
Leia a edição de SETEMBRO/25 da Revista E na íntegra
Nas primeiras duas décadas do século 21, o desenho da sociedade e de suas instituições sofreu grandes alterações com o uso das redes sociais, da inteligência artificial e de outras ferramentas capazes de utilizar um gigantesco volume de dados na internet para os mais diversos fins. Por um lado, abriu-se caminho para vozes historicamente silenciadas, a exemplo de jovens indígenas que passaram a compartilhar sua realidade e reivindicações sem intermediários, nas redes. Por outro, pavimentou-se uma via de disseminação de fake news, polarização ideológica e discursos de ódio. Nesse cenário, de que forma a expansão das novas tecnologias vem afetando a democracia?
Autor de A democracia no mundo digital: histórias, problemas e temas (Edições Sesc São Paulo, 2025), o professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Wilson Gomes chama a atenção, primeiramente, para as maneiras como as novas tecnologias vêm sendo utilizadas em diferentes contextos geopolíticos. “A chamada democracia digital depende de uma escolha: a decisão de usar os recursos digitais – plataformas, redes, dados, algoritmos, automações – para fortalecer valores, práticas e instituições democráticas. Mas essa decisão só pode ser tomada por sociedades convictas de que a democracia é a melhor forma de governo. Quando essa convicção vacila e os regimes são atacados, os mesmos recursos podem ser empregados com igual eficácia para solapar os fundamentos da vida democrática”, alerta.
Para a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rosane Borges, “esse laço indissolúvel entre tecnologia e política em nosso tempo” aponta para sintomas de uma crise democrática em curso. “Sob o manto da liberdade de expressão, do fim da censura (expediente tão caro para nós) proliferam discursos que legitimam racismos, xenofobia, mixofobia [medo ou aversão à mistura, especialmente em contextos sociais e culturais], sexismo e múltiplas formas de discriminação. De uma cultura democrática espera-se equilíbrio na ação comunicativa, hoje densamente midiatizada. Direito à comunicação e, nos dias de hoje, à emissão, tornaram-se um imperativo.”
Consequentemente, segundo o professor Wilson Gomes, nos encontramos diante de uma encruzilhada. “Há os que acreditam que a guerra pelos usos sociais das tecnologias foi vencida pelos inimigos da democracia – que as plataformas, os algoritmos e os fluxos digitais estão, irremediavelmente, capturados por lógicas autoritárias, mercadológicas ou identitárias intolerantes. Mas há, também, os que veem na resistência institucional, nas pesquisas emergentes, na regulação pública e nos novos experimentos democráticos digitais um caminho viável para reverter o jogo.” Neste Em Pauta, Gomes e Borges refletem e questionam o papel paradoxal das tecnologias para as democracias.
Por Wilson Gomes
A rigor, não existe algo como “a democracia digital”. O que existem são regimes democráticos e a ideia de democracia viva nas instituições e nos corações e mentes dos cidadãos. A chamada democracia digital depende de uma escolha: a decisão de usar os recursos digitais – plataformas, redes, dados, algoritmos, automações – para fortalecer valores, práticas e instituições democráticas. Mas essa decisão só pode ser tomada por sociedades convictas de que a democracia é a melhor forma de governo. Quando essa convicção vacila e os regimes são atacados, os mesmos recursos podem ser empregados com igual eficácia para solapar os fundamentos da vida democrática.
A partir de 2016, com o Brexit e a eleição de Donald Trump [para a presidência dos Estados Unidos], e mais visivelmente no Brasil, a partir de 2018, assistimos a uma reconfiguração preocupante do campo democrático. O impulso de inovação cívica e participação digital, que marcou as décadas anteriores, foi desacelerado ou abandonado. Iniciativas de deliberação pública e consulta digital perderam prioridade diante da radicalização política, da polarização e da fragmentação hostil da esfera pública. Tornou-se cada vez mais difícil manter canais de argumentação racional e cooperação entre diferentes, sobretudo em ambientes digitais. A deliberação foi substituída pela guerra de narrativas, e o engajamento, pela militância moralizada.
Nesse cenário, não apenas se esvaziou o entusiasmo por projetos democráticos digitais – eles passaram a ser frontalmente inviabilizados pelo uso coordenado e intencional das mesmas tecnologias para fins antidemocráticos. O ciclo de inovação foi interrompido e, em seu lugar, emergiu um ciclo de sabotagem: campanhas digitais orientadas por dados, estrategicamente construídas para desinformar, radicalizar e deslegitimar. O caso brasileiro é exemplar: em 2018, a extrema-direita soube combinar logística de WhatsApp, redes de desinformação, produção em massa de fake news e comunicação direta com bases mobilizadas, contornando tanto o jornalismo tradicional quanto o escrutínio institucional.
