A potencia e a leveza complexa de Dandara Manoela 

06/12/2022

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Dandara Manoela, conhece? Ela, que se apresenta no Sesc Campo Limpo no dia 09 de dezembro, às 20 horas, um dia após subir ao palco do Sesc Pompeia no projeto Prata da Casa, quer mais é conhecer gente nova por esse Brasil, cantar, ser ouvida e correspondida pelo público. 

Cantora desde os sete anos de vida, foi na cidade de Campinas – SP, onde cresceu com a avó e a tia, que teve o desejo de mergulhar no mundo da música, ao assistir ao filme Mudança de Hábito 2, em uma Sessão da Tarde. 

Em 2018, a compositora lançou Retrato Falado, seu primeiro trabalho autoral, ganhando o Prêmio da Música Catarinense como melhor álbum daquele ano. No show atual, Minha Prece Ecoa, entram algumas novidades no repertório e na abordagem das canções, sendo como ela mesma define, um show de celebração, pelo momento em que está, graças aos voos alçados até aqui. Então, bora conhecer um pouco mais das ideias e da história de vida dela? Boa leitura! 

Qual foi o primeiro contato que teve com a música em sua vida? 

Fui criada na igreja [Adventista da Promessa] e me lembro que com sete anos de idade estava assistindo na Sessão da Tarde o filme Mudança de Hábito 2, que tem a Whoopi Goldberg como protagonista. Naquele momento, vendo aquela protagonista enquanto mulher negra, e também os jovens, decidi que queria ser cantora. Como eu era da igreja, tinha espaço para isso: sempre acabava cantando com a criançada. Em seguida, acabei entrando para os grupos mais fixos: coral primeiro, que só tinha adultos. Insisti para entrar, e quando entrei, já comecei a solar, e me destaquei. Adolescente, comecei a me interessar por outros gêneros musicais: como fui criada com a minha avó, ou quando ia visitar minha mãe, ouvia muito samba e músicas que pulsaram muito no coração, então comecei a cantar outras coisas.  

Desde quando você começou a cantar, profissionalmente ou não, quais foram as pessoas que mais te apoiaram? 

Tive bastante apoio da minha família, e como foi uma coisa desde pequena, as pessoas viram que eu estava levando aquilo a sério. Percebo hoje que a minha família sempre acreditou. Profissionalmente, é no momento em que eu chego em Florianópolis [SC]: vim para fazer faculdade [de Serviço Social, na Universidade Federal de Santa Cantarina, UFSC, em 2014]. Entendo que aqui, uma chave mudou: me tornei compositora e fui abraçada por artistas locais muito competentes. Nascia uma artista autônoma, independente e com uma identidade. Gosto muito de citar o François Muleka. Ele já tinha uma bagagem enquanto artista independente, e também a Tatiana Cobbett. Gosto de brincar que são meus dois padrinhos aqui [em Florianópolis].  

Em que momento da sua vida, você sentiu que o seu caminho como profissional, seria na música?  

O curso de Serviço Social e estar na universidade pública, me fez compositora. Comecei a estar de cara com algumas contradições da vida e entender a minha própria trajetória enquanto mulher preta, periférica, lésbica de uma forma mais crítica. Nesse momento, vi a importância de falar por mim, de colocar meu próprio texto, meu próprio discurso, minha própria opinião em música, até então, me considerava apenas intérprete.  

Foto: Bolivar Alencastro

Como foi para você, fazer o curso de Serviço Social estando inserida no contexto da cidade de Florianópolis? 

 
Tem a questão racial no Sul do Brasil, que acontece de forma mais escrachada, vários atravessamentos de um conservadorismo mais latente. Então, eu às vezes fico bastante incrédula de como me senti abraçada enquanto artista nesse lugar. Mas também, a universidade é um espaço que tem encontros de todo um Brasil, quando a gente fala de uma universidade pública, vem gente de muitos lugares diferentes e sempre acredito que isso transforma um lugar. Por isso, hoje me intitulo como: Dandara, cantora e compositora de Florianópolis. Porque enquanto compositora nasci aqui, fui abraçada aqui e vejo a potência musical e transformadora do próprio ambiente que a gente faz. Quando encho casas de shows e teatros, tem uma transformação local acontecendo, politicamente, geograficamente. Acho muito interessante esses nossos deslocamentos, porque se não acontecer, esse lugar enrijece e não se transforma. 

