Memórias de cor e festa

23/10/2023

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O pintor e escultor João Cândido é um dos homenageados da exposição “Festas, Sambas e Outros Carnavais”, no Sesc Casa Verde, e compartilha trechos de sua história de vida e arte

A infância no campo, com memórias ancestrais compartilhadas ao redor da fogueira, se mesclam aos encontros plurais proporcionados pela vida adulta, e dura, na metrópole, criando a identidade cheia de tempero e cores vivas das obras do pintor e escultor João Cândido da Silva, 90 anos.

Seu João é um dos grandes homenageados na exposição “Festas, Sambas e Outros Carnavais“, que inicia as atividades do Sesc Casa Verde e tem curadoria do Museu do Pontal e do sambista e sociólogo Tadeu Kaçula. Uma seção exclusiva para sua obra destaca sua história e obras, além de um filme contando sua trajetória, da qual a maior parte se dá no bairro da Casa Verde, zona norte de São Paulo. Foi ali que encontrou seu lar na gigantesca cidade, o futebol de várzea e até onde co-fundou a escola de samba Sociedade Esportiva Recreativa Beneficente Unidos do Parque do Peruche.

Mineiro de Campo Belo, João veio para São Paulo ainda criança com seus pais e os 18 irmãos. Por mais que sua mãe pintasse e esculpisse, demorou para reconhecer em boa parte dos filhos o ímpeto artístico que inicialmente encontrava vazão nas paredes, que eram rabiscadas com carvão. Daí ao reconhecimento público, não somente seu como da irmã pintora Maria Auxiliadora (1935 – 1974), são muitas as lembranças e reflexões que Seu João coleciona. O artista nos recebeu em seu ateliê e compartilhou um tanto dessa sabedoria e história de vida.

OS BAILES E O SAMBA

Quando nós mudamos aqui pra Casa Verde era muito quieto, muito mato, tinham duas ou três casas só, mas a cada dia chegava um morador novo. Eu e meus irmãos compramos alguns instrumentos e começamos a fazer baile em casa, os vizinhos gostavam e a cada vez o baile era numa casa diferente. Isso foi gerando uma ligação, uma harmonia entre as pessoas que moravam ali. Depois a gente foi ficando famoso de fazer samba, aí já começamos a andar pelos outros bairros e mandar poesia pros festivais de futebol de várzea.


O QUILOMBO PERUCHE

Ali por volta de 1965 no Peruche, era onde mais se concentrava o povo negro. Parecia um ponto de encontro, dava impressão que era automático, que os negros se encontravam tudo ali naquele meio entre a Rua Zilda e a Rua Ouro Grosso. Isso preocupava muito a polícia porque era muito negro junto, todo final de semana. Às vezes todo mundo ia dormir e ficava um grupo de dez, doze pessoas recordando música e cantando. Tinham as mulheres que cantavam muito bem, a Dircinha, Zoin, Ivonete, tudo personagem famosa do Peruche.


O INÍCIO DA CARREIRA

Depois que mudamos para São Paulo, levou muito tempo pra gente adentrar no mundo artístico, porque a gente teve que trabalhar em empregos diferentes, a dificuldade era outra, a agitação era outra. Era muita correria, eu trabalhava em fábrica, não dava para saber quais eram os materiais para pintar. Minha irmã Maria Auxiliadora trabalhava de empregada doméstica e guardava os quadros que pintava com guache. Até que um dia um dos meus irmãos começou a namorar a Raquel Trindade, filha do teatrólogo Solano Trindade. Ela foi em casa e descobriu que nós éramos artistas e de repente nós assumimos esse papel. Depois fomos conhecer o Embu e passamos a expor nossos quadros na casa do pai dela, que ele fazia como se fosse uma galeria. Aí o turista ia pro Embu, passava pela casa dele e gostava. Todos nós da família começamos a vender quadros assim. Foi como uma magia, começou tudo de uma vez, e a arte superou todas as dificuldades.


A INSPIRAÇÃO NAS FESTAS POPULARES

Eu comecei pintando o cotidiano, mas com o tempo minha mente foi buscando os movimentos de dança, muitas vezes usava o meu próprio corpo para pegar esses movimentos e chegar no ponto que chegou. Em Campo Belo, onde nasci, tinham danças folclóricas, de Moçambique, Congada, todas essas danças. Eu não fiquei muito tempo lá mas o pouco que eu vi das danças, dos instrumentos, do tipo dos negros e das mulheres dançarem, ficou gravado na minha cabeça. Em São Paulo cheguei a ver muitas festas folclóricas, como o Bumba Meu Boi, os palhaços de Folias de Reis. Minha pintura envolve a cultura paulista e a mineira.


A RESISTÊNCIA NEGRA

Com uns 10 anos eu era muito curioso: falou de história, eu estava encostado ouvindo. O lazer do povo do campo era se reunir em volta de fogueira e contar história, eu cresci dessa forma, tanto do lado do meu pai quanto da minha mãe. Meu pai pegava uma sanfoninha que ele tinha, cantava, tocava, e depois contava história do tempo deles. Ele sempre falava que a gente vinha de um povo muito festeiro, desde a senzala, e que depois que acabou a escravidão, o negro continuava com o mesmo costume de fogueira no fim de semana no quintal, de dançar e contar história. Ele falava que a gente tinha primos que eram malabaristas nos instrumentos de corda, de couro, instrumentos de jongo, que eram vários. Então quando comecei a fazer arte eu pensei em falar sobre o meu povo, mostrar a alegria do meu povo, como viviam e como vivem. A preocupação não era sobre “resistência”. A resistência para nós vinha de uma maneira comum! Nós sabemos que estamos resistindo a alguma coisa através do trabalho, da nossa mão de obra. A pintura não deixa de ser uma mão de obra e uma resistência.


O FAZER ARTÍSTICO

Numa maneira geral, na minha época, era muito difícil ser artista. Se a pessoa não tiver um espírito de persistência, na arte não fica, tem que trabalhar mesmo e gostar. A pessoa que gosta não abandona nem se estiver passando fome. Tem gente que fala que não pinta porque não tem dinheiro para comprar material, mas tem sim. Porque se você quiser pintar, pinta até com coisa que tem na cozinha. Quem quiser pintar, pinta. Mas quando se está pintando, tem que esquecer o lado comercial e se dedicar só à pintura. Tem que esquecer que está pintando pra vender; você está pintando porque tem que pintar, porque é pintor e deve isso pro povo. E a arte é assim: quanto mais você fizer, mais ela te dá motivo pra pintar. Se estiver passando dificuldade, aí é que tem que continuar.


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