Ao lado da manipulação da informação, um segundo eixo de ameaça consolidou-se: a profissionalização da campanha política digital, que passou a operar com perfis psicométricos, bots [robôs virtuais], microdirecionamento, propaganda disfarçada e técnicas de engenharia afetiva. A datificação da política não serviu apenas para sofisticar campanhas eleitorais – serviu para desfigurar as condições epistêmicas do debate público e dissolver os mecanismos tradicionais de controle democrático.
O que se consolidou nos últimos anos é a compreensão de que a democracia precisa desenvolver mecanismos imunológicos contra as novas formas de sabotagem digital
O que temos, portanto, não é o fracasso de uma promessa chamada democracia digital. É a constatação de que o digital não é em si virtuoso nem vicioso. Tudo depende da direção ética, política e institucional que se imprime aos seus usos. A democracia digital nunca foi inevitável, nem está garantida. É uma escolha. E, na última década, muitos dos que fizeram essa escolha foram justamente os que buscavam sabotar a democracia, não aperfeiçoá-la.
Essa virada também se refletiu no campo acadêmico. Se antes predominavam estudos sobre potencialidades do digital para a democracia – participação, deliberação, transparência –, hoje floresce uma agenda de investigações sobre ameaças digitais à democracia. Fake news, teorias da conspiração, radicalismo algorítmico, manipulação automatizada, violência simbólica e discursiva tornaram-se objetos centrais de pesquisa. A democracia digital, enquanto campo de estudos, passou a incluir sua própria linha defensiva.
Mas essa mudança de foco não deve ser confundida com derrota. É, antes, um sinal de maturidade. O que se consolidou nos últimos anos é a compreensão de que a democracia precisa desenvolver mecanismos imunológicos contra as novas formas de sabotagem digital. E é justamente aí que reside o próximo ciclo de inovação democrática: desenvolver tecnologias, instituições e práticas capazes de proteger o espaço público, garantir o direito à informação de qualidade e preservar a autonomia dos cidadãos frente à manipulação invisível.
Estamos, assim, diante de uma encruzilhada. Há os que acreditam que a guerra pelos usos sociais das tecnologias foi vencida pelos inimigos da democracia – que as plataformas, os algoritmos e os fluxos digitais estão, irremediavelmente, capturados por lógicas autoritárias, mercadológicas ou identitárias intolerantes. Mas há, também, os que veem na resistência institucional, nas pesquisas emergentes, na regulação pública e nos novos experimentos democráticos digitais um caminho viável para reverter o jogo.
A pergunta, portanto, não é se a democracia digital está ultrapassada ou se a tecnologia fracassou em democratizar a política. A pergunta é: quem está vencendo a batalha pelos usos públicos das tecnologias digitais? Como na fábula do lobo, ganhará aquele que decidirmos alimentar. Ainda é possível alimentar o lobo democrático – com convicção cívica, ação institucional, inovação política e responsabilidade pública.
Por fim, é importante salientar que, apesar de tudo, a democracia digital é uma ideia e uma experiência cujo tempo, definitivamente, chegou. Primeiro, porque não há mais como recuar até um momento anterior à transformação digital da vida, inclusive da vida pública e do Estado. Não há retorno possível – nem desejável – a um mundo prévio às sucessivas revoluções digitais, à datificação e aos avanços acelerados da inteligência artificial. Preparados ou não, o digital nos alcançou em cheio. Segundo, porque não temos escolha a não ser tentar dobrar usos e recursos digitais para reforçar valores, meios, modos e instituições da democracia, inclusive enfrentando todas as tentativas de empregar os mesmos recursos e dispositivos contra a vida democrática. A democracia digital não é um destino – e isso aprendemos nos últimos anos –, mas uma tarefa a ser realizada pelos democratas.
Por Rosane Borges
Tornou-se moeda corrente a constatação de que vivemos tempos de recessão democrática. A dita desdemocracia – termo cunhado pelo cientista político e professor russo Vladimir Gel’man – é expressão que se presta à exorbitância: são várias as perspectivas e prismas que vêm analisando o nosso tempo pelo viés do déficit democrático, mobilizando setores diversos a repensarem em novos figurinos para o exercício da vida pública.
Que as democracias agonizam em várias partes do mundo, disso ninguém mais duvida. Esta parece ser a preocupação que vem tirando o sono de analistas ao redor do planeta, a exemplo dos professores da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do best-seller Como as democracias morrem? (2018), e do espanhol Manuel Castells, com o livro Ruptura: a crise da democracia liberal (2018). Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman, completa o trio das obras que venderam mais que cerveja no carnaval. A prescrição do remédio para a ascensão do autoritarismo tornou-se invariável: a necessidade premente da criação de frentes democráticas.
