Narrativas orais preservam a memória e documentam a história

23/01/2023

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Valorização de narrativas de vida baseadas na oralidade preserva a memória como patrimônio cultural e documento histórico  

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Todos temos uma história de vida que se constitui como peça essencial para a história de uma comunidade. Moldados por diferentes contextos sociais, econômicos, políticos e culturais, e transmitidos oralmente de geração em geração, esses depoimentos são heranças que carregam conhecimento de um povo, e que guiam a maneira como cada indivíduo atua e se relaciona com outros no mundo. Presente desde os primórdios da civilização humana, a oralidade vem ganhando novos espaços em diferentes campos de pesquisa, bem como em exposições, livros e podcasts. Esse movimento tem colocado em xeque o perigo de uma história única, ou “oficial”, e para isso reverbera uma diversidade de vozes que, por séculos, foram silenciadas.

“Culturas orais, ainda hoje, têm na memória um recurso valioso, pois ela permite o ‘armazenamento’ e a transmissão dos conhecimentos. E a oralidade foi por muito tempo um instrumento fundamental nesse fazer. Contudo, ao longo do tempo, criaram-se os registros escritos e, com isso, aprendemos a pensar que apenas o que está escrito, registrado e fixo é confiável e tem valor”, analisa a professora de história na Universidade de Taubaté (Unitau) Suzana Ribeiro, doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP). Ou seja, “a escrita era – e de certa forma ainda é – de domínio de poucos. E com isso, não podemos deixar de pensar que valorizar seus registros como documentos históricos era também forma de ‘roubar’ o protagonismo das pessoas comuns e nos fazer acreditar que apenas grandes líderes e heróis fazem parte da história”, observa. 

Memória plural

Fundadora e curadora do Museu da Pessoa – plataforma virtual e colaborativa de histórias de vida –, a historiadora Karen Worcman também reflete sobre a crença de que as sociedades ditas “cultas” ou “desenvolvidas” eram aquelas que tinham a escrita, diferenciando-as, em qualidade, das sociedades orais. “É todo um arcabouço que sustentou a ideia civilizatória e que separou e justificou para os colonizadores a superioridade da sociedade ocidental. Veio junto a esse tipo de crença uma série de ações que deixaram de fora um conjunto de saberes e práticas das sociedades orais”, aponta. 

Escritor, músico e cineasta, Cristino Wapichana acredita que quando “um povo quer sempre ser superior a outro povo, ele esquece a coisa mais básica, que é a existência de uma única humanidade”. Artista indígena do povo Wapichana, que vive na região conhecida como Reserva Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima, Cristino ouviu muitas histórias de sua mãe e sua avó, compartilhando-as até hoje para que as línguas e conhecimentos de seu povo sejam valorizados. Por isso, defende a oralidade como “a principal forma de repassar toda a ancestralidade de um povo e dela continuar sendo utilizada para atualizar essas memórias”.

Áudio da entrevista com o escritor Cristino Wapichana – Parte 1

Áudio da entrevista com o escritor Cristino Wapichana – Parte 2

Wapichana conta que para os povos originários, a oralidade é o que dá voz a todas as coisas. “Ela comporta tudo de conhecimento, tudo que nós compreendemos sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os seres, sobre as pessoas, sobre o próprio universo, sobre a natureza. A oralidade é a parte primordial do ensinamento de um povo. Então, sem ela a gente não conhecia as plantas medicinais, não sabia de casa, de pesca, de ler estrela, de ler o universo. Não conhecíamos sobre direitos, deveres, nada disso.”

Áudio da entrevista com o escritor Cristino Wapichana – Parte 3

Legitimar vozes

O reconhecimento da oralidade e a importância de registrá-la e usá-la como documento histórico, seria, segundo a historiadora Suzana Ribeiro, resultado de mudanças tecnológicas que permitiram a realização do registro – gravadores de voz e imagem – de mudanças sociais e de concepção de História. “Retomar trabalhos com a oralidade é uma forma de democratizar a História, de reconhecer cada sujeito como um agente histórico e valorizar o cotidiano como produtor de permanências e mudanças históricas”, ressalta a pesquisadora, que também é diretora da Fala Escrita, iniciativa que, desde 2007, desenvolve projetos de história oral e, com eles, organiza livros, exposições e acervos que refletem sobre memória e identidade.

