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A hora e a vez da reciclagem

Prefeituras, empresas e população despertam para as vantagens do reúso de materiais

MIGUEL NÍTOLO


Separação de resíduos em Americana (SP)
Foto: Divulgação

Na paisagem urbana, sempre apinhada de carros, ônibus, motos e de gente indo e vindo, ganharam posição de relativo realce de uns tempos para cá os catadores de material reciclável e seus prosaicos carrinhos de mão. Nunca esses arremedos de carroça e seus condutores ousaram invadir as vias públicas com o ímpeto de agora, à cata, principalmente, de latinhas de cerveja e refrigerante, garrafas PET (politereftalato de etileno) vazias e jornal e papelão velhos, um trabalho outrora pouco reconhecido, mas que começa a merecer o respeito e até mesmo a admiração das pessoas, em especial aquelas que nutrem simpatia pelos movimentos em defesa do meio ambiente.

É verdade que estamos apenas dando os passos iniciais de uma caminhada que é bem conhecida de nações mais avançadas e, por isso mesmo, geradoras de resíduos em larga escala, fruto do consumo desenfreado. E, por outro lado, a despeito da pecha de inutilidade que o caracteriza, o lixo tem um lado bom: ninguém poderia supor até há bem pouco tempo que o ato de coletar materiais passíveis de ser reutilizados daria margem ao florescimento de um ramo empresarial que começa a exibir números de fazer cair o queixo.

Exemplos não faltam. De acordo com indicadores oficiais, a proporção de latinhas de alumínio recicladas no Brasil, em 2008, cravou em 91,5%, índice que deu ao país, pelo oitavo ano seguido, a posição de liderança mundial no reaproveitamento do produto.

Em relação a outros itens, em que o percentual dos volumes reciclados também chama a atenção, despontam a embalagem de resina PET (55,8% em 2008), o vidro (47%), as latas de aço (46,5%) e o papel (43,7%). No que se refere à embalagem PET, segundo a Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet), o país se coloca entre os líderes no campo da reciclagem, estando à frente dos Estados Unidos e da União Europeia. “São mais de 500 empresas em atividade em todo o Brasil, que, juntas, geram um faturamento de R$ 1,09 bilhão”, relata Auri Marçon, presidente da entidade.

Nas ruas

O Brasil de hoje é diferente do país de décadas atrás, quando a industrialização estava começando a ganhar força, e é natural, portanto, que o volume de lixo reciclável seja cada vez maior. Com isso, aumentou, e muito, a quantidade de pessoas empurrando carrinhos pelas cidades. Felizmente, um grande número delas estão empregadas, têm um salário a receber no fim do mês. Desgraçadamente, muitas outras amargam uma rotina de dificuldades que torna esse ofício desinteressante do ponto de vista financeiro. Mesmo assim, apenas na cidade de São Paulo, estima-se, somam cerca de 20 mil os catadores de recicláveis em atividade, sobrevivendo e sustentando suas famílias, comenta Davi Amorim, da assessoria de comunicação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Desse total, ele esclarece, “apenas 3 mil atuariam de forma organizada em cooperativas e associações. O restante está nas ruas exposto aos perigos que essa modalidade de trabalho oferece”, diz.

É compreensível, portanto, que as cobranças de dias mais auspiciosos para esses trabalhadores partam de todos os lados. No início de agosto, depois de muita espera, foi finalmente instituída a Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei nº 12.305), uma espécie de coroamento ao trabalho de pessoas e instituições que se batem pelo reconhecimento da figura do catador. Dentre outras conquistas, esse ordenamento jurídico agrupa princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a gestão do lixo sólido. Com ele vai ser possível responsabilizar a sociedade pela geração de lixo e as empresas pelo recolhimento de produtos descartáveis (logística reversa), além de estabelecer a integração de municípios na gestão dos resíduos. “A lei 12.305 simboliza a vitória dos catadores de lixo”, garantiu o presidente Lula, ao sancioná-la.

