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Ficção Inédita
Paisagem sem história

Luiz Ruffato

Crédito: Marcos Garuti

Uma morna aragem visita o fim de tarde do quarto escancarado, despenteando levemente a solidão de uma frágil teia. Assustada, uma minúscula aranhinha expele um invisível fio, por onde escorrem abdome e pernas, exilando-se por detrás do forro úmido-esverdeado de um guarda-roupa coxo, preto verniz deitado em angico-branco, por cujas portas esbandeiradas entrevê-se aquilo que um dia foram fotografias caprichosamente recortadas de revistas, Amiga, Contigo, Grande Hotel, coladas nas folhas da madeira e arrancadas à força por alheias mãos descontroladas. Aquele sorriso melancólico não é o do Wanderley Cardoso? E aquela testa? Não seria a do Jerry Adriani? O olho que nos mira romanticamente: Roberto Carlos? Quem era o casal do qual apenas restaram braços entrelaçados? Jane e Herondy? E a moça sentada sobre o capô de um Gordini vermelho? Manchas de papel perfazendo inúteis desenhos incompreensíveis. Lantejoulas enfeitiçam noturnos vestidos ornamentais, encarcerados no silêncio. Sapatos, saltos alto e baixo, mergulhados na confusão do móvel, jacaroam entre camisolas e anáguas e roupas de sair e de ver Deus, trabesseiros e lençóis e cobertas. Uma caixinha de papelão - abrigo de um chapéu de feltro masculino, um dia - asila, promíscua, pratinhas, escovas, pentes, espelho-de-mão com escudo do Flamengo, uma certidão de nascimento cuidadosamente dobrada e redobrada e ainda mais uma vez dobrada. E vidros de perfume com borrifadores, estojos de rímel, sombra e blush, unhas postiças, misses, envelopes de remédio - Melhoral, Coristina, Sonrisal, Conmel, AAS -, potes de bicarbonato de sódio e sal de fruta. E quatro retratos: bastante desfocadas, ao longe, cinco crianças, em escadinha, pés e olhos no chão, roupas miseráveis, posam sob uma árvore (uma mangueira?), provavelmente irmãos; uma menina, blusinha clara, sainha escura (uniforme escolar?), fitas domando o cabelo ruim, sorri, desajeitada; amassada, uma moça - a anterior, algumas desilusões após - mira desafiadora o fotógrafo, em frente de um armazém (traja minissaia e sandália franciscana) ao lado de meio gato; bem enquadradas, duas mulheres a uma mesa de metal, espojada na calçada (dentro do botequim, um totó), brindam a alguém atrás do retratista. A menina depois moça agora jovem mulher tem os cabelos espichados a henê, esgar debochado, de quem costumou, lanterna na mão, a revolver, paciente, ruga por ruga, as horas intermináveis da Ilha. O vermelhão encerou-o o menino filho da lavadeira, a dona Zulmira, em troca de uns caraminguás que abrem as pesadas cortinas do Cine Edgar para a matinê do domingo, calça curta, joelhos esfolados, mãozinhas lambuzadas, fedendo a gasolina. No Natal é papai-noel para a molecada remelenta do Beco do Zé Pinto, bolas de futebol de plástico, soldadinhos, bonecas, carrinhos, biloscas, jogos-de-botão, panelinhas, essas bobiças que toda criança apreceia e que, ela mesma, bem, ela mesma nunca teve oportunidade... O menino, Lucimar? Luzimar? Luizmar?, com quantas punhetas não deve tê-la homenageado?, só por adivinhar um começo de coxa, uma vaga mancha escura que poderia ser um bico de peito, a pele macia roçando o avesso daquelas roupas que a mãe lavava... passava... Poderia, quem sabe?, promover aquela caridade, guiar as mãos por outras galáxias, mas, o que havera de pensar a dona Zulmira?, tão boa, tão... tão... tão prestativa... Entretanto, certa vez, de pena, a porta entreaberta, ouvia-o, vizinho, ofegante, esfregando todo seriozinho o escovão, fingiu ressonar na manhã felina, até que, passando em frente, a minúscula camisola semitransparente escoiceou o menino, a lata de cera Cristal quase escapuliu, vista infiel, coração desesperado, um troço na boca-do-estômago, Viu?, na meia-volta, sobrepasso, o rabo-de-olho buscou o oásis, pulmão oprimido, revirou-se, Viu?, e o carvão dos cabelos mais uma vez cresceu na miragem, cabeça baixa procurando uma perda no meio das pedras afloradas do terreiro e ela, madalena, girou as pernas, Viu!, e, trêmulo, o menino prosseguiu para o resto dos tempos inquieto.
