TEMPO DE CONSAGRAÇÃO | Uma entrevista com Alaíde Costa

29/04/2024

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Com sete décadas de carreira, cantora Alaíde Costa celebra o reconhecimento tardio de seu talento e se orgulha da coragem de nunca desistir

POR LÍGIA SCALISE

Leia a edição de MAIO/24 da Revista E na íntegra

O reconhecimento chegou tarde na carreira da cantora, compositora e atriz Alaíde Costa. No auge dos seus 88 anos de idade, sendo 70 deles dedicados ininterruptamente à música popular brasileira, ela comemora: “Se eu morrer hoje, morro muito feliz e grata”. Em plena atividade, com uma agenda repleta de shows, convites e projetos, seu nome vem estampando as páginas de jornais e revistas do Brasil. Foram necessárias décadas de dedicação e persistência da artista – enfrentando o preconceito e as tentativas de apagamento que ela sofreu como mulher negra – para que, enfim, o país ao qual ela dá voz, por meio de suas interpretações, prestasse homenagens e a incluísse na lista das grandes cantoras.  

Hoje, ela se orgulha de nunca ter se curvado às condições impostas desde o começo de sua trajetória. “Paguei um preço bem caro por cantar do meu jeitinho, mas me considero uma mulher corajosa por nunca desistir”, disse em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido em março. Quem primeiro reconheceu o talento de Alaíde foi seu irmão mais novo, Adilson. Quando ela tinha por volta de 11 anos, ele a inscreveu em um show de calouros no circo do bairro carioca de Água Santa, onde foi criada. A contragosto, Alaíde cantou e ganhou o prêmio – o primeiro de muitos. Dali em diante, a menina tímida e de voz doce, que queria ser professora, passou a cantar em shows de calouros, quase sempre ganhando as competições.  

Aos 13 anos, foi eleita a melhor cantora jovem no programa Sequência G3, da rádio Tupi. Aos 16, pela primeira vez, Alaíde se inscreveu para cantar no programa de Ary Barroso, Calouros em Desfile, também na Tupi. Com a canção “Noturno em Tempo de Samba”, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, conquistou a nota máxima.  

Alaíde Costa assinou seu primeiro contrato profissional em 1955, com a casa noturna Dancing Avenida, na capital do Rio de Janeiro. Após um ano, gravou seu primeiro disco e, no ano seguinte, gravou o segundo compacto, pela Odeon. Foi justamente durante uma das gravações feitas nos estúdios que sua voz chamou a atenção do músico João Gilberto (1931-2019). Ele pediu ao produtor Aloysio de Oliveira (1914-1995) que convidasse Alaíde para uma reunião de jovens artistas na casa do pianista Bené Nunes (1920-1997), na zona Sul carioca, reconhecendo que o estilo da cantora tinha tudo a ver com as músicas que estavam compondo nos encontros – e que viriam a se tornar a bossa nova.  

O meu olhar mudou em relação à música quando comecei a escutar canções que tocavam o meu coração. Ali, eu me encontrei


Durante o Festival Universitário da Música Popular Brasileira, realizado no Teatro Tupi, em 1970, a cantora interpretou a canção “Novo Dia”, que se classificou em segundo lugar. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

A cantora não só participou dos encontros, como ajudou a fundar a bossa nova. E, mesmo sendo uma das precursoras do gênero musical, seu nome nunca foi reconhecido pelos envolvidos. Tanto que em 1962, para o famoso show no Carnegie Hall, em Nova York, Estados Unidos, com João Gilberto, Tom Jobim, Sérgio Mendes, Carlos Lyra (1933-2023), Roberto Menescal e muitos outros, Alaíde não foi convidada. 

Parte importante da reviravolta na carreira de Alaíde tem acontecido nos últimos anos. Em 2020, recebeu o troféu Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Cinema de Gramado, pelo filme Todos os mortos (2020), tornando-se a artista mais velha a ser laureada com o prêmio. Dois anos depois, ela recebeu o convite dos produtores Marcos Preto e Emicida para gravar o álbum O que os meus calos dizem sobre mim (Samba Rock, 2022).  Os arranjos foram feitos especialmente para a voz da cantora. Por esse trabalho, eleito o melhor lançamento fonográfico de MPB pelo 30º Prêmio da Música Brasileira, em 2023, Alaíde Costa foi aplaudida de pé no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.  

A cantora anseia bons anos pela frente para cantar e saborear seus projetos. “Deus tarda, mas não falha, e ele não falhou comigo”, disse, poucas horas antes de subir ao palco do Sesc Pinheiros, em fevereiro passado, para participar do show de lançamento do CD Pérolas Negras Ao vivo (Companhia de Discos do Brasil e Nova Estação), ao lado de Zezé Motta, Eliana Pittman e participação especial de Rosa Marya Colin. Nesta Entrevista, Alaíde Costa reflete sobre os momentos mais marcantes de sua história e garante: “Tudo valeu a pena”. 