Levou muito tempo para que o Brasil começasse a valorizar o trabalho do catador de resíduos. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, que na forma de projeto de lei tramitou por mais de 20 anos no Congresso Nacional antes de ser aprovada, vem do tempo em que o país apenas ouvia falar de coleta seletiva e ainda não se tinha uma noção clara da reciclagem em escala industrial. “Até o advento desse ordenamento jurídico não havia um marco regulatório que definisse com clareza as responsabilidades no tocante à recuperação dos resíduos sólidos urbanos”, diz Elisabeth Grimberg, pesquisadora, diretora e coordenadora da área de meio ambiente urbano do Instituto Pólis, organização não governamental de atuação nacional que se dedica ao estudo, formação e assessoria em políticas sociais. “Então, a indústria da reciclagem foi se estabelecendo com base nos programas de coleta seletiva desenvolvidos pelos municípios que saíram na frente, e também pela ação das empresas mais atuantes na área e por proposituras da sociedade civil.”

Dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), divulgada em agosto passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelaram que somente 994 dos 5.564 municípios brasileiros operavam algum tipo de coleta seletiva em 2008. É pouco, mas mesmo assim é um salto fenomenal ante o total de 20 anos atrás, quando eles somavam 58. São resultados que contrastam com os números divulgados pelo Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), cuja pesquisa Ciclosoft indica que há apenas 443 municípios envolvidos, de fato, com a coleta seletiva, e assim mesmo “na maior parte deles esse serviço não cobre mais do que 10% da população local”.

Há localidades em que a implantação de programas de coleta é rapidamente desativada devido à falta da imprescindível colaboração da população. Foi o que aconteceu em Arealva, cidade de 7.800 habitantes a 388 km da capital paulista. “Fez-se uma tentativa e não deu certo”, conta Luana Boiani, interlocutora local do Programa Município Verde Azul, da Secretaria do Meio Ambiente do estado de São Paulo, que cadastra os municípios de alguma forma empenhados na defesa do meio ambiente.

Ela diz que, além da falta de conscientização das pessoas, que continuaram colocando o lixo seco e o úmido no mesmo recipiente, dificultando o trabalho de coleta, havia ainda a questão que envolvia os catadores individuais, porque “passavam antes, pegavam o que lhes convinha e bagunçavam a sobra”. Por conta disso, a municipalidade tomou a iniciativa de fazer ela própria a separação, por meio de seu departamento de reciclagem.

O que ocorreu em Arealva, a bem da verdade, também acontece em outros lugares. “Cada município deve desenvolver o modelo de coleta que melhor atenda às suas necessidades, mas o importante é que tanto a população quanto o poder público tenham atitudes pró-ativas”, comenta o consultor ambiental Roberto Harb Naime. “É preciso fazer e não esperar as coisas acontecerem”, ele diz, referindo-se a exemplos de posições consistentes a favor da reciclagem. Professor do programa de pós-graduação da Universidade Feevale, de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, Naime pondera que os recicláveis separados pela população poderiam ser trocados por tíquetes que valessem descontos no pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). “É uma medida com força suficiente para motivar as pessoas a levar a sério a separação do lixo seco.”

Naime diz, todavia, que há outras maneiras de despertar o interesse da população, e cita um projeto que começa a dar certo em Cuiabá. “Lá, foram colocados quiosques em estacionamentos de supermercados para receber, essencialmente, latinhas vazias de alumínio e embalagens PET.” O exemplo lembrado pelo professor da Feevale é uma iniciativa do governo de Mato Grosso que ganhou as ruas em 2006 e foi batizada de Projeto Vale Luz. “As pessoas trocam o material reciclável por bônus que podem ser abatidos da fatura de energia elétrica”, esclarece em seu site a Secretaria de Comunicação Social do estado.

