Vínculo de Vida

10/11/2022

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A folha em branco, o encontro, a pausa, as primeiras palavras, a troca de olhares, o primeiro traço, está feito o vínculo. Na página em branco a caneta desliza pelas curvas e meandros da história que começa a ser narrada, uma história de vida. E não é mesmo assim a nossa vida? Uma linha que desenhamos no tempo cheia de voltas e reviravoltas?

Entre a mão, o papel, o coração e o céu de possibilidades, um retrato começa a se desenhar na página em branco. Não é realismo, nem tão só caricatura, um pouco impressionista talvez, mas o certo é que realmente impressiona os poucos minutos em que uma história de vida e as feições nos rostos já marcados pelo tempo tomam forma no encontro com a arte de Renata Bueno.

Nenhuma página
jamais foi limpa.
     Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
     No fundo, todas gritam, pálidas de tanto.

Trecho do poema “Plena Pausa” de Paulo Leminsky

O trabalho artístico de Renata percorre as linguagens do vídeo, da escultura, mas é no desenho que ela encontra sua maior expressão. A elaboração de retratos de pessoas e suas histórias de vida é um projeto que nasceu há mais de 15 anos, ainda em São Paulo, quando ela frequentava um lar de idosos na região central. Quando ela se mudou para a Holanda também realizou este trabalho por lá e hoje morando em Portugal têm participado de uma série de projetos em comunidades e festivais trabalhando com retratos de idosos.

À convite do Sesc São Caetano, durante uma semana do mês de agosto, a Renata Bueno esteve realizando a intervenção artística “Vínculo de Vida” que possibilitou uma experiência de encontro entre a artista e o público idoso da unidade resultando em conjunto de retratos, fruto de conversas e histórias partilhadas. Foram momentos de afetos, descobertas, trocas e confraternização vivenciados intensamente em poucos dias pelos participantes.

Participantes da intervenção “Vínculo de Vida”

“E o trabalho acaba sendo este processo, não só a exposição dos trabalhos e o resultado final. Mas este conjunto de retratos que mostram um pouco desta importância de olhar o outro, de estar de forma sincera com o outro. Eu acho que esse é um dos papéis da arte, nos proporcionar essa experiência de encontro. E possibilitar que cada um possa ouvir e sentir a experiência do outro e partilhar as suas experiências!” – Renata Bueno


Conversamos com a Renata para conhecer ainda um pouco mais sobre o seu processo artístico, veja no vídeo a seguir:

A memória é uma ilha de edição!


A memória é viva! Ao revisitarmos nossas lembranças colocamos sobre elas um novo olhar que traz consigo os elementos do presente, nosso eu que aprendeu com todas as experiências maturadas no tempo e gravadas em cada traço no rosto. O ato de relembrar é um constante reeditar de novas narrativas. Não podemos mudar os fatos em si, mas sempre podemos modificar a maneira de como nos lembramos e principalmente de como pensamos e nos sentimos com relação aos acontecimentos. Alguns detalhes antes desapercebidos ganham novos sentidos, algumas linhas podem ser reescritas, pontos finais, vírgulas e reticências colocados. Uma nova forma de ver nossas memórias sempre pode ser desenhada.

A memória é uma ilha de edição! – Waly Salomão

O exercício de olhar para a própria memória e se ver ali ouvido e retratado, é justamente esta possibilidade de criação conjunta de novos pontos de vista sobre si, sobre a própria história e sobre os outros. É nesta linha tênue e ar(riscada) entre artista e público, entre a narrativa própria e a do retratado, neste vínculo  compartilhado no tempo, que o trabalho de Renata Bueno se configura e toma forma.

Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.
Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.
Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.

Carlos Drummond de Andrade


Nesta relação estabelecida o tempo é redesenhado com novos traços, e não somente nos rostos e feições no papel, mas também nas palavras e emoções partilhadas. E ali, desta partilha e do olhar artístico sobre ela, que podemos ver surgir todas as poesias e as belezas únicas contidas em cada história, memória, traço, passo, sentimento, momento. Da folha em branco surge um desenho que se vincula para além da forma e do tempo. Um desenho que retrata, para além imagem, um “Vínculo de Vida”.






Fotografias, vídeos e texto: Dalmir Ribeiro Lima / Sesc São Caetano

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