
Cofundadora da agência de jornalismo independente Amazônia Real, Kátia Brasil aponta para os desafios de colocar a crise climática no centro do debate
POR LÚCIA NASCIMENTO
FOTOS NILTON FUKUDA
Em 19 agosto de 2019, o dia “virou noite” na cidade de São Paulo. Naquela data, a tarde começou com o céu encoberto por nuvens, a escuridão tomou conta e a iluminação pública foi automaticamente acionada após o almoço. Fotos aéreas mostraram um céu totalmente escuro e carros circulando com os faróis ligados nas principais vias da metrópole.
O fenômeno reforçou um alerta. Afinal, a escuridão foi provocada por partículas de fumaça carregadas pelo vento, oriundas de queimadas em uma região que parece distante da capital paulista no mapa, mas que é essencial para a qualidade de vida em todo o planeta, a Amazônia. Se alguém precisava de mais evidências, aquele dia ajudou na confirmação dos efeitos das ações humanas sobre a natureza: é preciso um esforço coletivo para que as alterações climáticas e a degradação ambiental sejam combatidas.
“Quando a gente vê fumaça escura em São Paulo, vinda da Amazônia, esse é o maior alerta que nós temos. Se nós, que somos comunicadores, não falarmos disso, quem vai falar?”, questiona Kátia Brasil, jornalista cearense que, na década de 1990, migrou para a Amazônia. Desde então, ela passou a se dedicar à cobertura de temas ambientais, aos direitos dos povos indígenas e às questões que permeiam esse debate, como as relações entre meio ambiente, racismo e equidade de gênero.
Neste Depoimento, Kátia Brasil conta a própria história e seu percurso como jornalista investigativa, além de enfatizar a urgência de refletirmos sobre as relações entre o clima, o racismo ambiental e as desigualdades sociais que assolam o país.
chamado
Mais ou menos em 1987, eu ainda estava na universidade e era muito ativa. Trabalhava no jornal da faculdade, estudava teatro, e uma amiga me chamou para fazer a produção de uma peça em que a Marcélia Cartaxo era uma das atrizes e abordava conflitos no campo. O espetáculo era uma homenagem ao Chico Mendes [(1944-1988), seringueiro e ativista político brasileiro, reconhecido por sua luta pelos seringueiros da Bacia Amazônica]. Aquela aproximação, mesmo que de longe, chamou a minha atenção para a luta dele. Eu comecei a ler mais sobre a Amazônia e, em 1990, já quase no final da faculdade, soube de uma vaga em um jornal de Roraima. Passei na seleção e fui sozinha morar na Amazônia, com a bênção da minha avó e da minha mãe, duas mulheres muito importantes na minha vida. Elas sempre me disseram para buscar meus sonhos e ser independente.
amazônia
Fui para a Amazônia achando que ia fazer grandes reportagens. Mas, quando cheguei lá, a história não foi bem essa. Eu fiquei nove meses trabalhando em um jornal que não falava de povos indígenas: ninguém podia escrever sobre território e demarcação de terras. Era o jornal de um político, e isso quase me fez desistir do jornalismo. Ao mesmo tempo, nesse lugar, eu encontrei um jornalista chamado Plínio Vicente, que era correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, e ele me ensinou aquele trabalho. Acabei virando correspondente e fui conhecendo a Amazônia. Em 1991, Plínio passou a dirigir o jornal Gazeta de Roraima e fui contratada. Nesse trabalho, pude visitar os territórios, conhecer a terra indígena Yanomami, acompanhar toda a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Eu me encontrei, naquele momento, como uma jornalista que conseguia ouvir o padre, o fazendeiro, o político, as lideranças indígenas, os garimpeiros: foi a oportunidade de fazer as grandes reportagens que eu sonhava fazer.

carreira
Várias histórias marcaram minha jornada como jornalista, mas uma das principais me conecta com a Amazônia Real, agência de jornalismo independente da qual sou uma das fundadoras. Em 1994, conheci o indigenista que participou do contato com o povo Juma no final dos anos 1980. O povo Juma estava em risco de extinção, e naquele ano eu era correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, mas não havia recursos para ir até eles, porque demandaria uma viagem muito longa. No entanto, fiz uma reportagem contando que, naquela época, a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] estava buscando, em outras etnias, maridos para as três moças que ainda existiam no povo Juma. Essa reportagem teve muita repercussão. Apesar disso, só em 2013, quase 20 anos depois, consegui desenhar a minha viagem para a região. Fiquei seis dias com eles, fiz uma reportagem especial e um documentário que foi premiado. Revelei que as mulheres tiveram filhos, naquela época, e que os próprios filhos, hoje, já se colocam como indígenas Juma. Uma das mulheres do grupo me perguntou como ela poderia ter uma rede social, porque ela queria divulgar a luta do seu povo. Eu passei mais quatro anos tentando buscar recursos e criei um projeto chamado Oficina Jovens Cidadãos. Consegui trazer dez mulheres indígenas para Manaus (AM), para ensiná-las como utilizar a tecnologia da informação e as redes sociais para divulgar a cultura, a etnia e, principalmente, as ações que fortalecem seus territórios, que precisam ser demarcados, garantindo a segurança para que eles possam sobreviver na Amazônia.
