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Serra do Mar sofre com invasões

Programa tenta recuperar áreas de mata atlântica ocupadas irregularmente

REGINA HELENA RAMOS


Bairros Cota: mais de 7 mil famílias em
nove núcleos / Foto: Clovis Deangelo

Durante a construção da Via Anchieta, que liga São Paulo à Baixada Santista, barracos de madeira foram erguidos ao lado da rodovia para guardar material e abrigar os operários. Terminada a obra, muitos trabalhadores do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem, em vez de ir embora, permaneceram morando no local. Com o passar do tempo, as famílias cresceram e novos barracos surgiram. Logo apareceram as primeiras casas de alvenaria, que também foram se multiplicando. Devido às sucessivas crises de emprego, operários do porto de Santos, da Petrobras e das indústrias de Cubatão encontraram nos aglomerados da serra uma opção para não pagar aluguel. Dessa forma nasceram os bairros Cota, assim chamados porque cada um deles recebia o nome correspondente à altitude em que se localizava. Por exemplo, o Cota 90 fica 90 metros acima do nível do mar. E as invasões foram se sucedendo até atingir a cota 500. Atualmente, mais de 7 mil famílias vivem em nove núcleos de ocupação irregular nas encostas da serra do Mar.

Por conta do impacto provocado por esse processo, a mata atlântica foi desaparecendo em vários trechos. A princípio, nos aglomerados, a luz era conseguida por meio de “gatos” e a água vinha das cachoeiras. Já o esgoto, a céu aberto, poluía os mananciais que abastecem Cubatão, Santos e Guarujá. Enquanto isso, a fauna minguava devido à caça. O desmatamento, por sua vez, colocava vidas em perigo, devido ao risco constante de deslizamentos provocados pela chuva.

Apesar do quadro calamitoso, os sucessivos governos fechavam os olhos, já que alguns vereadores e deputados tinham naqueles núcleos um reduto eleitoral. A situação foi se agravando até que, em 1985, o engenheiro florestal João Régis Guillaumon, então diretor do Instituto Florestal, e o pesquisador científico Hélio Ogawa foram de helicóptero inspecionar aquela área da serra do Mar e depararam com milhares de deslizamentos nos locais em que a poluição proveniente de Cubatão tinha dado cabo da vegetação.

Tais condições motivaram um levantamento técnico, cujos resultados levaram à conclusão de que uma chuva muito forte poderia causar um deslizamento de grandes proporções sobre o polo industrial de Cubatão. Além de incontáveis mortes, o acidente poderia provocar o assoreamento do porto de Santos, com consequências inimagináveis para a economia do país. Diante da gravidade da situação, o procurador de Justiça Edis Milaré, então titular da ainda incipiente Curadoria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, órgão vinculado ao Ministério Público, instaurou uma representação contra as indústrias de Cubatão, que foram obrigadas a instalar filtros para diminuir a poluição. Ao mesmo tempo, teve início a semeadura aérea de espécies nativas da mata atlântica, visando ao reflorestamento. A iniciativa obteve bons resultados, com a regeneração da vegetação, e a ameaça foi afastada.

Providências

Apesar de os bairros Cota estarem localizados dentro dos limites do Parque Estadual da Serra do Mar, criado em 1977, e de a região ter sido tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1985, nada foi feito em relação às ocupações irregulares. Mesmo com o risco de ser atingidas por deslizamentos, 30 mil pessoas ainda habitam aquela área de preservação ambiental, afetando de forma direta a mata atlântica, bioma que detém a maior biodiversidade do planeta e do qual restam somente 7,6% da cobertura original. Segundo a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SMA), 80% dos problemas do parque estão na região de Cubatão.

Em 2007, finalmente, o governo paulista decidiu tomar providências e determinou que a Secretaria da Habitação, por intermédio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), e a SMA atuassem juntas na busca de uma solução. Naquele mesmo ano foi realizado um mapeamento geológico e geotécnico das encostas da serra, que serviu de base para determinar quem poderia ficar ou deveria sair – as famílias com casa em beira de rio ou junto à estrada teriam obrigatoriamente de deixar o local.

