Mexicano — quando todos esperavam pelo subcomandante Marcos — e seu discurso foi prolongado na prática de produção de imagem das mulheres de Chiapas feitas por elas mesmas. Essas camponesas, cuja vida cotidiana era muito difícil, aprenderam a usar máquinas fotográficas e câmeras de vídeo a fim de construir um ponto de vista inerente à sua própria vida de luta política.  Já em 1972, o artista mexicano Francisco Toledo, com a ajuda de Macario Matus, Elisa Ramírez e Vitor de la Cruz, conduziu uma experiência semelhante no contexto da luta política dos camponeses de Juchitán, no estado de Oaxaca: a câmera transformava-se, assim, em um instrumento de ressubjetivação nas mãos — na força dos braços erguidos — dos próprios camponeses. O que aconteceu também no Brasil com o Cinema Novo, ou com as experiências cinematográficas portuguesas no tempo da “Revolução dos Cravos”. E que ocorreu igualmente na França, por meio da intensa atividade dos grupos de vanguarda cinematográfica que se fraternizaram com os operários em luta e com os grupos de ação política.

Sem dúvida alguma, continua difícil realizar os próprios sonhos e inventar uma vida melhor, desassujeitada e ressubjetivada. Mas produzir imagens livres para representar a si mesmo, sua memória, seu desejo, seu destino — em vez de ser assujeitado ao ponto de vista dos senhores, que também são senhores das imagens — isso já constitui um avanço considerável no próprio plano da imaginação política.  O exemplo da “mulher com a câmera” no México, ou em Chiapas, bem como o de Tina Modotti, nos relembra uma condição essencial da prática do espírito, tal como a definia Walter Benjamin, em 1934, em um contexto de luta contra o fascismo: é muito mais crucial ser produtor de suas imagens do que ser “artista” em geral, mesmo “engajado” em uma causa específica. É um completo contrassenso pensar em reduzir as relações da estética e da política a uma relação unívoca a ser estabelecida entre certos artistas e certas ideologias políticas, como reiterou, ainda recentemente, uma coletânea de estudos intitulada Artistas e partidos.

Benjamin protestou veementemente contra a trivialidade — e mesmo o perigo — dessa relação de equivalência: não é a “tendência” que conta, ou seja, a afiliação de uma obra a um partido político, seja ela romance ou peça de teatro, poema ou fotografia, mas sim o que Benjamin denominou o “conteúdo”. Melhor ainda, os dois devem funcionar recíproca e dialeticamente, fora de qualquer oposição entre “conteúdo” e “forma”: “A tendência de uma obra política não pode funcionar politicamente se não funcionar também literariamente”, afirmava ele. O que poderia fundamentar uma possível distinção entre “tomar partido” e “tomar posição”, como demonstra em particular a relação, com frequência muito mal compreendida, que Benjamin manteve com Bertold Brecht. Antes de mais nada, o que importa compreender é que devemos nos constituir como livres produtores das imagens que propomos, eventualmente agitadas com a força de nossos próprios braços erguidos — mas também entre as páginas de um livro de bolso — no espaço público. Sobre essa questão, Benjamin escreveu que é necessário um “tratamento dialético”: “É preciso integrá-lo em contextos sociais vivos”, mas também em contextos específicos, técnicos, nos quais uma imagem pode ser produzida. “O conceito de técnica representa o ponto de partida dialético a partir do qual a oposição estéril entre a forma e o conteúdo pode ser ultrapassado”.

A associação dessas duas palavras, técnica e dialética permite compreender o que Benjamin teria escolhido para se referir ao trabalho de Sergeï Tretiakov: produzir uma imagem no espaço político, afirmava ele, implica redialetizar e ressubjetivar seu desejo em relação às circunstâncias — aos “perigos” — históricos. É, além disso, redialetizar e ressubjetivar suas próprias técnicas de invenção formal, principalmente confrontando-as ou compartilhando-as com outros: ou seja, quando o escritor não tem mais medo de usar fotografias (como Alfred Döblin ou Georges Bataille), quando o fotógrafo não tem medo de começar a escrever (como Man Ray ou Walker Evans). “O próprio trabalho toma a palavra [e] a competência literária não se fundamenta mais na formação especializada, mas na formação politécnica (in der polytechnischen Ausbildung begründet), e se transforma em uma espécie de bem comum”.

É desse modo, prossegue Benjamin, que a “politécnica” do autor como produtor permite “implodir as barreiras” e “ultrapassar essas oposições que impedem a produção da inteligência”; em primeiro lugar “a barreira entre escrita e imagem”. Uma maneira de dizer que é necessário se reapropriar das técnicas especializadas para, a partir delas, desconstruir os conformismos e empreender exatamente o que Brecht denominava sua “mudança de função” (Umfunktionierung), da qual um dos procedimentos essenciais pode ser reconhecido na montagem das heterogeneidades: o mesmo procedimento de Aby Warburg em seu atlas Mnemosine, de James Joyce em Ulisses, do próprio Benjamin em seu Livro das Passagens. Isso, porém, não pode se efetivar se o paradoxo das heterotopias e o anacronismo do “retorno às origens” não for produzido — por isso o interesse de Brecht pela poesia épica e pelos “elementos mais originais do teatro” — implicados na mais ardorosa urgência histórica e política, mesmo que esse ardor pareça, ou não, inatual aos olhos da opinião majoritária.  Jamais nos sublevamos melhor do que quando levantamos barreiras e ultrapassamos limites. E é primeiro na matéria, no húmus do tempo — no perpétuo non finito e no entrecruzamento das temporalidades — que é preciso tentar o acesso.


Levantes, exposição realizada em 2017, no Sesc Pinheiros | Foto: Matheus José Maria

Confira também (abaixo) a reprodução da brochura editada para a mostra Levantes (2017) — uma publicação complementar, distribuída gratuitamente à época da exposição, repleta de imagens, com textos de Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, do curador e da diretora do Jeu de Paume, Marta Gili.

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