racismo
A questão climática atravessa todos os corpos, mas principalmente os das populações mais vulneráveis, que são compostas por pessoas negras, pobres, indígenas, periféricas: essas pessoas são invisibilizadas. A gente viu isso acontecer, recentemente, no Rio Grande do Sul, com a população pobre sendo a menos atendida [depois da pior enchente registrada no estado gaúcho, em maio de 2024]. Quando a chuva destrói casas e as pessoas perdem tudo, os governos não atendem essa população como ela deveria ser atendida. Nós também vemos isso acontecer todos os anos na Amazônia, e esse apagamento de parcelas da população é muito grave. Quem mais sofre com a questão climática é quem está na ponta, quem está à margem. Nosso trabalho é dar visibilidade a essas questões para que a população veja de fato o que está acontecendo na Amazônia. Porém, nós temos um problema sério nesse sentido: muitas vezes o poder político, os empresários da madeira, do agronegócio, da mineração, todos eles tentam vender a imagem de que na Amazônia está tudo bem, é tudo verde e maravilhoso. Eles contratam artistas e influenciadores para propagar essas ideias. É um trabalho para esconder o racismo ambiental. Se o governo não demarcar os territórios, a Amazônia permanece em risco.
Nosso trabalho é dar visibilidade a essas questões para que a população veja de fato o que está acontecendo na Amazônia
cop30
Quando a gente abriu a Amazônia Real, há mais de 12 anos, a gente queria dar mais visibilidade aos povos. Este é o momento de ouvir as lideranças indígenas, de colocar os quilombolas na televisão, nos jornais. É preciso ouvir essas pessoas para entender o que está acontecendo de fato. A COP traz visibilidade, mas ela não é um show ou uma festa: ela é uma reunião muito importante, em que as pessoas estão decidindo não só o clima do Brasil, mas do mundo inteiro. Quando a gente vê a fumaça escura em São Paulo, vinda da Amazônia, esse é o maior alerta que temos. Se nós, que somos comunicadores, não falarmos sobre isso, quem vai falar? A sociedade precisa desse conhecimento.
atitudes
Se não fizermos nada agora, talvez daqui a dez anos não se consiga fazer mais nada. Essa consciência ambiental tem que partir de cada pessoa: com a reciclagem do lixo dentro de casa; com o comportamento frente ao uso de água, porque a água é essencial para a nossa vida; com tantos outros comportamentos. Essa educação ambiental tem que ser feita com as crianças desde cedo, pela escola e pela família. Nós estamos atrasados há quantos anos? Há 500 anos? É preciso uma força-tarefa urgente para que a população adquira consciência ambiental. Isso não é coisa de ambientalista, de jornalista. É a nossa natureza enquanto seres humanos. Se nós não mudarmos as nossas atitudes agora, as próximas gerações vão sofrer muito mais. Nós vamos deixar essa dívida para quem?
redes
Muitas pessoas realmente se informam por meio das redes sociais e, principalmente, por grupos de WhatsApp e Telegram. O problema é que nesses ambientes, muitas vezes, recebe–se desinformação e repassam-se notícias falsas, as fake news. Não só no Brasil, há uma explosão de informações falsas relacionadas ao clima, ao meio ambiente, às questões de gênero e questões raciais. Na Amazônia Real, a maior parte da audiência é jovem, da chamada geração Z, e isso é bom porque mostra que os jovens têm interesse na Amazônia, nos temas que nós publicamos, na questão climática, nas questões relacionadas ao racismo ambiental, nas questões específicas sobre gênero. Um problema persistente são os algoritmos das redes sociais: as grandes plataformas reduziram a distribuição de conteúdo como o nosso, porque assumimos o enfrentamento de falar desses assuntos e de contar a verdade.
Assista a trechos do Depoimento da jornalista Kátia Brasil, realizado no Sesc Pinheiros, em agosto de 2025.
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