
Vinícius Borges, médico infectologista criador do Doutor Maravilha, escreve sobre prevenção e tratamento do HIV e outras IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis). O texto faz parte do projeto Contato – Ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids, que acontece de 25 de novembro a 10 de dezembro de 2025 em unidades do Sesc SP.
Sou médico infectologista há oito anos e criei o Doutor Maravilha em 2015, com a intenção de traduzir a saúde sexual com ciência e leveza. Desde então, tenho vivido uma jornada entre a história do HIV, os avanços da medicina e a vida real das pessoas.
Se hoje falamos em PrEP (Profilaxia pré-exposição) diária ou sob demanda, PrEP injetável, PEP (Profilaxia pós-exposição), Doxi-PEP e antirretrovirais modernos que transformam o HIV em algo controlável, é porque houve uma geração que carregou o fardo mais pesado da epidemia. Nos anos 1980 e 90, milhares morreram em silêncio, muitas vezes abandonados pela família, pelo Estado e pela própria medicina. Quem sobreviveu traz no corpo e na memória as cicatrizes do preconceito e da perda. Foi graças à coragem dessas pessoas que hoje podemos pensar o sexo com menos medo e mais liberdade.
Vivemos na era da informação. Nunca estivemos tão hiperconectados. Temos acesso a testes rápidos, vacinas, tratamentos de alta eficácia e uma multiplicidade de formas de prevenção. E, ainda assim, vejo no consultório algo que os números não mostram: as pessoas nunca estiveram tão carentes de diálogo, de afeto e de sentido no prazer.
A prevenção se transformou em ciência de ponta, mas o afeto ainda tropeça em velhos fantasmas: a sorofobia que insiste em tratar pessoas vivendo com HIV como ameaças, a desigualdade que impede milhões de acessarem tecnologias que deveriam ser universais e o silêncio em torno da sexualidade das minorias (nem tão minorias assim).
Nos anos mais duros da Aids, ser diagnosticado significava preparar-se para a morte. Havia medo, mas havia também resistência. Pessoas trans, gays, negras, trabalhadoras do sexo e ativistas criaram redes de solidariedade, lutaram pelo direito de viver e obrigaram governos a responderem a uma crise que preferiam ignorar. A conquista do SUS como sistema público e gratuito de saúde está diretamente ligada a essa história.
É impossível falar das tecnologias de hoje sem reconhecer esse legado. O comprimido único que garante a supressão viral, o cabotegravir injetável que previne novas infecções, a vacina de hepatite B ou a possibilidade de pegar a PrEP no posto de saúde são frutos da luta de quem morreu cedo demais, mas abriu caminho para tudo isso. Lembrar dessa memória é um ato político. Sem ela, corremos o risco de acreditar que o prazer de hoje é mérito apenas da ciência e não da resistência de corpos marginalizados que se recusaram a desaparecer. Para contextualizar, é importante trazer as definições formais (Ministério da Saúde, 2022):
TARV (Terapia Antirretroviral): tratamento indicado para todas as pessoas vivendo com HIV, que mantém a carga viral indetectável e, portanto, intransmissível (ou seja, indetectável = zero transmissão).
PEP (Profilaxia Pós-Exposição): uso de antirretrovirais por 28 dias após uma situação de risco (sexo desprotegido, violência sexual, acidente ocupacional). Deve ser iniciada em até 72 horas após o evento.
PrEP (Profilaxia Pré-Exposição): uso contínuo de antirretrovirais antes da relação sexual, que reduz em mais de 99% o risco de infecção pelo HIV.
PrEP sob demanda: esquema 2+1+1, com duas doses antes da relação e mais duas depois, eficaz em homens que fazem sexo com homens e mulheres trans sem uso de estradiol, quando o sexo não é frequente, com proteção de até 97%.
PrEP injetável (cabotegravir de longa duração): aplicada a cada 2 meses, dispensa o uso diário de comprimidos e melhora a adesão, com proteção acima de 99%.
DoxiPEP: uso de 200 mg de doxiciclina até 72 horas após o sexo, reduzindo em até 70% a chance de sífilis e clamídia.
Prevenção combinada: estratégia que integra métodos biomé- dicos (PrEP, PEP, preservativos, vacinas), estruturais (políticas públicas de acesso à saúde) e comportamentais (diálogo, redução de danos, negociação de práticas sexuais).
Essas ferramentas mudaram radicalmente o panorama da epidemia. Mas, como costumo dizer, sexo não é só protocolo.
No Brasil, seguimos tratando a educação sexual como ameaça. Em muitas escolas, o silêncio é a regra: adolescentes aprendem biologia, mas não aprendem a nomear o próprio corpo, a negociar o uso de preservativo, a reconhecer situações de violência ou a falar sobre consentimento.
Essa ausência custa caro. Jovens LGBTQIA+, que muitas vezes não encontram referências dentro de casa, ficam mais expostos às IST, à gravidez indesejada e ao abuso. A falta de informação não protege; pelo contrário: condena ao medo, à culpa e à repetição de ciclos de exclusão. São o grupo que mais se infecta com HIV no Brasil: jovens do sexo masculino entre 14 e 24 anos (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024).
No consultório, atendo jovens que chegam com uma IST e se sentem fracassados, envergonhados, como se a infecção fosse punição. É preciso dizer com clareza: tudo faz parte da vida, não diminui ninguém, e saúde não deve ser um espaço de julgamento, mas de acolhimento.
Outra fronteira que ainda não atravessamos é a da sexualidade na velhice. A crença de que o prazer expira aos 60 anos é uma violência silenciosa. Idosos continuam amando, se relacionando, desejando. Mas são tratados como se a intimidade fosse algo indevido. A função sexual não se extingue com o passar dos anos, apenas se modifica.
O resultado é claro: aumento de IST nessa faixa etária (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024), não porque a medicina inventou a pílula azul que mantém um órgão ereto, mas porque nunca oferecemos diálogo honesto sobre prevenção, afeto e cuidado na maturidade.
A invisibilidade da sexualidade do idoso não é neutra: é mais uma forma de negar dignidade. O maior desafio, porém, continua sendo o preconceito contra pessoas vivendo com HIV, que representam mais de 1 milhão de brasileiros (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024). Ainda recebo pacientes que, mesmo com carga viral indetectável há anos, sofrem rejeição, olhares tortos e até a quebra de sigilo em serviços de saúde. Vazamentos recentes de dados em cidades brasileiras expõem não só a falha do sistema, mas a crueldade de uma sociedade que insiste em punir os corpos que mais resistiram.
Quando alguém pega a PrEP no SUS ou toma uma vacina de prevenção, deveria se lembrar: essas conquistas só existem porque uma geração inteira pagou com a própria vida e dignidade. Honrar essas pessoas significa combater a sorofobia.
Ao longo da minha prática, aprendi que atender alguém não é só ajustar esquemas de PrEP ou prescrever antibióticos. É acolher histórias atravessadas por desigualdade, solidão, luto e desejo.
A verdadeira revolução não é apenas técnica, mas humana: transformar a sexualidade em direito humano. Assim como você vai no profissional de saúde para cuidar do coração, do cérebro, por que não cuidar da sua função sexual?
Podemos ser, sim, a primeira geração que vive seu prazer sem medo. Mas só seremos, de fato, se além de medicalizar o sexo, também humanizarmos nossas relações. No fim, a pergunta que fica: como se transa na era da informação?
Entre protocolos e diretrizes, talvez a resposta seja simples: com muita proteção. Mas também com afeto, dignidade e diálogo.
Nos encontros – de alma e de corpos.
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