A presença feminina nos festivais brasileiros de 2016 a 2018

05/07/2019

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No segundo semestre de 2018 Beyoncé foi a primeira afro-americana a ter destaque na programação do famoso festival estadunidense, Coachella. Ela teria feito ainda mais história no ano anterior, quando recebeu o convite pela primeira vez, mas devido à sua gestação o bastão foi passado para Lady Gaga, que foi a primeira mulher em dez anos a ocupar uma posição de destaque no cartaz e na programação do festival.

O Coachella é um festival grandioso com um enorme apelo midiático, tanto dentro quanto fora dos EUA. Portanto, para muitos, chega a ser difícil imaginar que um evento desse porte não tenha colocado mulheres como headliners por dez anos. Em 2007, Björk ocupou essa posição, tendo sido, em 2002, a primeira artista solo feminina a liderar o evento.

Entretanto, essa desatenção em relação às artistas do momento não se restringe ao Coachella somente. Basta passarmos o olho de maneira mais clínica em centenas de cartazes de programação ao redor do mundo para notarmos a tímida, ou quase nula, presença feminina dentro desses lugares.

É importante ressaltar e contextualizar que a dinâmica com que o mercado musical opera ainda hoje é um reflexo fiel da nossa sociedade patriarcal, que, ao longo de centenas de anos, ignorou as mulheres nos espaços que se acreditava serem de exclusividade masculina. Do ponto de vista histórico da música, essa premissa também não se altera.

Em 2018, o site Pitchfork analisou profundamente 20 grandes festivais nos EUA para verificar a participação feminina nos line-ups, comparando os anos de 2017 e 2018. Entre todos os dados obtidos pela equipe, foi possível perceber que, dentro daqueles festivais, a presença feminina passou de 14% para 19%. Esse ainda é um número tímido e que, segundo o site, deve ser olhado com mais cuidado e atenção.

Na América Latina, a produtora e plataforma de conteúdo chilena Ruidosa criou um estudo muito semelhante ao realizado pela Pitchfork. Porém, o recorte foi feito para quatro países: Chile, Argentina, México e Colômbia. Foram analisadas as programações de 66 festivais entre os anos de 2016 e 2018. Por lá, o crescimento também ocorreu, mas o objetivo 50/50 ainda é distante.

Hoje, o estudo da Ruidosa está em tramitação no congresso argentino, sendo usado como base para a Ley de Cupo Femenino en Eventos Musicales. A legislação foi criada para assegurar uma cota de 30% de participação feminina em festivais e eventos de música ao vivo na Argentina.

Beychella: Beyoncé como headliner do festival Coachella em 2018 | Foto: TMZ

As mulheres nos festivais

Em 2018, o site Pitchfork analisou de maneira bem profunda 20 grandes festivais dentro dos EUA para verificar a participação feminina nos lineups comparando os anos de 2017 e 2018. Dentre todos os dados obtidos por eles, foi possível perceber, dentro daqueles festivais, que a presença feminina passou de 14% para 19%. Um número bem tímido ainda e que, segundo o site, deve ser olhado com mais cuidado e atenção.

Na América Latina, a produtora e plataforma de conteúdo argentina Ruidosa criou um estudo muito semelhante ao realizado pela Pitchfork. Porém, o recorte foi feito para quatro países (Chile, Argentina, México e Colômbia). Foram analisadas as programações de 66 festivais entre os anos de 2016 e 2018. Por lá, o crescimento aconteceu também, mas o 50/50 ainda é distante.

Hoje, o estudo da Ruidosa está dentro do congresso argentino, sendo usado como base para a Lei Mercedes Sosa. Uma medida criada para assegurar uma cota de 30% de participação feminina em festivais e eventos de música ao vivo na Argentina.

Layla Leonel Arruda (Feminine Hi-Fi) no Festival Coala 2018 | Foto: Helena Yoshioka/I Hate Flash

No Brasil

Por aqui, foram considerados festivais multigêneros, ou seja, que contemplassem mais de um gênero musical e que tivessem apelo de público e de mídia. Os dados a seguir têm o objetivo de auxiliar na reflexão sobre a presença feminina em festivais brasileiros. Para isso, foram analisadas 2.284 atos musicais presentes nas programações de 84 festivais entre os anos de 2016 e 2018.

