
Roseli Tardelli, jornalista e fundadora da Agência de Notícias da Aids, escreve sobre sua trajetória junto ao irmão Sérgio. O texto faz parte do projeto Contato – Ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids, que acontece de 25 de novembro a 10 de dezembro de 2025 em unidades do Sesc SP.
Início de janeiro de 1989. Aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo. A Espanha me esperava. Era a primeira vez que eu saía do Brasil, rumo à Europa. Jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, já trabalhando na Rádio Eldorado e, no jornal O Estado de S.Paulo, como repórter da editoria de política, concorri e ganhei uma bolsa de estudos concedida pelo Programa de Graduados para os Latino-Americanos (PGLA), que levava jornalistas da América Latina para estudar na Universidade de Navarra.
Nos despedimos no aeroporto. Lembro que abracei meu irmão Sérgio e disse a ele: “Cuide de nossos pais e cuidado também com essa doença nova que está chegando no Brasil, cuidado com a Aids”. Naquele momento, eu não tinha ideia do que a vida e o destino nos reservavam e de tudo o que aconteceria depois, por conta “dessa tal de aids”, a doença que corrói o sistema imunológico de uma pessoa infectada pelo vírus HIV, se ela não estiver em tratamento com os antirretrovirais. Atualmente, eles existem. Naquela época, porém, essa combinação de medicamentos que segura a replicação do vírus no organismo ainda não havia sido descoberta.
Depois de passar um tempo estudando, viajei muito, conheci e absorvi costumes e culturas na Europa. De volta ao Brasil e ao batente, me tornei âncora, apresentadora na Rádio Eldorado. Apresentei Jornal Eldorado e O Espaço Informal. Depois, recebi o convite para trabalhar na TV Cultura. Vieram o Em Português nos Entendemos, “Opinião Nacional” e fui a primeira mulher a apresentar o Roda Viva”. Carreira caminhando muito bem, obrigada! Nesse meio tempo, veio a notícia que o Sérgio havia se infectado com o HIV.
Primeira década, a da tragédia: sem medicamentos, sem saber o que fazer, sem muita informação, sem saída, sem atendimento pelos convênios médicos e seguros-saúde. Receber um diagnóstico HIV positivo era praticamente uma sentença de morte. Questão de tempo. Assim foi. Na primeira internação, no Hospital Nove de Julho em São Paulo, final de 1993, Sergio começando a adoecer, a representante do convênio entra no quarto. Sem nenhuma cerimônia explica: “O convênio não atende esse tipo de doença”. Meu irmão me olhou e perguntou: “E agora”?
Eu já havia me informado sobre as questões e possibilidades jurídicas. Desci, fiz um cheque caução. Acionamos a Justiça. A partir daquele momento, tudo começou a mudar e nunca mais a pauta e o tema HIV e Aids deixariam de fazer parte da nossa história.
Tornamos a nossa dor pública. Denunciamos. Realizamos manifestações. A mídia entendeu a relevância de trazer o assunto para as manchetes. Se o nosso SUS atendia as pessoas que haviam se infectado, por que os convênios médicos e seguros saúde se negavam a isso? Ganância, preconceito. Se a gente se encolhe, particularmente ele, o preconceito, ganha corpo e força. Fizemos o contrário. Meu irmão passou a dar entrevistas, denunciar o descaso dos convênios. Muitos amigos e integrantes da família souberam que o Sérgio havia se infectado ao ler o jornal ou ao assistir a alguma reportagem na TV. Na primeira audiência, Sérgio passa mal na frente do juiz. Parecia ter sido a primeira vez que ele se deparava com uma pessoa que havia contraído o HIV tal foi o seu espanto. A urgência e delicadeza da situação fez com que o juiz nos desse ganho de causa em primeira instância.
Cada vez mais meu irmão se debilitava. Por conta do citomegalovírus Sérgio ficou sem enxergar. No dia em que entrei no quarto e disse que ele havia ganhado, na primeira instância, o direito de ser atendido, na ação contra a convênio – então uma das mais importantes seguradoras de saúde do Brasil – ele respondeu algo marcante. Muito magro, já meio confuso, andando pouco, e com ajuda, falou: “Legal, e os outros”?
