RETRATOS DE UM POVO | A vida cotidiana do Aglomerado da Serra

01/06/2023

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A beleza da vida cotidiana do Aglomerado da Serra, em BH, uma das maiores comunidades urbanas do país, pelas lentes de João Mendes e Afonso Pimenta

Por Luna D’Alama

Leia a edição de junho/23 da Revista E na íntegra

Única cordilheira do Brasil, a Serra do Espinhaço estende-se por mil quilômetros entre os estados de Minas Gerais e Bahia. No limite sul de Belo Horizonte, essa cadeia montanhosa recebe o nome de Serra do Curral, onde, há mais de um século, formou-se o Aglomerado da Serra, uma das maiores comunidades urbanas de Minas Gerais e do país. Composta por oito vilas, consideradas um complexo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região reúne entre 50 mil pessoas (segundo dados oficiais) e 150 mil (de acordo com lideranças comunitárias). A maioria de seus primeiros habitantes veio do interior mineiro para ajudar na construção da capital, ou em busca de emprego, sem ter onde morar.

Ao longo das últimas duas décadas, o artista visual e curador Guilherme Cunha desenvolve um trabalho social nesse aglomerado periférico, onde descobriu um movimento de 12 fotógrafos que registravam, desde os anos 1960, o dia a dia e também os grandes eventos daqueles moradores. Essa pesquisa resultou num projeto que deu origem a duas exposições e ao livro fotográfico Memórias da Vila – Histórias dos Moradores da Comunidade da Serra (Circuito, 2016).

Atualmente, Cunha se concentra em dois desses profissionais – João Mendes e Afonso Pimenta – e, a partir de um acervo de 250 mil imagens catalogadas e preservadas, ou restauradas digitalmente, fez uma seleção de 320 para compor a mostra Retratistas do Morro [Leia mais em Da beca ao black], que o Sesc Pinheiros abre ao público a partir de 20 de junho.

“Essa história começa com senhoras da comunidade que diziam que seus netos não iriam saber das lutas que elas haviam travado para conquistar tudo o que conseguiram. O primeiro fotógrafo que encontramos, Seu Adão, hoje trabalha como serralheiro, e jogou todo o acervo no lixo uma semana antes da minha visita. Portanto, esse é um trabalho de resgate da tradição oral, de preservação da memória e de luta por igualdade simbólica na representação imagética, pois reflete a realidade de toda uma população [sobretudo negra] que construiu o país, as metrópoles, e que batalha por moradia e direitos fundamentais”, destaca o curador.

Ainda em atividade, na casa dos 70 anos, os fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta (e seus retratados) são as estrelas dessa nova exposição e de um documentário homônimo lançado em 2020. Mendes mantém, desde a década de 1970, um estúdio na entrada da comunidade, onde Pimenta trabalhou como seu assistente por alguns anos. Enquanto o primeiro se dedicou a retratos, o segundo focou no “corpo a corpo”, como ele mesmo define: ir até as pessoas para clicá-las em aniversários, batizados, festas de 15 anos, casamentos, desfiles e bailes black.

“Foi a mãe do João quem lhe pediu para me dar um emprego de ajudante, ao me ver em má companhia na rua. Eu lavava as fotos, cortava, colocava para secar. Trabalhei também como gari por mais de uma década, mas a fotografia sempre esteve impregnada em mim”, conta Pimenta, nascido em São Pedro do Suaçuí (MG). Ele se formou em educação física e fisioterapia ocupacional, mas não exerceu a profissão. Com o tempo, foi aprimorando o olhar e comprando câmeras mais modernas. “Estou aposentado há 17 anos e ainda fotografo, mas bem menos, porque o celular chegou e abocanhou boa parte da minha clientela. Já participei de exposições e é uma satisfação saber que meu trabalho está sendo reconhecido, pois eu pensava que ficaria restrito aos becos da comunidade”, completa.

Mentor de Pimenta e natural de Iapu (MG), no Vale do Rio Doce, João Mendes está na profissão há quase cinco décadas – três delas dedicadas a fotografar alunos de beca ao fim da pré-escola. “Comecei em 1965, ainda adolescente, na cidade de Ipatinga (MG). Tenho clientes de várias gerações e não pretendo parar, estou firme e forte. É uma honra saber que meu trabalho, conquistado ao longo de vários anos, com muita dificuldade, está sendo divulgado”, diz.

Para o curador Guilherme Cunha, a história do Brasil é um espaço cheio de vazios, com grandes distorções. “Há muito ainda a ser conhecido, pois a desigualdade e a violência que sofremos não são apenas sociais, mas também simbólicas. O simples ato de não se preservar um material é capaz de provocar o seu desaparecimento. Portanto, a memória precisa de um esforço coletivo de conservação, de um empenho tão amplo e diverso quanto a multiplicidade de populações que existem neste país. Temos que cuidar do nosso lastro simbólico, dos elementos (imagens, signos e patrimônios) que nos representam, pois queremos não só habitar paredes de galerias e museus, mas também o imaginário das pessoas, para construir uma narrativa da resistência brasileira”, finaliza.

Da beca ao black

Exposição Retratistas do Morro revela o dia a dia de uma comunidade da capital mineira entre os anos 1960 e 1990

As identidades, os modos de vida, as lutas e as conquistas de moradores do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte (MG). Contadas a partir das visões de mundo deles próprios, estão presentes na exposição Retratistas do Morro, no Sesc Pinheiros, em cartaz entre 20 de junho e 20 de novembro. Sob curadoria de Guilherme Cunha, a mostra é dividida em três núcleos visuais (becas, bailes e retratos) e percorre o período entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1990, um momento de intensa produção dos fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta.

“Nosso objetivo é que as imagens [coloridas e P&B] tragam a presença desses corpos para o espaço expositivo. Queremos que as fotografias não representem, mas apresentem essas pessoas. Será um momento de encontro. Desejamos olhar agora para esses indivíduos não como sujeitos civis, mas a partir de suas individualidades, subjetividades e dimensões sensíveis e existenciais”, explica o curador.

A mostra também reúne áudios de entrevistas com os fotógrafos e fotografados. “O Sesc São Paulo entende como fundamental a preservação das memórias e patrimônios culturais que apresentam experiências coletivas das populações brasileiras. Assim, na exposição, convivem lado a lado registros fotográficos e testemunhos orais destes protagonistas, permitindo ampliar percepções e pontos de vista sobre as realidades que nos cercam”, afirma Juliana Braga de Mattos, gerente de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc. 

PINHEIROS

Exposição Retratistas do Morro

Fotografias de João Mendes e Afonso Pimenta, com curadoria de Guilherme Cunha

De 20/6/2023 a 28/1/2024. Terça a sábado, das 10h30 às 21h. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h. GRÁTIS.

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