Nas últimas décadas, mais ações como essa desdobram-se pelo país, a exemplo da iniciativa pioneira do Museu da Pessoa, criado em 1991 [Leia Valorizar Memórias], e do premiado podcast Negra Voz, do jornalista Tiago Rogero, sobre a herança africana e os grandes feitos de negras e negros do passado e do presente no país. “Na escola, ao se ensinar sobre pessoas negras nos períodos da colônia e do Império no Brasil, elas só aparecem como escravizadas no tronco. Ignora-se que, mesmo nessa condição, muitas estavam resistindo, formando quilombos, professando sua fé, formando famílias, aprendendo a ler, ensinando outros”, disse Rogero em entrevista à edição de janeiro de 2023 da Revista E. Compreender e valorizar a oralidade como um documento histórico não só permitiu a organização das práticas de história oral e de movimentos de pesquisa, publicações e outros suportes, como também ecoou uma pluralidade de vozes. “Dessa maneira, [essas narrativas de vida] representam melhor a diversidade de pessoas que compõem a população de cidades como São Paulo e países como o Brasil. Digo mais; qualquer história de cidades ou países que não seja plural, é parcial e excludente”, acrescenta a pesquisadora Suzana Ribeiro.  

Valorizar memórias

Exposição no Sesc Bom Retiro reúne depoimentos que fazem parte do acervo do Museu da Pessoa e convida o público a compartilhar a própria história

Composta por uma seleção de testemunhos presentes em suporte audiovisual no acervo do Museu da Pessoa, a exposição Qual é o seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil, em cartaz no Sesc Bom Retiro até abril, reforça o objetivo da instituição: tornar a história de toda e qualquer pessoa um patrimônio da humanidade. Parceiro do Sesc São Paulo desde os primeiros anos de atuação, este que é um museu virtual e colaborativo de histórias de vida, preserva 18 mil depoimentos e 60 mil fotos e documentos digitalizados. Um acervo que já foi visitado, nos últimos três anos, por dois milhões de pessoas.

“Acho que esta exposição tem muitas portas de entrada. Uma permite que o visitante identifique como pessoas comuns podem aportar tantos saberes e perspectivas sobre a sociedade contemporânea brasileira. Mas existe também um desejo pela emoção, pela construção de pontes e identificação entre os visitantes e o acervo. Algo que permita com que cada pessoa ‘se veja’ na exposição. Por fim, há uma tentativa de ampliar a compreensão sobre o que é e para que serve uma iniciativa chamada Museu da Pessoa”, explica a historiadora, fundadora e curadora do museu, Karen Worcman.

A mostra foi pensada por uma curadoria tripla, da qual fazem parte a educadora Bel Santos Mayer (Vidas Negras), o escritor Cristino Wapichana (Vidas Indígenas) e o escritor Diógenes Moura (acervo imagético do Museu da Pessoa), e está dividida em três eixos: “o indíviduo” – para que o público conte qual o seu legado sob sua perspectiva; “o Museu da Pessoa” – que apresenta o que significa o trabalho realizado nas últimas três décadas; e “a sociedade”.

“Ao realizar a exposição Qual é o seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil, o Sesc estimula o debate sobre as possibilidades e as funções dos museus na contemporaneidade e propõe uma imersão em depoimentos e acervos pessoais e familiares, explorando identidades e subjetividades. Trata-se de uma oportunidade de construir, junto com o público, um olhar mais profundo sobre o nosso legado e o legado dos outros, desnaturalizando e complexificando simbologias e culturas nacionais”, disse o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

Os visitantes podem contar suas próprias histórias em uma cabine de autodepoimentos. Para isso, guiam-se pela pergunta: “Qual é o seu legado?”.

BOM RETIRO

Qual é seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil

Até 2/4, terça a sexta, das 9h às 20h; sábado, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS

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