O que significa compor e como você se enxerga como compositora? 

Para mim, as músicas são como fotografias, um registro, e vejo potência no fato de a gente poder eternizar um retrato daquele momento. Têm músicas hoje do Retrato Falado por exemplo, e eu gosto desse nome por conta disso, que eu já não canto mais, porque não comunicam tanto comigo, com artista de agora. Mas aquilo vai ser para sempre. Tem músicas que canto com outra perspectiva, que já não é mais a mesma vibe de quando as criei. É uma fotografia flexível que consigo ir mudando, sem contar que ela vai tendo significados diferentes para cada pessoa que escuta, acho isso de uma potência absurda! 

11 de maio de 2018 foi a data em que você atingiu a meta do financiamento coletivo para lançar o álbum Retrato Falado. Como você se sentiu nesse dia especificamente? 

 
Me senti abraçada e pertencida, me senti amada. Naquele momento, para além de um trabalho profissional, o meu primeiro disco se tratava de um sonho de criança. Quando entendi os custos, e até que foi barato [R$ 28.480 alcançados via site Catarse, com o apoio de 360 pessoas] se a gente for pensar em outros polos, principalmente São Paulo. Foi um projeto que consegui fazer com pouco recurso, mas é um dinheiro que eu não teria de outra forma. Quando vejo que tenho uma rede de apoio que me abraçou, isso me deu a potência de que agora nada vai me parar. 

Inclusive, no texto em que você publicou descrevendo as ideias e pedindo ajuda para o financiamento coletivo, você cita que se sente feliz em cantar, ouvir e ser ouvida pelas pessoas. Como é isso de cantar e saber que pessoas te escutam e você é correspondida? 

Até hoje isso é muito vivo dentro de mim. Por ser uma cantora independente e autoral que nunca teve grandes apoios de fora, quando vejo que um trabalho como o meu consegue alcançar, depois de lançado de forma independente, mais de um milhão de ‘plays’ nas plataformas digitais e foi parar em grandes redes nacionais sem um esforço [financeiro de divulgação] investido, vejo que estou sendo ouvida e que mesmo sem todas essas outras forças, isso aconteça organicamente. Cheguei em outros países lotando casas e com as pessoas cantando minhas músicas. Tenho já um número considerável de seguidores no Instagram, mas não são tantos [pouco mais de 20 mil pessoas] só que eu sinto que aquelas pessoas, elas estão comigo de verdade, minha rede de fãs realmente acredita, sabe? Não estão ali a passeio. 

Na canção Minha Prece, presente no álbum Retrato Falado, você fala que é ‘Preciso ser forte para ser’. Então, o seu desejo hoje é conseguir ter força para ser o que? O que te motiva? 

Fico refletindo muito sobre a força. Tanto antes de compor a música quanto depois. É cobrado do povo preto e da mulher negra, uma certa força, para gente aguentar as desigualdades: ‘Ah, então, a mulher preta é forte’. Muitas pessoas pretas estão exaustas desse fardo. O contrário de ser forte é ser fraco, e isso eu não aceito nessa vida, esse lugar não vão nos colocar. Quando vejo que a sociedade desigual nos coloca em certos lugares, com todas as contradições, como o racismo, a fome, o genocídio da população negra, na verdade é para que sejamos fracos, e esse lugar eu não aceito. Para mim, ser forte é ter saúde emocional, ser forte para mim é poder celebrar minha existência, ser forte é ter paz, estar com os meus. Então, ‘É preciso ser forte para ser’, é um estado de espírito para eu conseguir usufruir com liberdade desse movimento que estou correndo atrás, então, é preciso ser forte para ir a qualquer lugar. Não quero permitir ser fraca, nem eu e nem quem está comigo.  

Foto: Bolivar Alencastro

Curioso você mencionar sobre a força, porque na canção que dá nome ao álbum Retrato Falado, você retrata a história de sua avó…Como foi compor isso?  

