Leia “28”, conto inédito da escritora Natalia Timerman

31/12/2022

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Leia a edição de janeiro/23 da Revista E na íntegra
  Ilustrações: Luyse Costa

À memória de Luiz Augusto Garai e Rogério de Sá

Desde que minha mala se perdeu num voo São Paulo – Campo Grande, nunca mais passei incólume à espera na esteira de bagagem. A viagem era uma visita ao meu namorado, que vivia em São Paulo mas tinha ido passar as férias com a família, e me ver de repente sem as roupas que eu havia escolhido a dedo, as minhas melhores, foi um exercício e tanto de desprendimento. Lembro disso agora, diante do espelho, sabe-se lá por que caminho de memória, por que dobra de tempo. O vestido que cobre meu corpo não tem semelhança alguma com a roupa cinza que comprei há duas décadas para usar até que minha mala chegasse; reparando no tecido colorido de que não gosto muito, mas que uso semana sim, outra também, me vem à mente que me mostro para o mundo todos os dias numa versão chinfrim, com as roupas que não me incomodo em gastar, guardando as preferidas para as tais ocasiões especiais, como se a vida fosse feita delas, só delas.

Túnel aberto, entro por ele. Como entender os fragmentos de sonho que me vêm de repente, nas situações mais inusitadas, compondo um pano de fundo incontrolável para o pensamento? Isso acontece com outras pessoas também? Um pano de fundo que vem antes, até, do pedaço de sonho, como um teor, uma aura que se desprende casualmente de algum lugar do meu cérebro invadindo a consciência. Pode ocorrer a qualquer momento e muda minha ligação com o instante no qual estou ancorada: no trabalho, no ônibus, lendo alguma coisa; na maioria das vezes, é o sonho da última noite que invade o dia com sua atmosfera, mas pode acontecer de ser um antigo, o que é mais enigmático. Quase nunca consigo relacionar o que vem desse passado onírico ao momento em que chega. Haja análise. Mas dessa vez não foi um sonho, foi uma lembrança, se é possível diferenciar um do outro. Um bloco de sensações, toda uma época que caiu de repente como uma bigorna diante do espelho, diante de mim. Meu namorado não viajava nos dias 28, nem ninguém da família dele, porque alguns acidentes rodoviários fatais, verdadeiras tragédias, haviam levado parentes sempre nessa data, em meses variados. A superstição se estendeu a viagens aéreas; sei então que não foi num 28 que cheguei a Campo Grande sem mala, mas em qualquer outro dia de um janeiro longínquo.

Não existia celular, eu nem dava notícias para os meus pais, apenas vivia aquela vida outra, jovem, de noites na varanda com os amigos dele. Fazíamos música, cantávamos, de dia havia piscina e muito calor, de noite fumaça e álcool. Os amigos do meu namorado eram músicos. Me impressionava como eles eram bons, e meu namorado cantava, e cantava bem com seu vozeirão. Era um deleite, uma época feliz, o futuro inteiro aberto diante de cada um de nós ali, o meu, o do Léo, Nola, Gugu, Daniel, Rapha, Evelise, Benga. O festival sendo apenas a coroação disso.

Sim, houve um festival. Eles apresentariam duas músicas, acho, e haveria um vencedor. Não, não sei se eram duas músicas, só lembro de uma: “meu amor, sabes bem onde me encontrar, entre as (esqueci), nas esquinas das Minas Gerais, nos embalos desses pantanais”, sim, era algo assim o refrão. A música era linda, na plateia estávamos nós, a mãe dele, provavelmente o irmão, mas só me lembro da mãe. Eles cantaram e foi mesmo fantástico, e não só eu achei, porque eles ganharam o primeiro lugar. Eu queria que eles gravassem aquela música, que fizessem um disco do qual ela fosse parte, que a nossa alegria pequena ganhasse o mundo.

Tampouco foi num dia 28 que a nossa ida a um show no Rio de Janeiro deu errado. Quer dizer, estamos vivos, o Léo e eu; talvez tenha dado certo. Mas não conseguimos chegar ao show de uma de nossas bandas preferidas por uma conjunção absurda e inverossímil de fatores. Os amigos dele chegaram; nós assistimos o finalzinho do show pela televisão, frustrados, abismados, tristes como se a vida só nos devesse felicidade.

Escritora Natalia Timerman narra os contratempos de uma viagem e uma superstição envolvendo o dia 28.