Engajamento

O segredo para uma coleta seletiva com elevado grau de eficiência chama-se, portanto, adesão popular, um fato já bastante conhecido do Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André (Semasa), na Grande São Paulo, cidade que atua nesse campo desde 2000 e estaria atendendo a 100% das residências dessa quase metrópole de pouco mais de 670 mil habitantes. Robson Luiz Gisoldi, da assessoria de imprensa daquela autarquia municipal, informa que o Semasa integrou toda a população em uma campanha com vistas a fortalecer a ideia da coleta seletiva, orientando os moradores quanto à separação correta dos resíduos recicláveis e informando dia e horário de circulação dos caminhões de recolhimento. “A ação de comunicação, que foi vencedora do prêmio EcoPET 2009, contribuiu para aumentar o volume coletado no período, que atingiu 8.433 toneladas, o maior da década, 2.257 toneladas superior ao de 2008 e o dobro do de 2006”, destaca Gisoldi.

É público e notório que o engajamento da população na separação do lixo reciclável não é uma coisa fácil de alcançar, como tampouco é simples a tarefa de convencer as municipalidades renitentes a aderir de corpo e alma à coleta seletiva. No entanto, um passo importante dessa caminhada já foi dado e a ele se deve, em boa dose, o sucesso registrado até aqui: a constituição de cadeias de reciclagem, hoje mais ou menos estruturadas e ativas, uma conquista que mudou o jeito de operar de alguns setores, tais como os de plástico, papel, papelão, embalagens de alumínio, sucatas de ferro e não ferrosos e embalagens de PET. E graças a essa engrenagem, que vai ficando cada vez mais azeitada e envolvendo milhares de pessoas, o material que é coletado, separado e reciclado acaba retornando como novo ao mercado.

Por conta dessa roda-viva, numerosos municípios se encontram na mesma posição privilegiada ocupada por Santo André em relação à coleta seletiva, servindo também de vitrina para o resto do país. Americana, a 135 km de São Paulo, é um deles: em operação desde 1999, o programa dessa cidade de 205 mil habitantes atende a todos os seus 253 bairros, cobrindo não apenas a coleta de lixo domiciliar, mas, ainda, a hospitalar e a de óleo de cozinha. Realizado diariamente, o recolhimento de recicláveis utiliza seis caminhões (quatro de empresas contratadas e dois da prefeitura) e o trabalho de 22 pessoas. “O material coletado, de cerca de 10 toneladas diárias, é encaminhado para quatro cooperativas a fim de ser devidamente separado”, explica Jair Molon, diretor da Unidade de Limpeza Pública (ULP), da Secretaria de Obras e Serviços Urbanos do município. Ele salienta que, no caso do óleo de cozinha, a ULP fez o cadastro de bares, residências e restaurantes, que têm tão somente o trabalho de fazer a separação do produto para posterior coleta. “Recolhemos, em média, 700 litros de óleo por semana”, registra Molon.

São Manuel

Se não fossem as cooperativas de catadores, como aquelas que atuam na separação de resíduos em Santo André e Americana, a história da reciclagem não teria ido tão longe no Brasil – tanto é assim que essas associações marcam presença na maioria dos lugares em que a coleta seletiva é praticada. “Em São Manuel, onde esse serviço existe desde 2003, a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável (Acapel), que tem o apoio da prefeitura municipal, responde pela separação de 70 toneladas mensais de lixo seco, metade do que é coletado na cidade no período, visto que dezenas de catadores independentes também percorrem as ruas com o mesmo objetivo”, relata Mara Aparecida Martins Caglioni, gestora do empreendimento. Constituída, no momento, por 28 ex-catadores, todos residentes nesse município paulista de 40 mil habitantes, a cooperativa ocupa área coberta de 500 metros quadrados e é abastecida com a coleta feita por um terceiro contratado cujo caminhão percorre toda a cidade. O material separado é comercializado diretamente com recicladores e o dinheiro arrecadado é repartido entre os cooperados, que recebem mensalmente em torno de R$ 900, expõe Mara.

