POLIFONIA NA AVENIDA | Encontro com os carnavalescos da Grande Rio

28/02/2023

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À frente da Grande Rio, campeã na Sapucaí em 2022, os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad declaram sua paixão pelo samba, refletindo sobre alegorias, territorialidade e novas linguagens artísticas

Por Luna D’Alama

Leia a edição de março/23 da Revista E na íntegra

Aos 11 anos, Gabriel Haddad desfilou pela primeira vez no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, e se apaixonou pelo Carnaval. O deslumbramento com as fantasias da infância foi tanto que virou profissão. Desde 2020, ele e o parceiro de uma década, Leonardo Bora, são os carnavalescos da Acadêmicos do Grande Rio. Com um enredo sobre Exu – orixá de religiões de matrizes africanas considerado mensageiro entre as divindades e os seres humanos – a dupla venceu o Carnaval carioca de 2022 no grupo especial.

Doutorando em história da arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Haddad repetiu a parceria com Bora para desenvolver as fantasias da terceira temporada do programa The Masked Singer Brasil, na Rede Globo. Além disso, uma obra de arte assinada por eles – composta por um desenho do faraó Ramsés e um conjunto com sete esculturas gigantes chamadas Exunautas – integrou a exposição Desvairar 22, no Sesc Pinheiros. No fim do mês passado, ambos viram, novamente, a Grande Rio entrar na avenida, desta vez com um enredo em homenagem a Zeca Pagodinho, num desfile que conquistou o 6º lugar do grupo especial no Carnaval do Rio de Janeiro.

Neste Encontros, Haddad e Bora falam sobre a profissão e a arte que os unem, refletindo sobre identidades, territórios e visões de Brasil que as escolas de samba interpretam em forma de enredo a cada Carnaval.

Sete esculturas gigantes chamadas Exunautas foram criadas pela dupla de carnavalescos, e fizeram parte da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros até janeiro deste ano.
Sete esculturas gigantes chamadas Exunautas foram criadas pela dupla de carnavalescos, e fizeram parte da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros até janeiro deste ano. Foto: Carol Quintanilha

SER CARNAVALESCO

Leonardo Bora – O que é ser carnavalesco é uma pergunta que nos acompanha e atormenta diariamente. Há uma série de pesquisas acadêmicas, principalmente da antropologia, que tentam compreender isso. O professor Nilton Silva dos Santos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), categoriza o carnavalesco como um exemplo das novas profissões híbridas e fluidas da contemporaneidade, uma espécie de artista que transita por diversas linguagens. Há pessoas que o comparam a um diretor de cinema ou de ópera. Mas o fato é que não existe uma homogeneidade: se todos os carnavalescos do Rio de Janeiro ou de São Paulo fossem entrevistados, cada um narraria uma trajetória profissional totalmente diferente, e uma visão diferente  sobre quais são as atribuições  dessa carreira. A rigor, é um trabalho artístico que concentra muitas linguagens, tanto visuais quanto narrativas. E o carnavalesco pode ser autor do enredo, que é a história que vai ser contada pela escola, que vai se transformar em samba por meio do trabalho dos compositores e que, depois, vai se desdobrar em fantasias, figurinos e carros alegóricos.

EXU PROTAGONISTA

Gabriel Haddad – A gente levou primeiro Exu para a comissão de frente, em 2018, na Acadêmicos do Cubango [escola de samba de Niterói-RJ]. Ele encerrou o desfile em 2019, também na Cubango, que estava no grupo de acesso. E depois [já em 2021, mas com o desfile adiado para 2022 por conta da pandemia], a gente definiu que Exu tinha que ser o enredo da escola [Grande Rio, que venceu o desfile do grupo especial no ano passado]. O enredo foi muito bem aceito, apesar das críticas de que poderíamos fazer algo pesado. Exu é movimento, é energia e potência. A gente explicou tanto isso no enredo, que veio um samba que conquistou todo mundo. E essa energia tomou conta da Sapucaí.

AS ESCOLAS INTERPRETAM O PAÍS ANUALMENTE, E COMPREENDER AS DIMENSÕES DISSO NOS LEVA A UM SEM-FIM DE REFLEXÕES SOBRE A ARTE BRASILEIRA

Leonardo Bora, carnavalesco

ETERNO RETORNO

LB – [O carnaval] é um ciclo ininterrupto, um eterno retorno. Tão logo um desfile termina, outro começa. Um novo enredo começa a ser desfiado em narrativa escrita, um novo conjunto visual passa a ser pensado. As escolas de samba vivem essa pulsão anualmente. O desfile é apenas o ponto culminante, o momento mais esperado de um ciclo e ritual que tem desdobramentos ao longo de um ano de vida social que ocorre nas quadras, nas ruas, nas avenidas, nos ateliês, nos barracões.

GH – A escola de samba é um organismo vivo, múltiplo e diverso, que tem funções, festejos e pessoas frequentando o ano inteiro, de fevereiro a fevereiro. É uma relação que a gente tem por um ano, renovada a cada enredo. E essa relação acaba se desdobrando também nas ações da escola na quadra, na escolha do samba-enredo, nos ensaios.