Escrito nas telhas, amparado pelos caibros, "Cerâmica Santa Terezinha, Bandeira do Sul, Estado de Minas", decorou, cabeça afogada no capim do colchão da cama de casal, sempre alguém bufando no seu pescoço, ai-meu-bem, soletradamente, "Ce-râ-mi...", mulher-dama, olor de dama-da-noite, na alameda areenta, vêm a pé, de bicicleta, de vespa, até de automóvel vêm, cruzam, altaneiros, a pequena ponte de madeira esticada sobre o braço morto do rio Pomba, carregando no bolso escondidas notas e gonorréia. Soubessem... "Cidinha", às vezes murmura, para se lembrar, debruçada no parapeito da janela, o dia desmoronando por detrás dos morros, embalado pela música líquida dos redemunhos que transbordam das locas. "Vou parar de beber", ouve o Zunga, "Vou virar crente...", quantas vezes a mesma história! "Desta vez vai ser diferente, você vai ver...", quantas vezes!, embuçado nas sombras fugidias do salão, lâmpadas Osram em saias rodadas de papel celofane vermelho, plástico ordinário vestindo as mesas de metal, a vitrola encardida uivando madrugada adentro, o Murrudo, peito de vela ao vento, pano-de-prato ensebado aconchegado no ombro, uma Nossa Senhora Aparecida, devoção da dona Janice, brilhazul no nicho, atrás do caixa. Ê minha nega!, é isso, a vida?
Para todo o sempre permaneceria ali, sob a cama, estirada na frescura do cimento, fugitiva do abafor, "Essa mania... Você acaba pegando um troço... uma tuberculose... uma pneumonia, no mínimo..." (quem fala? dona Janice, inda há pouco? Valdira? Baianinha? a mãe, na infância?), não a atormentasse o batuque no telhado, propagandeando a chuva tardã. Desentocou-se, cerrou as folhas da janela, escancarou o guarda-roupa, catou uma coberta, enrolou-se, agarrando-se ao colchão-de-capim, trabesseiro abraçado às orelhas, olhos arregalados, braços enrodilhando as pernas fletidas, o corpo tremeluzindo suores, trovões espatifando pelos lados da rua, e os relâmpagos, meu deus!, coriscando no céu (o caixão doado pela prefeitura desce raspando as paredes do buraco estreito, a mãe dentro, o negro banguela limpa a testa merejada na manga da camisa esgarçada, assiste-a de baixo para cima, simpático, os parcos acompanhantes já se aproximam do portão, e ela, Cidinha - não, não era Cidinha ainda, como se chamava, então?, como? -, hipnotizada, a poeira sufoca a tarde, gritos bêbados, Vambora, sua cadela!, um tapa, Quê que isso, seu?, o negro banguela assustado, Vamos, desgraçada!, o pai novamente, zonza, o corpo magroveloz ziguezagueia entre túmulos, tropeça nas indigentes cruzes brancas fincadas no chão amarelo, esquiva-se de vasinhos de flores murchas e dos maços de velas acesas, arranha-se nas unhas-de-gato e marias-sem-vergonha que empesteiam o cemitério, Só desgosto, ainda ouviu, Só desgosto, essa... Há uma goteira no meio do cômodo. Tivesse ânimo, deslocaria o penico até lá, evitando a molhação (depois, sabia, caberia a ela mesma, rodo e saco-de-estopa, enxugar tudo), mas a tribuzana... Há tatus que comem defuntos... E pelos buracos que esculpem sob as lápides escorrem a água da chuva, as formigas, os jararacuçus. Dorme, desgraçada, por que essa filha da mãe não dorme? Ela, que ainda não era Cidinha, deixava, de raiva, os chinelos-de-dedo de bruços. Ela, que ainda não era Cidinha, agasalhava a cabeça, lençol manchado de percevejos, o vento brincando com o amarrado de sapé que cobria o casebre cai-não-cai. O que acontece quando a gente morre? A gente vai para onde? Nunca mais vou ver minha mãe? Nunca mais? E o pai, pressentindo-a revirar no colchão esburacado estendido no chão alisado com bosta-de-vaca, Vê se dorme, desgraçada! Vê se dorme, senão... E os dias espreguiçavam, piava a invisível juriti, o sol carreava o nascente para o poente, as noites se recolhiam, recatadas, e a mãe, essa nunca que voltava, Mãe?, sabão-de-abacate no tacho de cobre, porco berrando no terreiro, toicinho, um rosto?, nada, Mãe?, Mãe?
Além, sobre, sob: o dilúvio.

Luiz Ruffato é escritor e autor, entre outros,
de Eles Eram Muitos Cavalos (Editora Boitempo, 2001).