Música de Cinema: playlist revisita o Brasil através dos filmes

20/12/2021

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Frame do filme Macunaíma (1969)

Por Fernanda Fava*

Em sua trajetória centenária, o cinema narrou e revelou muitos Brasis e suas diversas melodias. A playlist Música de Cinema homenageia a história do cinema brasileiro, por meio dessas trilhas sonoras quase indissociáveis de seus filmes, transitando por canções e composições marcantes de algumas das obras mais emblemáticas da nossa cinematografia ao longo do tempo. 

Desde os primeiros tempos do cinema sonoro, a colaboração entre compositores da nossa MPB e cineastas rendeu não apenas trilhas sonoras memoráveis, que funcionaram como importantes elementos narrativos, mas também visões de Brasil que ajudam a identificar como cada período retratou as muitas faces da nossa identidade cultural. 

Nos anos 1930, os filmes de Humberto Mauro traziam composições originais de Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnattali, influências do modernismo e uma busca por retratar as distintas realidades do Brasil. Ao mesmo tempo, as produções das chanchadas turbinavam as bilheterias incluindo números musicais em cena com os principais intérpretes da época, que já eram conhecidos da população pela rádio. Muitas marchinhas famosas de carnaval, sucessos de compositores como Lamartine Babo e Ary Barroso, eram lançadas antes no cinema, que também popularizou nomes como Carmen Miranda e Francisco Alves. 

Nas décadas seguintes, o modelo de produção industrial brasileiro, representado principalmente pelos filmes da companhia Vera Cruz, no interior de São Paulo, também souberam incorporar a tradição musical brasileira nas obras, ao mesmo tempo em que investia nas trilhas orquestradas por compositores e maestros nacionais como Francisco Mignone e Guerra Peixe, que não deixavam de conversar com técnicas e estética tributárias do grande cinema de estúdio europeu. Canções como Mulher Rendeira e Sodade, Meu Bem, Sodade – compostas especialmente para o sucesso de bilheteria O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, e criadas sob encomenda por Alfredo Nascimento, o Zé do Norte, que foi consultor de cultura sertaneja no filme – são até hoje muito conhecidas e associadas ao cangaço.  

Nos anos 1960, inspirado no Neorrealismo Italiano e na Nouvelle Vague, o Cinema Novo sai dos estúdios com a proposta de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, rodando em locações reais com personagens reais que colocavam em pauta as questões sociais brasileiras. Para isto, a trilha sonora dos filmes foi essencial, e cineastas como Glauber Rocha souberam valorizar novamente as composições emblemáticas de Heitor Villa-Lobos, mas também dialogaram com a tradição cancioneira dos trovadores nordestinos, como em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), filme no qual o narrador conta a história dos personagens por meio de versos cantados que foram inspirados no cordel. Nelson Pereira dos Santos resgatou o samba dos subúrbios cariocas, e Joaquim Pedro de Andrade apostou numa miscelânea de canções populares para associá-las aos personagens de Macunaíma (1969), inspirado na obra de Mário de Andrade. 

Já os cineastas do Cinema Marginal operaram um retorno às marchinhas das chanchadas, como forma de reforçar o tom de paródia e pastiche das obras. E isto fica muito claro no uso das marchinhas de maneira irônica em Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Julio Bressane. Mas o Tropicalismo também representou uma grande referência para o movimento. Podemos lembrar, por exemplo, que Gilberto Gil compôs a trilha sonora original de Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla, diretamente do exílio em Londres. A trilha, amplamente improvisada, mimetiza a própria narrativa do longa, que se alimenta em certa medida da liberdade de interação entre os atores. 

O Brasil vivia um dos seus períodos de maior repressão, no auge do regime militar. Enquanto, de um lado, censura e repressão asfixiavam a produção independente cinematográfica brasileira, com muitos cineastas exilados fora do país; e, de outro, o grosso da produção nacional em cartaz nos cinemas era financiada e acompanhada de perto pela estatal Embrafilme, paradoxalmente, os anos 1970 viram emergir algumas das maiores bilheterias da história do nosso cinema. Os populares Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976, e Dama do Lotação, de 1978, traziam trilhas de Chico Buarque e Caetano Veloso. 