Esse foi o primeiro passo na implantação do Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar, iniciado pelos bairros Cota. Como o próprio nome diz, o projeto tem dupla finalidade. Na área ambiental, o objetivo é procurar salvar o pouco que resta da mata atlântica, já que essa cobertura vegetal tem importância fundamental na regulação do clima e no abastecimento de água para os 18 milhões de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo. Da mesma forma, a preservação das nascentes que se encontram na serra é vital para os mais de 5 milhões de pessoas que vivem na Baixada Santista e no restante da orla marítima do estado.

Trata-se, no entanto, de uma meta ambiciosa, que depende da remoção do maior número possível de famílias dos bairros Cota e de mudanças drásticas no local para as que ali permanecerem. Para essa empreitada, o governo do estado conta com um aporte de R$ 600 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), destinado tanto à oferta de habitação para a população de baixa renda como à urbanização.

Mudanças

“A remoção está em pleno andamento, já reassentamos 2 mil famílias, que estão morando em prédios novos, e até o final do ano mais 500 terão o mesmo destino”, diz o secretário da Habitação, Lair Krähenbühl. “Depois de desocupados, os barracos são imediatamente demolidos, para evitar novas invasões”, explica ele, acrescentando que para convencer as pessoas a mudar vem sendo oferecido a elas um leque de opções: “Faz parte do projeto disponibilizar uma van para levar os moradores dos bairros Cota a conhecer moradias prontas na Região Metropolitana de São Paulo, em Cubatão, Itanhaém, Praia Grande e São Vicente”.

O secretário informa ainda que, além de oferecer completa infraestrutura urbana – ruas asfaltadas, água, luz, esgoto, escolas –, os novos conjuntos habitacionais, com unidades de dois e três dormitórios, são construídos segundo o desenho universal (ver texto abaixo) e estão equipados com aquecedor solar, medidores individuais de água, playground, churrasqueiras e, em alguns casos, até quadras poliesportivas e garagens subterrâneas. Segundo ele, 80% da clientela é constituída por famílias com renda mensal que não ultrapassa 5 salários mínimos.

Já as pessoas que decidirem continuar morando na serra, segundo Krähenbühl, “terão seu bairro urbanizado, com regularização fundiária, além de possibilidades de inclusão social e de capacitação profissional”. Em maio passado, 211 representantes eleitos pela população fizeram um curso de formação de agentes comunitários, no qual receberam informações sobre memória, cidadania, comunicação e promoção humana.

Para evitar novas invasões, o projeto prevê ainda a construção de uma via perimetral, que marcará os limites do parque. “Dessa forma, o trabalho da polícia ambiental na identificação dos habitantes locais será facilitado; além disso, com a regularização fundiária, os próprios moradores também atuarão como agentes de fiscalização”, diz o secretário da Habitação.

Abrangência

Vale lembrar que os problemas que afetam a mata atlântica na serra do Mar não estão restritos à região de Cubatão. Na verdade, há impactos ao longo de toda a faixa litorânea do estado de São Paulo, desde a divisa com o Paraná até os limites com o Rio de Janeiro.

De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente, além dos barracos e casebres erguidos dentro da área do parque, há ainda estradas abertas sem autorização, casas e condomínios de luxo construídos ao lado de rios e cachoeiras, cursos de água desviados para alimentar piscinas particulares etc. Por essa razão, além do Programa de Recuperação Socioambiental, está em andamento também o chamado Sistema de Mosaicos da Mata Atlântica, um programa do governo que abrange todos os loteamentos irregulares que provocam impacto na área delimitada pelo Parque Estadual da Serra do Mar, que se estende por 23 municípios.

Segundo Krähenbühl, é muito importante que as prefeituras dessas cidades se engajem na luta, uma vez que poderão dar uma valiosa contribuição a um efetivo controle do adensamento populacional e ao mesmo tempo ajudar a preservar o meio ambiente. Em sintonia com o governo do estado, quatro municípios do litoral norte – Bertioga, São Sebastião, Ubatuba e Caraguatatuba – já assinaram convênio com a Secretaria da Habitação, credenciando-se para o Programa Estadual de Regularização de Núcleos Habitacionais.