É com assustadora frequência que testemunhamos nos tempos que correm a combinação nefasta do liberalismo econômico com o conservadorismo reacionário, uma espécie de casamento por interesse que vem se mostrando o principal fiador desse quadro de destruição e horror. Essa face aberrante e intolerável só ganha tais contornos porque a combinação que a sustenta (liberalismo iliberal e conservadorismo reacionário) faz conexão com imaginários arcaicos que deitam raízes na escravidão e no patriarcado. Além das preocupações com a perda de musculatura da democracia, causa espanto a decadência do liberalismo, que hoje se reduz ao liberalismo econômico, responsável por soterrar os ideais do liberalismo político (liberdade de autonomia individual, tolerância, diversidade, pluralidade).
A ascensão do populismo e da extrema-direita vêm perturbando o que as democracias liberais ocidentais avaliavam como inabalável: a fortaleza do ideal liberal como um dique capaz de conter o medo e as forças autoritárias. Chega-se a afirmar que experimentamos uma debilidade sistêmica do liberalismo.
Num quadro como esse, de pós-globalização, de desdemocracia, de liberalismo iliberal, de populismo autoritário, de avanço dos nacionalismos xenófobos, como pensar a democracia no ambiente digital? Como reagir à índole antidemocrática que se instalou no tecido nervoso do ambiente das redes sociais, que acabam sendo, ao fim e ao cabo, antissociais? Como reposicionar o debate, tão febril em nossos dias, sobre os destinos da democracia, tomando como nexo prioritário as Big Techs?
Não podemos ficar indiferentes ao fato de que os dizeres destituidores transmitidos em escala vertiginosa na internet e fora dela ganham eco na sociedade de tal forma a constituir o agir comunicativo da esfera pública, demandando por novos acordos para o exercício da democracia
Já afirmei em outros momentos que se tornou irrefutável o relevante papel das redes sociais para a troca informativa que se quer veloz, em fluxo contínuo, para a instituição de um lugar em que a profusão de ações momentâneas, cambiantes e fluidas desenha um espaço plural de inovações comunicacionais possíveis, enredando-nos em nós de inventivas projeções. Uma das principais responsáveis por selar novos pactos comunicativos, visto que a relação emissor-receptor se modificou substantivamente, as redes sociais colaboram para que múltiplas formas do falar e do se expressar teçam o emaranhado discursivo do qual somos produtores e consumidores, os chamados “prosumer”, figura tão em voga nos nossos dias, consagrada tanto pelo mercado quanto pela academia.
Em meio às maravilhas e benefícios da técnica – que originariamente tem o destino de decidir bem –, pomos sob o exame da crítica às redes sociais para, a partir desse lugar, pensar a marcha do mundo nos nossos dias; examiná-las criticamente. Aqui, corresponde ao próprio sentido etimológico do termo crítica, que é o de pôr em crise. Um dos aspectos que nos permitem pôr as redes sociais em crise diz respeito à estridência do mundo, visto que nessa ambiência comunicativa sentimo-nos livres para tudo dizer, demonstrando a força destrutiva de racismos, homo e transfobia, sexismo, patriarcado, etarismo, capacitismo e outras formas de discriminação correlatas. Não podemos ficar indiferentes ao fato de que os dizeres destituidores transmitidos em escala vertiginosa na internet e fora dela ganham eco na sociedade de tal forma a constituir o agir comunicativo da esfera pública, demandando por novos acordos para o exercício da democracia.
Eis os sintomas da crise: sob o manto da liberdade de expressão, do fim da censura (expediente tão caro para nós) proliferam discursos que legitimam racismos, xenofobia, mixofobia, sexismo e múltiplas formas de discriminação. De uma cultura democrática espera-se equilíbrio na ação comunicativa, hoje densamente midiatizada. Direito à comunicação e, nos dias de hoje, à emissão, tornaram-se um imperativo. De acordo com Marilena Chauí, a democracia possui uma forma sociopolítica definida pelos princípios da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor suas opiniões). Não é à toa que o direito à imagem, à honra, à privacidade, à informação e à liberdade de expressão estão inscritos na lápide dos direitos fundamentais, intensamente requeridos nos dias que correm e mais facilmente alcançáveis por força dos formidáveis recursos de comunicação.
Mais do que instantaneidade de informações, compartilhamentos, trocas online, plasticidade dos conteúdos, as redes sociais sinalizam para pedaços de nossa história em que se divisa o projeto de civilização com o qual (des)acordamos, o que significa dizer que as formas de regulação não são meramente um modo de censura, mas uma forma de subscrevermos um projeto em que a humanidade de cada um e de todos/as/es seja assegurada. No contexto de capitalismo de cassino, os conglomerados de tecnologia franqueiam a possibilidade do exercício dos racismos, do sexismo, do patriarcado e do politicídio. Tais formas aberrantes de comunicação e expressão contribuem para debilitar ainda mais a democracia, o que só reafirma o laço indissolúvel entre tecnologia e política em nosso tempo. Apuremos nossa audição para os ruídos que de lá, do ambiente digital, nos chegam, frequentemente sancionados pela experiência cotidiana atravessada pela alterofobia.
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