Sérgio morreu em novembro de 1994. (Década da tragédia, lembra?). Quando a pessoa deixa de existir fisicamente entre nós, fica um vazio que só quem já perdeu alguém muito amado e importante em sua biografia afetiva sabe do que estou falando. O Sérgio foi uma pessoa gentil, ponderada, elegante, inteligente e afável. Culto, havia lido grande parte das obras clássicas. Gostava de música, estudou piano. Fomos amigos e muito unidos. Parceiros mesmo de jornada, sabe?
Em 1995, o Sesc São Paulo criou o projeto Contato. Um funcionário da instituição teve a ideia de trazer o assunto para o público através da arte. Artistas plásticos foram convidados a criar obras sobre o tema HIV/aids. Quebrar o silêncio, expor, falar, mostrar. Tomie Ohtake, Aldemir Martins, Adélia Toledo, Maria Bonomi, Emanoel Araújo, Siron Franco, Ivald Granato, Silvio Dworecki e vários outros responderam ao chamado.
Até então, nenhuma instituição do porte do Sesc São Paulo havia aberto suas portas para falar sobre o assunto. As obras produzidas em quadros foram transformadas em outdoors e ganharam as ruas. Também foram expostas em cidades do interior de São Paulo. Com o projeto Contato fomos para Araraquara, Ribeirão Preto, Rio Claro, Campinas, São José do Rio Preto, várias cidades com shows e apresentações artísticas.
Algumas obras causaram polêmica. O que foi bem importante para iniciarmos uma conversa franca sobre a prevenção e a importância do uso de preservativo. Passávamos um abaixo-assinado solicitando a inclusão de doenças pré-existentes no atendimento dos convênios médicos e seguros saúde. Meus pais, já idosos, chegaram a ir em algumas dessas ações. Com o Sesc São Paulo e Parceiros de Vida Contra Aids, ONG que criei, fomos construindo uma relação de parceria, carinho, profissionalismo, confiança, acolhimento e respeito tendo a arte como instrumento para fomentar conversas e trazer o assunto para a vida das pessoas. Falarmos sobre acolhimento, inclusão e prevenção, o quanto podemos ser vulneráveis a um vírus que, quatro décadas depois de seu surgimento, ainda infecta 1,3 milhão de pessoas anualmente, segundo o UNAIDS, Programa Conjunto das Nações Unidas que coordena a resposta global contra a pandemia.
Em 1998, fui curadora de um projeto organizado pela Revista Imprensa, o I Fórum Aids Imprensa & Cidadania. Durante dois dias, pela primeira vez no Brasil, médicos, gestores, ativistas, jornalistas e pessoas vivendo com o HIV se reuniram para conversar sobre o tema. José Serra era Ministro da Saúde, Dr. Pedro Chequer, diretor do Programa de DST/Aids do Brasil. Nosso querido e saudoso Danilo Miranda presidiu a abertura e as obras do Contato foram exibidas em Brasília. Assim fomos aprofundando nossa parceria.
Um tempo depois, em 2003, fundei a Agência de Notícias da Aids, um portal noticioso que produz informações diárias sobre o assunto. De lá para cá, a maioria das nossas ações envolvendo a arte como caminho para falar sobre prevenção foram apoiadas pela Fecomércio, particularmente pelo Sesc e o Senac de São Paulo. As duas entidades foram pioneiras em escancarar suas portas para quebrar o silêncio sobre o HIV e a Aids. Assim, produzimos Depois Daquela Viagem, que o dramaturgo e jornalista Dib Carneiro transformou em espetáculo teatral, baseado no livro consagrado da escritora e ativista Valéria Polizzi, infectada pelo vírus ainda adolescente em sua primeira relação sexual. Com a sensibilidade e competência da diretora Abigail Wimer, preparação de elenco de Sílen Clair e um time de primeiríssima qualidade de jovens atores, estreamos no Teatro Anchieta no Sesc Consolação. Casa cheia, muitos jovens assistindo ao espetáculo receberam preservativos, perceberam sua vulnerabilidade. A informação chegando com emoção e propriedade antes que o HIV se instalasse.
É disso que se trata, naquela época como ainda hoje: levar a informação até os jovens, até as populações vulneráveis, antes que o HIV chegue e roube a cena.