Observando de forma ampla, é possível notar que, ao longo desses três anos, a participação de mulheres (considerando solistas e bandas compostas somente por mulheres) não ultrapassa a margem de 20,3% em cada um dos anos: 11% em 2016, 15,4% em 2017 e 20,3% em 2018. Ainda que isso demonstre um crescimento, quando analisamos os festivais de forma isolada, alguns continuam em 0%.

Os números mostram também que, quanto maior a tendência do festival de dar ênfase a um único gênero musical, menor é a presença feminina, chegando a ser nula. Por exemplo, em festivais mais voltados para o rock e suas vertentes.

Podemos notar que o festival Abril Pro Rock, pioneiro na região nordeste, no que diz respeito à valorização da produção musical independente, no ano passado não teve nenhuma mulher solista e nos últimos três anos não teve nenhuma representante feminina em sua programação como atração principal. O mesmo ocorre com o festival Goiania Noise e Porão do Rock. O que os três possuem em comum é o fato de terem surgido pautados em um gênero musical, ainda que atualmente abarquem outras sonoridades em suas programações.

O Favela Sounds foi o festival analisado com a maior representatividade feminina. Nesse caso, vale destacar que o Favela Sounds deu ênfase a artistas negras.

Nenhum dos festivaisanalisados que aconteceram em 2018 alcançou a equidade de gênero 50/50. Foi possível obervar também que, apesar de alguns números otimistas de avanços, as bandas compostas exclusivamente por mulheres não passam dos 3%, e mulheres como atrações principais e destaques nas comunicações visuais também são bem raras.

Xênia França no Vento Festival | Foto: Divulgação/Facebook — Vento Festival

Estamos apenas no início

Importante destacar o festival CoMa (DF) onde houve um crescimento significativo ao longo das edições analisadas, principalmente na inserção de artistas renomadas de diferentes escalas do mercado como atração principal de algumas de suas noites.

Semelhante às edições do Chile e da Argentina, a versão brasileira do festival Lollapalooza teve, ao longo desses três anos, um crescimento significativo na participação feminina, ainda que esses números não contemplem tantas artistas brasileiras.

Em 2016, a cantora e compositora Karol Conká foi a única artista brasileira solista dentro da programação do festival. No ano seguinte, foi a vez de Céu e, finalmente, em 2018, pudemos ver pelo menos quatro destaques: Jesuton, Mallu Magalhães, Tiê e Mahmundi. Vale ressaltar que nenhuma dessas artistas foi destaque como headliner do festival.

Nos festivais nacionais, também tivemos casos graves de falta de representatividade. Em 2017, a cantora e compositora Pitty foi a única mulher dentro de toda a programação do festival João Rock (SP).

Em 2017 Pitty foi a única mulher dentro de toda a programação do festival João Rock (SP) | Foto: Igor do Vale/G1

Problema estrutural?

É importante entender que a carência de representatividade feminina nesses eventos surge da estrutura do mercado musical, que historicamente sempre foi operado majoritariamente por homens.

Por isso, iniciativas que visam ampliar a representatividade feminina nesse mercado são cada vez mais necessárias e essenciais, seja no campo da educação musical ou no incentivo para que essas artistas ocupem os palcos.

Negar o espaço da mulher dentro do ambiente artístico, criativo e técnico a mantém na invisibilidadeuma realidade histórica, mas totalmente reversível.

*Metodologia

Este estudo foi inspirado na mesma linha analítica e metodológica da Ruidosa, realizada no ano passado em quatro países da América Latina.

Foram selecionados 84 festivais de diferentes portes e públicos, com prioridade para festivais multigênero. Foi feito o possível para analisar sempre os mesmos festivais, porém, alguns não foram realizados em determinados anos.

Os lineups foram retirados das redes sociais oficiais dos festivais e também de informes de imprensa. Os 2.284 atos musicias fora categorizados em: mulheres solistas ou bandas compostas somente por mulheres; homens solistas ou bandas compostas somente por homens; e bandas mistas (onde havia pelo menos uma mulher na formação). Com estes dados, foram calculadas as porcentagens de participação feminina por festival, categoria e ano. Foram considerados todos os horários dos festivais, e não somente os principais palcos ou horários de destaque. Dentro deste estudo, foram contabilizados somente artistas da música; outras linguagens artísticas não foram consideradas.