O cinema da Retomada, nos anos 1990, significou um novo gás para a nossa indústria cinematográfica e dedicou atenção a trilhas originais. A melodia tema do filme Central do Brasil, de Walter Salles, apostou em pontuar, de maneira muito presente, os momentos dramáticos e emocionais da história, enquanto a trilha variada de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, pegou emprestadas sonoridades bem conhecidas da nossa MPB para dialogar com personagens que contam histórias baseadas em fatos reais dos jovens que cresceram nas favelas. 

Por fim, os anos 2000 viram despontar uma geração de cineastas pernambucanos que renovou a linguagem cinematográfica brasileira e soube aproveitar a riqueza e variedade musical do Nordeste, incluindo a herança do Mangue Beat, como é o caso da trilha original de Amarelo Manga, assinada por Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi. Na última década, o cinema brasileiro e sua crítica social, central em filmes como Que Horas Ela Volta?, Bacurau e Branco Sai, Preto Fica, continua reverberando de forma relevante e consistente para o público e para a crítica dentro e fora do país. E, com eles, viaja também a diversidade e o valor da nossa música. 

*Fernanda Fava é técnica de programação do Sesc Digital. Jornalista de formação, tem mestrado em cinema pela Unicamp e é entusiasta da história do cinema brasileiro.

Músicas da playlist:

1) Limite (1931), de Mário Peixoto – Gymnopédies nº 3 – composto por Erik Satie 

2) Alô Alô, Brasil (1935), de Wallace Downey, João de Barro e Alberto Ribeiro – Primavera no Rio, com Carmen Miranda 

3) O Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro – Impressão moura – composto por Heitor Villa-Lobos 

4) O Ébrio (1946), de Gilda de Abreu – O Ébrio, com Vicente Celestino 

5) O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto – Sodade, meu bem, sodade, composta por Zé do Norte, interpretada por Vanja Orico 

6) Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos – Voz do Morro, de Zé Keti 

7) Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha – trilha sonora original de Sérgio Ricardo 

8) Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade – Ceci e Peri, com Dalva de Oliveira 

9) Matou a família e foi ao cinema (1969), de Julio Bressane – Rasguei a minha fantasia, com Mário Reis 

10) Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla – Diga a Ela, composta e interpretada Gilberto Gil 

11) Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues – Xica da Silva, de Jorge Ben Jor 

12) Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto – O Que Será (à flor da pele), composta por Chico Buarque e interpretada por Simone 

13) Dama do Lotação (1978), de Neville D’Almeida – Pecado Original, de Caetano Veloso 

14) Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias – Pra Frente Brasil, de Egberto Gismonti 

15) Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles – Terra Estrangeira – de Zé Miguel Wisnik, interpretada por Jussara Silveira 

16) Central do Brasil (1998), de Walter Salles – Central do Brasil – trilha original de Antônio Pinto e Jaques Morelenbaum 

17) Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laís Bodanzky – Bicho de sete cabeças, por Geraldo Azevedo  

18) Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles – O caminho do bem, de Tim Maia 

19) Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis – Amarelo Manga, de Lúcio Maia e Jorge Du Peixe 

20) Durval Discos (2002), de Anna Muylaert – Mestre Jonas, de Sá, Rodrix & Guarabyra, e Besta É Tu, dos Novos Baianos 

21) Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes – Serra da Boa Esperança, por Francisco Alves 

22) Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz – Sonhos, de Peninha 

23) Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda – Volta, de Johnny Hooker 

24) Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós – Bomba explode na cabeça, de Mc Dodô 

25) Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert – Solidão nº 4, de Vitor Araújo 

26) Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro – Astronauta, de Os Nonatos 

27) Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – Não Identificado, composta por Caetano Veloso e interpretada por Gal Costa 

28) A Vida Invisível (2019), de Karim Aïnouz – Estranha forma de vida, por Amália Rodrigues 

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