Silvio Almeida examina impactos do racismo estrutural no Brasil

28/02/2023

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Advogado, filósofo, escritor e pesquisador, Silvio Almeida reflete sobre a luta antirracista e aponta caminhos para um país com mais equidade 

Por Ana Cristina Pinho Foto Matheus José Maria

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Silvio Almeida cresceu entre mulheres pretas, influência fundamental para sua formação. Foi em casa que ele recebeu os primeiros conhecimentos a respeito de raça e racismo, uma vez que sua família sempre foi consciente das dificuldades e entraves nas relações étnico-raciais. Paulistano, da região central, dedica sua vida à luta contra a discriminação racial.

É advogado, filósofo, escritor e pesquisador, com uma extensa biografia profissional que transita entre a atividade de professor e ativista em favor dos direitos humanos. Também é fundador e presidente do Instituto Luiz Gama, organização cujo foco é a promoção da igualdade racial e luta contra o racismo estrutural. Em janeiro deste ano, tomou posse como ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Durante o Sempre um Papo, projeto realizado pelo Sesc Vila Mariana em dezembro de 2022, com mediação do jornalista Chico Pinheiro, Silvio Almeida apresentou suas contribuições analíticas, organizadas no livro Racismo Estrutural (Jandaíra, 2018). A obra é considerada um dos mais importantes estudos sobre os impactos do racismo na estrutura social, política e econômica da sociedade brasileira.

cenário

Um ato de racismo é uma cena. E nos concentramos na cena. Porém, para ter cena, tem que ter cenário, ator, script. O Aranha [ex-goleiro do Santos que, em 2014, foi chamado de “macaco” e “preto fedido” por torcedores do Grêmio] foi ofendido por um grupo de torcedores e, ao olhar para essa situação, percebi que as pessoas estavam olhando para a cena, mas não estavam preocupadas com o cenário, ou seja, o que torna aquela cena possível. Por que alguém consegue identificar um ato como esse como sendo de racismo? É porque as pessoas que estão olhando aquilo já têm a questão da raça como um pressuposto fundamental. Eu não conseguiria identificar que aquilo é racismo se eu não tivesse a raça como elemento que me vai me permitir dar sentido para aquilo. Para aquela cena ser possível, é preciso que haja uma organização do futebol que estabeleça uma divisão social e racial do trabalho em que os brancos organizam o jogo e os negros jogam. É preciso que haja também toda uma crônica esportiva que vai reforçar, do ponto de vista ideológico, o papel e o lugar dos sujeitos na hora do jogo. Aquela cena se tornou possível porque havia uma estrutura.

conexões

O livro Racismo Estrutural, não traz um conceito inovador. Ele apresenta uma proposta de organizar um debate que já existia desde os anos 1960. Nele, a questão racial é colocada como elemento analítico e não apenas como uma questão moral e, assim, nos permite não apenas olhar para os casos de racismo, mas olhar, também, para a constituição de quatro elementos fundamentais do nosso mundo: o Estado – no mundo contemporâneo, a política passa pela estatização da vida; o direito, como elemento de racionalização, de classificação e de limitação do papel dos sujeitos em relação a si mesmo e ao mundo; a ideologia, ou seja, os processos de constituição dos sentimentos e da forma de pensar e ver o mundo; e, por fim, a economia, que são as relações de produção e de reprodução da vida material e da existência. O livro apresenta como raça e racismo se conectam com esses elementos que configuram a estrutura social.

processo

O racismo não é um ato, não é um evento, mas um processo. Assim, ele constitui uma complexidade de ações, ou omissões, de atos de fato, que têm como consequência, e resultado fundamental, a criação da raça. O racismo, portanto, cria a raça, ele cria esse elemento que vai ser utilizado para classificar e dar sentido para a vida dos indivíduos. É a partir dos contextos históricos e políticos que a raça tem efeitos. Assim, esse processo de constituição de raça que conhecemos hoje funciona como um elemento de diferenciação dentro de um universo controverso em que a igualdade formal é dada.