Foi assim: primeiro a avó do meu namorado caiu e precisou de uma cirurgia, o que reteve o pai dele, que nos levaria de carro, por mais alguns dias em Campo Grande. Mas tudo bem, o show era sábado, e ainda era segunda. Na terça, foi a vez do pai dele cair no banheiro molhado, e então decidimos sair sexta, quando a dor no quadril passasse e o permitisse dirigir. Assim foi. Pegamos estrada cedo, o dia estava claro e quente. Paramos para abastecer, seguimos viagem, íamos em bom ritmo, até que nos deparamos com um bloqueio da polícia rodoviária que nos obrigou a pegar desvios e estradas menores e definir uma grande volta para o trajeto até o show. Um pouco mais apreensivos dentro do carro, mas sem mencionar palavra alguma sobre isso, seguimos. Mais adiante no dia, um bom tempo depois da parada para o almoço, o barulho de um avião decolando vindo do capô do carro nos assustou. Estávamos no meio do Mato Grosso do Sul, numa estrada de terra, o pai do Léo tentou ver o que era, não achou o problema; conseguimos chegar até a cidade mais próxima, minúscula, que se chamava Carneirinho. O moço da oficina disse que conseguiria a peça para o dia seguinte pela manhã. Liguei para o meu pai, fizemos cálculos, se saíssemos bem cedo na manhã de sábado, daria tempo.

Passamos a noite em um dos últimos quartos disponíveis de uma casa em cuja fachada estava pendurada uma placa: Hotel. Havia escadas. Havia uma horta na cidade. Não vi carneiro algum. Era uma cidade com começo, meio e fim, praticamente um quadrado escondido no centro do país, onde eu provavelmente jamais pisaria se um avião não tivesse decolado dentro do carro.

O silêncio da noite. O quarto dividido entre nós três. A madrugada. E na manhã seguinte, a constatação de que nosso carro estava atravancado por diversos outros que haviam chegado para o casamento que ocorreria na diminuta cidade justo naquele fim de semana, somando visitantes festivos aos do enterro que calhava de ser também no mesmo dia, mas eu só posso estar inventando, isso é inverossímil demais.

Mas não. Foi isso mesmo.

Quando enfim conseguimos pegar estrada, estávamos no limite para dar tempo de chegar na hora exata do show. Não havia Waze, e placa alguma indicando o caminho para as grandes metrópoles na saída da onírica Carneirinho. Uns quarenta minutos de estrada depois, percebemos que havíamos percorrido todo aquele tempo no sentido contrário. Já não daria mais tempo.

Chorei como se não ver minha banda favorita em sua primeira passagem pelo Brasil fosse uma tragédia. O pai do meu namorado ficou tristíssimo diante de nosso desalento. Meu namorado mais me consolou do que se permitiu entregar-se à própria frustração. Mas a vida seguiu, e hoje eu sei que não ter ido à apresentação da banda favorita dos meus vinte anos é um evento mais memorável do que se eu tivesse ido.

A vida seguiu para nós.

Assumi a superstição de não viajar dia 28 por algum tempo, mesmo depois do término; não me lembro em que momento ela deixou de definir as datas em que comprava passagens. Uma hora simplesmente deixou, a vida foi mudando aos poucos e, quando percebi, já era outra.

Em algum dia que não era um 28, numa das estradas do país, não a que leva a Carneirinho, mas outra, um caminhão acertou o carro onde estavam Gugu e Benga, o baixista e o baterista da banda que ganhou o festival, junto de toda a família do Gugu.

Ninguém sobreviveu, e a música do festival nunca foi gravada. 

Natalia Timerman é escritora e tem várias obras publicadas, entre elas Desterros: Histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), a coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti, e o romance Copo Vazio (Todavia, 2021).

A EDIÇÃO DE JANEIRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

No mês em que acontece o Sesc Verão 2023, discutimos a relação entre as tecnologias e a prática físico-esportiva. A reportagem principal desta edição defende que usar o tempo livre para atividades que não movimentam o corpo favorece o sedentarismo, além de elevar o risco de doenças crônicas. No entanto, o texto também aponta que, quando utilizado de maneira equilibrada, o tempo em frente às telas pode motivar a prática de atividades físicas, por meio do uso de aplicativos e aparelhos que medem frequência cardíaca, gasto calórico, qualidade do sono, entre outros indicadores.

Além disso, a Revista E de janeiro/23 traz outros conteúdos: uma reportagem que percorre os caminhos de gestação de uma obra literária, desde o surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores; uma entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que conta sobre sua relação com a literatura brasileira, seu processo criativo e revela de que forma os antepassados guiam sua escrita; um depoimento com a cantora e compositora Ellen Oléria sobre música, teatro e afrofuturismo; um passeio visual por imagens que celebram o universo feminino indígena no universo das artes visuais; um perfil da médica Nise da Silveira (1905-1999), pioneira na humanização do atendimento psiquiátrico por meio da arte; um encontro com o jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, que fala sobre popularização de podcasts e luta antirracista no Brasil; um roteiro nostálgico pelas miudezas arquitetônicas de São Paulo, em celebração aos 469 anos da capital paulista; um conto inédito da escritora Natalia Timerman; e dois artigos que discutem a relação entre envelhecimento e inclusão digital.

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