Considerando que a CDHU constrói somente em terrenos que tenham escritura definitiva, o governo enfrentaria problemas para tocar seus programas de reassentamento caso não pudesse contar com os instrumentos criados pela lei federal 11.977/09, que vem sendo chamada de “usucapião administrativo”. Graças a esse dispositivo, pode-se obter a legitimação de posse mesmo sem escritura anterior, uma vez que, efetuada a desapropriação e depositado o valor justo correspondente ao preço do imóvel, o terreno pode ser levado a registro.


Cicatrizes históricas

Para transitar entre o litoral e o planalto, na região de Cubatão, a princípio – na época do descobrimento do Brasil – havia apenas um caminho, que ficou conhecido como Trilha dos Guaianases. Aos poucos, porém, foram abertas outras vias de acesso, dando início à degradação da mata atlântica na serra do Mar, um processo que dura até hoje:

1532 – Martim Afonso de Sousa e João Ramalho percorrem, com muita dificuldade, outra “picada” que levava à região da futura província de São Paulo.

1553 – O padre José de Anchieta teria orientado os índios a abrir uma trilha alternativa, que ficaria conhecida como Caminho do Padre José.

1555 – Em carta ao rei de Portugal, o segundo governador-geral do Brasil, Duarte da Costa, dava conta de que uma estrada boa e segura demandaria grandes recursos e pedia autorização para que um milionário da época, um tal Joan Peres, de alcunha O Gago, a fizesse: “Sendo acusado pela justiça por se dizer que matara hum de seus escravos do gentio desta terra com açoutes, disse ao ouvidor que queria fazer o dito caminho á sua custa e por logar por onde bem se pudesse caminhar e a contentamento dos moradores contanto que não se procedesse contra ele polo dito caso”.

1792 – É feita a Calçada do Lorena por ordem do governador da capitania, Bernardo José de Lorena. Construída em zigue-zague, não precisava de pontes, porque não cruzava nenhum rio.

1841 – É construída uma estrada precária, por onde passaram as carruagens que levavam dom Pedro II e dona Teresa Cristina no trajeto entre o planalto e o litoral. Por esse mesmo caminho, bastante melhorado, é feita, já em 1908, a primeira viagem de carro de São Paulo a Santos, com a duração de 37 horas.

1948 – Surge a Via Anchieta – nome dado em homenagem ao padre que foi um dos primeiros a escalar a serra do Mar até o planalto, onde fundou um humilde colégio que daria início à vila de São Paulo de Piratininga.


Desenho universal

Planejar uma moradia que atenda às necessidades de qualquer ocupante, seja criança, idoso ou pessoa com deficiência, é a proposta do desenho universal. Construir segundo esse conceito significa eliminar todas as barreiras arquitetônicas, prevendo portas mais largas, espaço para manobra de cadeira de rodas, instalação de tomadas e interruptores em locais de fácil acesso etc.

A expressão universal design foi usada pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1985, pelo arquiteto Ron Mace. Seus critérios foram estabelecidos na Universidade da Carolina do Norte em 1990, e desde então se espalharam pelo mundo, conquistando profissionais da construção e usuários.

Embora os atuais projetos da CDHU sigam os parâmetros do desenho universal e tenham acabamento acima do encontrado nos chamados conjuntos populares, não são todos os reassentados que ficam satisfeitos com o que encontram em sua nova casa. Em 11 de agosto passado, quando foram entregues 96 unidades do Conjunto Habitacional Rubens Lara, localizado no Jardim Casqueiro, em Cubatão, alguns reclamavam na fila de espera para assinar o contrato.

O casal Ilídio e Vera Lúcia dizia estar deixando para trás uma casa bem maior, com quintal. Manoel José Cabral também se queixava: “A casa é um ovo” – sua unidade era composta de sala, dois quartos, cozinha com lavanderia, banheiro e garagem. Justina, que não quis informar seu sobrenome, estava desgostosa por não poder levar para a nova casa sua criação de galinhas. Já o casal José e Helena estava feliz: “A casa é uma belezinha”.

 

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