A coleta seletiva, de acordo com a PNSB, vai se espalhando para todo o Brasil, só que com mais força nas regiões sul e sudeste, onde se concentram quase 90% dos municípios em que o serviço é de alguma forma oferecido – como Apucarana, no Paraná, e Gramado, no Rio Grande do Sul. No município paranaense, de 120 mil habitantes e a 369 km de Curitiba, a municipalidade deu vida ao Programa Sacola Verde. “O serviço, que consiste na distribuição de sacolas plásticas verdes em supermercados e outros estabelecimentos do varejo com o intuito de motivar os moradores a depositar ali o lixo reciclável, foi implantado a partir de uma parceria firmada pelo poder público local com a Cocap [Cooperativa de Catadores de Papel e Recicláveis de Apucarana]”, relata João Batista Beltrame, secretário de Meio Ambiente e Turismo do município. Ele esclarece que a coleta é feita com a ajuda de três caminhões, dois deles cedidos pela prefeitura (um próprio e outro locado da empresa que faz a coleta de lixo na cidade) e um pela Cocap, veículo que foi adquirido com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Gramado, por sua vez, um dos municípios mais visitados do país, a 125 km de Porto Alegre e com população de 34 mil habitantes, opera, segundo informações divulgadas pela prefeitura municipal, uma usina de triagem onde trabalham 35 pessoas. A cidade emprega dois caminhões no trabalho de coleta, um deles adquirido recentemente com o objetivo de aumentar a periodicidade do recolhimento do lixo seco e “incentivar a participação da comunidade no processo”.

Em algumas cidades maiores, como São Paulo, pode acontecer de a coleta seletiva caminhar mais moderadamente. “A capital recolhe, convencionalmente, cerca de 10 mil toneladas diárias de resíduos domiciliares (outras 5 mil toneladas correspondem a entulho, resultado de poda de árvores etc.), e desse total muito pouco é encaminhado para a reciclagem”, afirma Elisabeth Grimberg. A Secretaria de Serviços do município informa que o Programa de Coleta Seletiva de São Paulo existe desde 2003 e, atualmente, são atendidos 74 dos 96 distritos da cidade. Ainda segundo o órgão, a coleta domiciliar é executada por duas concessionárias, contando também com a participação de 18 cooperativas conveniadas com a prefeitura, que, juntas, envolvem o trabalho de 1.050 pessoas. “O poder municipal subsidia a infraestrutura das centrais de triagem e equipamentos, tais como caminhão de coleta e galpões, e arca com o pagamento da água e da luz”, informa Rafael Barros Mussi, da assessoria de imprensa da secretaria. Ele relata que no ano passado foram recolhidas 37,6 mil toneladas de materiais, 8% a menos que no ano anterior – uma queda justificada pela crise econômica. O total coletado no período correspondeu a apenas 5% do volume passível de ser reciclado, segundo a municipalidade. Nos primeiros sete meses de 2010 a coleta de lixo seco rendeu 20,3 mil toneladas.

Mussi esclarece ainda que São Paulo conta com 3,8 mil Pontos de Entrega Voluntária (PEV) localizados em condomínios comerciais, residenciais e públicos – para os quais foram disponibilizados 2,8 mil contêineres –, em escolas e supermercados. Alguns locais da cidade respondem integralmente pelo destino de seu lixo, caso do Condomínio Conjunto Nacional (CCN), um conglomerado de apartamentos de uso residencial e comercial solidamente edificado na luxuosa Avenida Paulista. Diariamente, coletores da Cooperativa de Arte Alternativa e Coleta Seletiva (Cooperaacs) percorrem os andares e as lojas do centro comercial do edifício e inspecionam os recipientes espalhados em pontos estratégicos, além das 26 lixeiras instaladas nas calçadas que circundam o CCN, com o propósito de recolher os materiais recicláveis, relata Monalisa Cardoso, coordenadora de Comunicação e Arte do conjunto.

Ela explica que a separação deve acontecer na fonte geradora para evitar qualquer contato manual dos coletores com os resíduos. Os materiais são encaminhados para a central de coleta, localizada no segundo subsolo, e os recicláveis, que totalizaram no ano passado 198,6 toneladas, armazenados em baias separadas.

Como se vê, quando se trata de coleta seletiva e reciclagem, é preciso dar tempo ao tempo. Algumas cidades se mostram mais ativas, enquanto outras sequer despertaram para tais iniciativas. Nessa questão, como em tantas outras, sabemos que, mesmo devagar, mas com perseverança e até certa dose de teimosia, um dia o Brasil atingirá seus objetivos.

 

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