imigrantismo

O problema racial no Brasil começa a partir do século 19, mais precisamente a partir da abolição. É nesse momento que há um reposicionamento do Estado brasileiro, da economia no cenário mundial, e do direito. Ao se inserir dentro do conceito de capitalismo internacional, o Brasil passa a se preocupar com a formação do mercado de trabalho. Nesse sentido, a raça tem papel fundamental, uma vez que agora há uma necessidade de se classificar as pessoas e determinar qual é o lugar do negro, do indígena e do branco. Para isso, dois grandes movimentos ideológicos foram fundamentais: o imigrantismo, ou seja, aquilo que torna branco quem vem de fora, uma vez que não existia branco na América Latina. E o outro elemento foi o bandeirantismo.

superação

A discussão sobre racismo hoje está ligada à ascensão da extrema direita e às manifestações de fascismo presente em lugares que você não via. O debate sobre a questão racial parte de um outro lugar, diferentemente do que aconteceu nos anos de ditadura militar, no pós-guerra, diferentemente do que a produção intelectual brasileira disponibilizou a partir dos anos 1930 com Gilberto Freyre. Muito do que está acontecendo no Brasil hoje é parte de uma conexão com a extrema direita no mundo inteiro. O mundo que a gente quer abrir em direção ao futuro é um mundo que precisa superar a raça como um elemento de classificação das pessoas. Essa é a nossa luta.

símbolos

O supremacismo branco, aquele que vem da Europa e dos Estados Unidos, está associado à ideia da linha de corte, da impossibilidade de convivência, do extermínio, da eliminação. Há, então, uma virada de chave, inclusive simbolicamente, de negociação dos símbolos que não sejam ligados ao extremismo, ao fascismo, à extrema direita, à louvação dos elementos tidos como brancos e ao repúdio total a tudo que é cultura negra e indígena. Isso está sendo alimentado, criando uma nova forma de se pensar a questão racial no Brasil.

estrutural

Cenas de agressões racistas só são possíveis porque existe uma configuração de mundo que torna a raça possível e, portanto, dá sentido para esse tipo de agressão. Se não existisse a raça como algo subjacente a essas relações sociais, não faria sentido falar de racismo, pois o racismo não surge naquele momento, ele é anterior. Os indivíduos envolvidos nas cenas de racismo são classificados como racialmente distintos. Assim, a raça é o elemento que configura a nossa subjetividade, a nossa consciência e o nosso inconsciente. Todos nós somos constituídos a partir da racialização, ou seja, o racismo nos constituiu enquanto sujeitos. A questão não é sobre ser ou não ser racista, mas sim o que torna possível o racismo e a ação do racista. As teorias liberais estão muito preocupadas com a intenção. A grande pergunta que precisa ser feita é: Por que negros e indígenas estão vivendo as condições mais precárias da vida social?

lutas

Como o racismo é um processo histórico e político, ou seja, de conflitos, as lutas sociais e as reivindicações vão fazendo com que esses elementos constitutivos da estrutura social também tenham de se adaptar, se modificar e se transformar. Poucas pessoas têm dúvida em relação a como as políticas de ações afirmativas e de cotas raciais só acontecem por conta de uma luta política muito forte e importante dos movimentos negros. A luta política fez com que esses espaços fossem abertos. Vejam a questão ambiental, por exemplo. Para viver do jeito que vivemos, estamos destruindo as condições de existência do planeta. Você imagina, então, o que a gente faz com a questão racial e com pessoas cuja vida, dentro desse sistema de classificação, vale menos. E as consequências da destruição do meio ambiente nós sabemos quem é que sofre.

ancestralidade

A nossa luta, a luta política, é de um lugar que tenta unir a dimensão do passado, presente e futuro. A gente se define a partir do futuro.  Nossos ancestrais da diáspora africana estavam sempre pensando em abrir as portas para o futuro. E eles se fizeram a partir dessa dimensão do futuro, mas carregando consigo os mortos. Os efeitos da política de cotas no Brasil são radicais. Nossa estrutura de universidade é muito melhor, por exemplo, do que nos Estados Unidos. Nós temos universidade pública, e nossa defesa a ela tem que ser total. Isso significa que a universidade é parte de um projeto político central, de formação das pessoas que vão dirigir o Brasil. Então, se você mudar a maneira de ingresso e a composição racial da universidade, você embaralha e muda também o processo de criação da raça. Essa foi a sacada genial do movimento negro: pedindo para entrar na universidade.

Programa Sempre um Papo, projeto realizado pelo Sesc Vila Mariana, com mediação do jornalista
Chico Pinheiro

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