Ouça, em formato de podcast, a conversa com os convidados Gabriel Haddad e Leonardo Bora, que estiveram presentes na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 19 de janeiro de 2023. A mediação é de José Mauricio Lima, mestre em história da arte e assessor de imprensa do Sesc Pinheiros

VISÕES DE BRASIL

LB – Escola de samba é essa vivência comunitária riquíssima, onde tantos saberes se correlacionam, disputam, e que narra histórias muito poderosas, visões de Brasil. As escolas interpretam o país anualmente, e compreender as dimensões disso nos leva a um sem-fim de reflexões sobre a arte brasileira. Um desfile de escola de samba é uma manifestação artística potente, política – por excelência –, plural, polifônica. É algo vivo, que expressa múltiplos falares de tantos territórios que, cotidianamente, permanecem na invisibilidade. São manifestações majoritariamente pretas, periféricas, outrora criminalizadas, como a gente ainda vê com o funk e o rap. Por mais que haja registros fílmicos, transmissão televisiva e fotos, o que fica é o rito que acontece na avenida, na madrugada. [O desfile de abril de 2022] foi uma espécie de transe coletivo, a escola [Grande Rio] desfilou de maneira impecável, foi uma emoção e uma pulsação muito grandes, o que mostra a potência que é uma escola de samba e o conjunto de saberes que ela encerra.

PLATAFORMAS DISTINTAS

GH – [Antes de trabalhar para o The Masked Singer Brasil, da Rede Globo] a gente já tinha feito algumas criações tanto para teatro quanto para shows. Mas essa é  nossa primeira vez criando algo específico para a televisão. No programa, a gente tem [que contar] uma história para cada fantasia, e a gente pensa também na personalidade dos personagens. No Carnaval, são as fantasias para serem vistas dentro de um conjunto, de uma ideia maior de espetáculo, [enquanto que] no The Masked Singer é uma fantasia única que tem protagonismo no palco.

IDENTIDADES E TERRITÓRIOS

LB – Cada escola de samba possui noções identitárias diferentes das demais, e essas identidades são móveis, construídas ao longo do tempo, [envolvendo] uma ideia de tradição e memória. São essas identidades que nos ajudam a compreender os territórios e a vida social de cada escola. A Grande Rio, por exemplo, tem características diferentes da [Acadêmicos do] Cubango, da [Acadêmicos do] Sossego, da Mocidade Unida do Santa Marta. Cada uma dessas escolas pelas quais a gente já transitou como carnavalescos é expressa em territórios diferentes. [Ao mesmo tempo que nosso] trabalho é de criação artística e também de campo, [há] uma espécie de etnografia que cada enredo permite que a gente desenvolva. Uma territorialidade não apenas física [e geográfica], mas também simbólica.

PAGODE É SAMBA

LB – [O enredo Ô, Zeca, o pagode onde é que é? Andei descalço, carroça e trem, procurando por Xerém, pra te ver, pra te abraçar, pra beber e batucar] é uma brincadeira, uma provocação, até porque a gente sabe que o enredo ficaria conhecido como Zeca Pagodinho. É um enredo com várias camadas, um agradecimento ao título inédito da escola [em 2022] e uma saudação a São Jorge, já que a escola se concentrou no dia dele [23 de abril]. O enredo [deste ano] continua expressando a nossa inquietação em pensar as religiosidades populares no Brasil. E é metalinguístico, porque fala da história do samba. A gente fala na avenida, especialmente, do movimento do pagode. O próprio Zeca diz: “Pagode é samba, samba é pagode. É tudo a mesma coisa!”. Mas, a partir desses olhares hierárquicos que envolvem a própria noção do subúrbio, [o pagode] foi considerado algo menor. É um enredo que vai muito por esses descaminhos, onde se perder é fundamental.

GH – Nosso enredo é uma crônica que procura Zeca Pagodinho por esses subúrbios do Rio de Janeiro. E ele é muito inquieto, está aqui agora e, dali a 10 minutos, em outro lugar, e você já não o encontra mais, não sabe onde ele está, não consegue falar com ele. É uma brincadeira que a gente fez nesse sentido, para que a gente pudesse narrar esses diversos subúrbios dentro do desfile, essas diversas visões de Rio de Janeiro que o Zeca tem em suas músicas e composições. A gente passa um dia [inteiro] procurando por ele, até que o encontra em Xerém [distrito de Duque de Caxias], numa roda de samba.

A ESCOLA DE SAMBA É UM ORGANISMO VIVO, MÚLTIPLO E DIVERSO, QUE TEM FUNÇÕES, FESTEJOS E PESSOAS FREQUENTANDO O ANO INTEIRO, DE FEVEREIRO A FEVEREIRO

Gabriel Haddad, carnavalesco

ENTRE PONTES E TEIAS

LB – A gente gosta muito dessas pontes [com outros profissionais, do samba ou não]. A gente gosta muito de pensar na ideia de rede, de teia, estabelecendo conexões. Tanto que a gente começou num coletivo. Então, essa ideia de um trabalho colaborativo, que permite a conexão de diferentes linguagens, territórios, espaços de produção, nos estimula muito como artistas. Pensando na conexão do barracão com a sala de aula, do barracão com outras fábricas onde são produzidos espetáculos, com ateliês de outros artistas que colaboram com o nosso trabalho e acabam participando do nosso desfile. É sempre esse movimento que nos torna inquietos.

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