As classificações de gênero foram feitas com base em como cada artista se identifica e se apresenta em suas redes oficiais. Ainda que este recurso não seja um critério absoluto para essa determinação, foi feito o possível para respeitar ao máximo as identidades de gênero. Importante ressaltar que mulheres trans são mulheres.Não foram considerados grupos artísticos identificados como bloco, maracatu, coco ou qualquer outro cuja identificação dos integrantes não tenha sido possível por meio de sites, redes sociais etc.

Lista dos festivais

2016 – 25 festivais: Abril Pro Rock (PE), CarnaUOL São Paulo (SP), Coala (SP), Favela Sounds (DF), Festival BR 135 (MA), Festival de Verão de Salvador (BA), Festival DoSol (RN), Festival Sensacional (MG), Goiânia Noise (GO), Jaguariúna Rodeo Festival (SP), João Rock (SP), Lollapalooza Brasil (SP), Mada (RN), Morrostock (RS), No Ar Coquetel Molotov (PE), Planeta Atlântida (RS), Popload Festival (SP), Porão do Rock (DF), Psicodália (RS), Rec-Beat Festival (PE), Sarará (MG), Se Rasgum (PA), Sons da Rua (SP), Timbre (MG), Vaca Amarela (GO).

2017 – 27 festivais: Abril Pro Rock (PE), CarnaUOL São Paulo (SP), Coala (SP), CoMA (DF), Coolritiba (PR), Favela Sounds (DF), Festival BR 135 (MA), Festival de Verão de Salvador (BA), Festival DoSol (RN), Festival Sensacional (MG), Goiânia Noise (GO), Jaguariúna Rodeo Festival (SP), João Rock (SP), Lollapalooza Brasil (SP), Mada (RN), Morrostock (RS), No Ar Coquetel Molotov (PE), Planeta Atlântida (RS), Popload Festival (SP), Porão do Rock (DF), Psicodália (RS), Rec-Beat Festival (PE), Rock in Rio (RJ), Se Rasgum (PA), Sons da Rua (SP), Timbre (MG), Vaca Amarela (GO).

2018 – 32 festivais: Abril Pro Rock (PE), CarnaUOL São Paulo (SP), Coala (SP), CoMA (DF), Coolritiba (PR), Favela Sounds (DF), Festival BR 135 (MA), Festival de Verão de Salvador (BA), Festival DoSol (RN), Festival Sensacional + Sarará* (MG), Festival Suíça Bahiana (BA), Goiânia Noise (GO), Jaguariúna Rodeo Festival (SP), João Rock (SP), Lollapalooza Brasil (SP), Mada (RN), Morrostock (RS), No Ar Coquetel Molotov (PE), Nômade Festival (SP), Planeta Atlântida (RS), Popload Festival (SP), Porão do Rock (DF), Psica (PA), Psicodália (RS), Queremos! Festival (RJ), Rec-Beat Festival (PE), Rock the Mountain (RJ), Se Rasgum (PA), Sons da Rua (SP), STL Festival (MG), Timbre (MG), Vaca Amarela (GO). *Os festivais Sensacional e Sarará se uniram em uma edição única.


Texto atualizado às 16h40 de 03.abr.2025 para correções gramaticais e de concordância em todo o texto. Além disso, foram feitas as seguintes alterações:

  • Dados e gráficos revisados e atualizados para respeitar a continuidade da pesquisa nos novos relatórios.
  • Correção sobre a última apresentação de Björk no Coachella: a artista se apresentou em 2007, e não em 1997 como mencionado anteriormente. Foi incluída a informação de que sua primeira participação no festival ocorreu em 2002.
  • Correção da nacionalidade da plataforma Ruidosa, que é chilena, e não argentina, como citado anteriormente.
  • Retirada da informação de que Anitta foi a única mulher na programação do Planeta Atlântida em 2017, pois Ludmilla também estava no line-up, embora anunciada como feat do cantor Jeremih.
  • Informações sobre os festivais Cena Cerrado, Vento Festival, Bananada e Festival de Inverno de Garanhuns foram removidas, pois esses eventos não são mais objetos de pesquisa do estudo.

Revisão e atualização da lista de festivais analisados, garantindo precisão nos dados.

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