O baobá frondoso da serra dos sonhos dourados

15/04/2023

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O baobá frondoso da serra dos sonhos dourados

Por Adriana Moreira
Considerada uma das maiores intérpretes do samba paulista nas últimas duas décadas. Tem três discos lançados e dividiu palcos e estúdios com Dona Ivone Lara em diversas ocasiões.

“Cantei na roda de pagodeiro, mandei a umbigada prá o terreiro. Toquei meu atabaque até o sol raiar” (Ailtinho/ Mario Luiz – Velha Guarda do Camisa Verde e Branco)

Começo meu conto de amor e saudade citando os versos desses dois compositores da velha guarda do meu trevo verdejante, onde nasci, cresci, me criei e me tornei sambista. Minha pertença. 

Volto um tantinho no tempo e chego em 2003, quando recém-saída da extinta ULM (hoje EMESP), formada em canto, iniciei meu ofício de cantadeira como backing vocal por quase dois anos. E, para minha felicidade, Dona Ivone foi a primeira. Fecho os olhos e relembro a emoção de vê-la chegar para a passagem de som. Músicas todas decoradas, as deixas, a pasta personalizada na estante (eu mesma fiz). Tudo organizado e eu, tremendo.

Ela chegou e trouxe um mundo junto. Voz calma e firme. Carinhosa, acolhedora. Me olhou, deu um sorriso, testou o microfone e passamos o som. Eu, neste momento, já chorava e sorria e me pegava pensando se era real.

Terminamos a passagem, nos dirigimos para o camarim do Sesc Pompéia. E eu, atônita.

“Foram me chamar, eu estou aqui, o quê que há?”. Pai amado! Lá vem ela, num vestido verde de paetê. Uma luz que iluminava o teatro todo. Eu não conseguia tirar os olhos dela, e esqueci por alguns minutos de fazer a resposta do coro. 

Voz embargada e o pouco domínio do corpo, era a respiração ofegante que eu  tentava não deixar ser captada.

Ela cantou, fez miudinho daquele jeito que só ela fazia. Os pezinhos não saíam do chão. Levitavam. A dança das Yás.

E eu fascinada com aquela mulher gigante, que lembrava a tia Matilde (in memorian). Em minha mente ficou tudo misturado. Memória afetiva, saudosa e vida real.

Aos poucos fui voltando e dando conta de responder o coro e os “lará raiás” mais soberanos da música brasileira.

Final de show, alma lavada. Voltamos ao camarim e por lá falamos sobre muitas coisas. Entre elas, Batatinha. E foi neste momento que nos conectamos um tantinho mais. Dona Ivone conheceu, conviveu e trabalhou com nosso mestre da cabeleira branca.  E nessa prosa toda, comecei a contar sobre meu projeto de pesquisa e disse que gravaria um disco somente com canções dele. Ela, envolvida com o assunto, entre uma fala e outra, relembrava uma música do mestre. Ficamos por ali mais algum tempo.

Terminamos trocando telefone e um abraço daqueles que só as mais velhas sabem dar. Me despedi com olhos marejados e com a promessa de contar as boas novas sobre meu primeiro álbum. Minha promessa foi cumprida. Os encontros em diversos shows, também. Até que em 2008 produzi o espetáculo “Damas bambas”, em que Dona Ivone era homenageada e convidada especial. Foram mais quatro dias de muito afeto, acolhida, prosa, contos e causos.

Dona Ivone chegou no estúdio e entre uma pausa e outra, sentávamos na cozinha pra comer bolo de fubá com goiabada, café, chá e torta de frango com catupiry. Tudo caseiro, com gosto de casa de vó.

Cantamos, relembramos e, de repente, eu me sentei no chão da cozinha ao lado da cadeira de Ivone e, em frações de segundos, lá estava eu com a cabeça no colo dela. Dona Ivone contando histórias e todos rodeados em volta, como se fosse um grande baobá. Na verdade, ela é. Dona Ivone é raiz eterna, é a mãe de todos. É serra de todos os sonhos dourados.

Motumbá, rainha!

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