Passamos a produzir documentários e webséries nacionais e internacionais: HIV, Aids: as respostas das ONGs do Mundo, Youtubers e HIV, HIV 40 anos: Aids e suas histórias (exibida pela Globoplay), Transmissão Vertical, um assunto proibido. A parceria com o Sesc São Paulo nos facultou lançar as produções no Cinesesc e licenciá-las para o SescTV. Passamos a coproduzir conteúdo com o SescTV e recentemente lançamos Global Village 20 anos, um panorama internacional sobre a atuação de ONGs do mundo inteiro, com depoimentos colhidos durante a Conferência realizada em Munique, na Alemanha em 2024. Temos mais projetos em mente, para seguir com o trabalho e a parceria.
Desde 1981, o HIV infectou 82 milhões de pessoas, com 42,3 milhões de mortes. Existem atualmente 39,9 milhões vivendo com o vírus, 1,3 milhão se infectam a cada ano. Século XXI é um outro momento: temos medicamentos, temos testagem rápida, temos as profilaxias pré e pós-exposição, PREP e PEP, disponíveis no SUS, que impedem a entrada do vírus na corrente sanguínea. A ciência comprovou: uma pessoa que se infectou com HIV em tratamento contínuo por seis meses zera a carga viral em sua corrente sanguínea e não passa mais o vírus em relações sexuais sem o uso de preservativos, o conceito de que I = 0. Em breve, teremos medicações injetáveis de longa duração que, aplicadas a cada dois meses e de seis em seis meses, quebrarão a cadeia de transmissão do HIV. Quer coisa mais importante do que isso?
Utilizando esses medicamentos injetáveis, quando forem disponibilizados, será possível quebrar a cadeia de transmissão do HIV! Mas se o jogo da prevenção mudou, o enfrentamento do preconceito e da discriminação ainda exige muita informação e consciência para mudar.
Precisamos não silenciar sobre esse tema e pauta. Nesse contexto, ações fomentadas por uma instituição da relevância do Sesc São Paulo são muito bem-vindas. Em projetos como o Contato, jovens artistas ressignificam paradigmas e barreiras onde antes a desinformação e a ignorância alimentavam novas infecções.
Para finalizar quero dizer a vocês que aquilo tudo que vivenciamos lá atrás, deu nisso. Nossa “Filadelfia Tupiniquim” tem contribuído para que muita gente que vive com o danado do HIV não se sinta mais rejeitada, não tenha vergonha e medo.
Quero dizer a vocês que, cotidianamente, com o apoio da Fecomércio, Sesc e Senac de São Paulo, mantemos nosso trabalho, nossa independência editorial, nossa missão de, através do advocacy em comunicação, tentar contribuir para que menos pessoas se infectem e para o acolhimento das que vivem com o vírus.
Quero dizer a vocês que tenho uma profunda gratidão pelo empresário Abram Szajman, presidente da Fecomércio, pelo Ivo Dall’Ácqua Júnior, presidente executivo da Fecomércio, pelo economista e educador em saúde pública Luiz Deoclécio Massaro Galina, diretor regional do Sesc de São Paulo. Uma profunda gratidão por todo o grupo de colaboradores do Sesc São Paulo que em seu cotidiano, nas ações e fomento a arte, cultura e educação nos ajuda a responder à pergunta que meu irmão me fez, em 1994: “E os outros?”.
Os outros estão sendo acolhidos. Os outros têm remédios disponíveis no SUS. Os outros estão sendo atendidos pelos convênios médicos e seguros-saúde. Os outros estão também ressignificando suas histórias e vidas com o aprendizado que temos tido esse tempo todo. O HIV continua por aí. Mas temos gente do bem e com compromisso pelo bem-estar humano. Temos a esquadra de amor e respeito, de resistência, acolhimento e solidariedade representada pelos responsáveis dos trabalhos das unidades e direção do Sesc São Paulo que escrevem e produzem novos e melhores capítulos no enfrentamento do HIV, do preconceito, do estigma e da discriminação que ele simboliza no mundo. Temos o “Contato” e a arte como um lúdico instrumento de prevenção e toque sutil de respeito à vida e o tudo de bonito que ela representa, que ela é, e o que significa para todos nós.
>>>> Acesse abaixo o livreto do projeto Contato, que traz textos de Leandro Noronha da Fonseca, Pisci Bruja, Priscila Obaci, Ronaldo Serruya e Roseli Tardelli e Vinícius Borges. Conheça a programação do projeto em sescsp.org.br/contato
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