Como foi o seu encontro com a música? 

Minha mãe gostava muito de escutar rádio, e eu a acompanhava durante os meus afazeres domésticos. Nunca pensei em ser cantora. Eu queria ser professora. Talvez pela minha timidez, não me via em cima de um palco. Foi meu irmão mais novo quem primeiro acreditou na minha voz. Eu tinha uns 11 anos quando ele me inscreveu em uma competição de show de calouros, num circo que montaram no nosso bairro, em Água Santa, subúrbio do Rio de Janeiro. Fiquei brava e disse que não ia participar da competição de jeito nenhum, mas acabei cedendo às chantagens dele, por medo de que a polícia fosse me prender, caso eu faltasse, como ele dizia. A primeira vez que cantei, voltei com o prêmio. Depois disso, incentivada pela minha família e vizinhos, cantei em outros programas de rádio. Mas era tudo sem querer, sabe? Eu não me via nem como cantora amadora. Apenas gostava de cantar.  

Em que momento desejou ser uma cantora profissional?  

O meu olhar mudou em relação à música quando comecei a escutar canções que tocavam o meu coração. Ali, eu me encontrei. Uma cantora chamada Neusa Maria [1928-2011] tinha um repertório bonito demais, por exemplo. Até que ouvi e me apaixonei por uma música chamada “Noturno em tempo de samba”, de Custódio Mesquita [1910-1945] e Evaldo Ruy [1913-1954], na voz de Silvio Caldas [1908-1998]. Quis muito cantar essa canção no programa de calouros do Ary Barroso, mesmo contrariando a opinião da minha família e de conhecidos. Eles achavam que eu devia cantar algo mais animadinho. Mas, assim foi: cantei e levei a nota máxima. Aí, fiquei achando que poderia ser uma cantora. E não foi fácil bancar essa decisão. Passei quase quatro anos cantando em programa de calouros, apresentando as músicas de que eu gostava, principalmente as canções de Johnny Alf [1929-2010], de quem fiquei muito fã. Desde o comecinho da minha carreira, eu só canto o que acho que tem a ver comigo.  

Ser cantora é uma missão que cumpri. Não foi fácil, mas eu viveria tudo de novo


Alaíde Costa em apresentação do show Samba Só, no ano de 1964, no Teatro Oficina, na capital paulista. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

Foi difícil se manter firme nas suas convicções e escolhas de repertório de discos e shows? 

Sim. Eu sempre digo que paguei um preço caríssimo por isso. Todos diziam que eu cantava músicas tristes ou difíceis e que deveria escolher um sambinha. Essa crítica me perseguiu durante toda minha carreira. É que eu gosto das músicas mais elaboradas mesmo. E aí, por ser convicta e firme, fui escanteada. A cada novo movimento que surgiu na época, as gravadoras queriam que eu entrasse, mas eles não tinham nada a ver comigo. O negócio foi tão drástico que recebi a proposta de gravar “Serenata do adeus”, de Vinícius de Moraes, mas em ritmo de iê iê iê. Se eu aceitasse, teria jogado fora tudo o que fiz antes, mas não aceitei. Só agora, no final da vida, é que veio o reconhecimento pelas escolhas que fiz. Foi uma luta.  

Quais os momentos que mais marcaram sua carreira?  

Momentos difíceis foram vários, mas tenho preferido nem falar disso, sabia? Hoje eu gosto de lembrar dos momentos emocionantes. Um deles foi quando eu cantei no festival de universitários, no teatro Paramount, uma música chamada “Onde está você?”, de Oscar Castro Neves [1940-2013] e Luvercy Fiorini . Lembro direitinho que o Oscar me apresentou sua música e disse: “Eu gostaria que você a cantasse no próximo show que a gente fizer”, ao que respondi: “Ah, não vai ser no próximo show, não. Quero cantar nesse”. Eu aprendi a letra em dois dias – sempre tive a memória boa para decorar música – e ele fez um arranjo belíssimo para a canção. Foi um sucesso: no meio da minha apresentação, o público ficou de pé e começou a me aplaudir. Chorei, né? Cantei a primeira vez, pediram bis. Cantei a segunda, pediram bis. Cantei três vezes e fui ovacionada! Foi a partir dessa canção que comecei a ter mais chances na carreira. 

Como foi participar do nascimento da bossa nova?  

Eu estava gravando o meu segundo álbum, 78 rotações, na Odeon, quando recebi o convite de João Gilberto, através do diretor artístico, o Aloysio de Oliveira, para participar de uma reunião com uns meninos da zona Sul. Nunca vou me esquecer dos olhares divertidos que vi, quando cheguei no endereço e perguntei por João Gilberto. Só depois é que soube que ele tinha a fama de combinar, mas nunca comparecer aos eventos. A turma toda estava lá: [Ronaldo] Bôscoli [1928-1994], Carlinhos Lyra, enfim, todos, e eu me senti bem à vontade. Participei de várias reuniões dessas. Como eu já era uma cantora profissional, acho que isso foi importante para eles também. Bem, o resto da história todos já sabem. Depois que a bossa nova ficou famosa… eu fiquei de fora. Mas, fiz grandes amigos ao longo da minha carreira e não guardo mágoas do passado. 

O nervosismo ainda existe todas as vezes que subo no palco e quando recebo aplausos. Isso nunca mudou


Em 2023, no teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, Alaíde Costa participou do show de lançamento do disco Cataventos (Selo Sesc), uma homenagem aos 73 anos de carreira do poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho. Foto: Ricardo Ferreira

Entre tantos amigos, destacam-se Vinícius de Moraes e Milton Nascimento? 

Sim, o Vinícius foi um amigo muito querido. Ele me deu um piano numa época em que eu não teria como comprar o instrumento. Recebi dele, também, duas músicas que ele gravou enquanto eu tocava, e coloquei os títulos: “Amigo, amado” e “Tudo que é meu”. Já o Milton foi uma pessoa muito importante por me convidar para cantar no seu álbum Clube da esquina [EMI-Odeon, 1972]. Ele me deu a chance de cantar “Me deixa em paz” do meu jeitinho. Inclusive, eu fui a única mulher que participou do álbum. Outra pessoa a quem eu faço questão de agradecer é o meu produtor, Tiago Marques Luiz, que acreditou no meu trabalho e está abrindo muitas portas nesses últimos anos. Fizemos muitas coisas boas juntos. É muito importante quando alguém reconhece o nosso trabalho, não é?  

Falando em reconhecimento, o que representa essa reviravolta na sua carreira depois de tantos anos?  

Não esperava por nada disso, e creio que muito do que estou vivendo hoje foi depois do disco O que os meus calos dizem sobre mim [Samba Rock, 2022]. Esses meninos – Emicida, Marcos Preto e Pupillo –, que poderiam ser meus filhos, fizeram um trabalho lindo para mim. Confesso que levei um susto quando o Marcos Preto disse que o Emicida queria fazer um projeto comigo. Ao mesmo tempo, confiei na inteligência dele. Lá no fundo, eu sabia que o Emicida não iria me propor algo tão fora do que sou, né? Isso me aconteceu tantas vezes na vida… Mas, eu confiei e tudo tem sido muito legal. Acho importante falar também que fiz outros discos, como o que gravei com o Zé Miguel Wisnik [O Anel –  Alaíde Costa canta José Miguel Wisnik, Selo Sesc, 2020] e o CD com o Eduardo Santana [Canções de amores paulistas, MCK, 2021], que também contribuíram para o retorno que estou recebendo do público. Mas, de tudo, o que me chama mais atenção e me deixa muito feliz, é ver tantos jovens na minha plateia. Estou sendo redescoberta depois dos 80 anos. 

Sua agenda está repleta de shows pelo Brasil afora. Como fica o coração prestes a subir no palco? 

Batendo forte. O nervosismo ainda existe todas as vezes que subo no palco e quando recebo aplausos. Isso nunca mudou. Nesse momento, estou muito feliz por ter tantos projetos. Agora mesmo vou lançar o CD Pérolas Negras Ao Vivo [Companhia de Discos do Brasil e Nova Estação, 2024], ao lado de grandes amigas [as cantoras Zezé Motta e Eliane Pittman]. Sou a mais velha da turma, a mãe de todas! E quero ter saúde para fazer muitos shows pelo Brasil e no mundo. Nesse álbum, canto até um pagodinho, o “Recado a minha amada”, do Salgadinho, que eu gosto muito. Mas, eu canto do meu jeito né?  

Mas, de tudo, o que me chama mais atenção e me deixa muito feliz, é ver tantos jovens na minha plateia.
Estou sendo redescoberta depois dos 80 anos. 

Tem ainda novos projetos que deseja realizar? 

Sim. Se houver tempo, eu gostaria muito de gravar um álbum em homenagem a Dalva de Oliveira [1917-1972]. Ela foi uma cantora que me inspirou muito, porque me ensinou como cantar com emoção. Esse é o projeto que penso em fazer há muitos anos, espero que consiga. 

Por fim, se pudesse apresentar quem é Alaíde Costa, o que diria? 

Uma mulher que adora cantar e que adora desafios. Uma vez, eu disse que tive mais tristezas do que alegrias na minha profissão, mas, hoje, é só alegria. O reconhecimento chegou. Tarde, mas chegou. E isso é muito importante. Já pensou morrer levando uma tristeza? Ser cantora é uma missão que cumpri. Não foi fácil, mas eu viveria tudo de novo. Chegar a essa idade me apresentando e tendo o reconhecimento que não tive antes é muito gratificante. Tudo valeu a pena.  

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a cantora Alaíde Costa, realizada no Sesc Pinheiros, em março de 2024.

Captação: Guilherme Barreto. Edição: Riff Produtora.

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