Minha avó [Fátima] que mora em Campinas, veio me visitar aqui em Florianópolis. A gente foi na universidade, e ela toda feliz, ficava brincando com todo mundo que aparecia: ‘entrei na universidade, entrei na universidade!’. O sentido que ela estava falando, era o fato de estar naquele território simplesmente [risos], e achei engraçado como ela brincava com isso. Sempre fui criada entendendo que a gente tinha muito segredo [Racismo Estrutural vivido pela bisavó, avó e mãe de Dandara, chegando até a compositora, que são questões abordadas na canção citada] coisas difíceis de serem faladas, que ninguém tocava. Nesse dia ela contou tudo, e para mim foi um sentimento de libertação. Falando enquanto mulher preta: tentam apagar a nossa história, a gente não sabe do passado. Quando a gente não sabe do passado, é muito difícil a gente saber para onde a gente vai, é como se fossem encerramentos. Por mais dura que fosse essa história, me senti curada, de certa forma. Comecei a entender o curso da minha própria história, da minha vida, olhar com outros olhos minha avó, minha mãe, eu mesma. Aquilo foi um encaixe. E aí eu trouxe isso em [forma de] música, porque é o meu lugar mais confortável. E para mim é uma provocação social, entender que é uma história particular, mas em outras narrativas isso se repete muito. A gente está falando de um racismo estrutural e de várias questões complexas que a gente tem nessa nossa sociedade. 

Sua avó Fátima ouviu a música? 

Ela ouviu e se emociona muito! Sinto que minha avó tem sede de ser ouvida também, assim como as mulheres pretas, assim como as mulheres, assim como todas as pessoas que não estão no centro dessa sociedade, que estão à margem. Quando eu trago essa música, eu vejo que ela também se sente abraçada, porque é isso: ela está sendo ouvida de certa forma. É outra boca falando, mas é a nossa linhagem. Vejo que para ela foi um lugar de libertação, de não ter mais que conviver com tudo aquilo como se fosse a culpada, ou com julgamentos sem que soubessem de fato tudo o que aconteceu, para ela foi um movimento muito potente, como para minha mãe também. Inclusive, no meu Trabalho de Conclusão de Curso de Serviço Social [Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre o singular e o universal], trouxe essa música e as mulheres negras entre o singular e o universal: cada trecho da música e as questões sociais abordadas em cada etapa. 

Suas canções tratam de temas complexos, misturadas com uma leveza do cotidiano. Em que medida é um desafio para você fazer as coisas desse jeito simples e direto? 

Nesse primeiro disco principalmente, fazer o simples significa me levar por inteira, então, é um disco que me desnuda. É um simples complexo pra caramba porque a gente se expor é difícil: esse receio do julgamento, o que as pessoas vão achar. O desafio complexo desse simples é que sou eu inteira, e ao mesmo tempo, é potência. Estar nesse lugar da verdade, de ser transparente, da simplicidade, porque chega nas pessoas. O que é simples é o que comunica! Gosto muito do acessível, apesar de também amar o complexo, ser fã louca do Djavan, escuto todo dia, amo! Mas, nesse momento, porque eu acho que a gente está em constante transformação, esse desejo de ser ouvida, passa por uma simplicidade. Me expor, passa por esse desejo de ser ouvida, não vou ficar floreando isso. Tô aqui e quero ser ouvida, bora! 

 Entre canções do Retrato Falado (2018) e outros singles, como está construído o repertório do seu show hoje? 

Esse show [Minha Prece Ecoa] eu entendo como uma transição. Me representa nesse momento em que estou realmente produzindo e me organizando para lançar um novo trabalho. Tem algumas músicas do Retrato Falado, outras saíram, e também traz meus novos singles [Meu Canto, de 2019, Raiz Forte e Pretas Yabás, ambos de 2020] que eu lancei nesse meio tempo. É um show que tem uma outra narrativa: Retrato Falado era um show de denúncias, e esse é um show celebrativo, e também honrar todos os caminhos que Retrato Falado me abriu.  

Foto: Bolivar Alencastro

Você tem conseguido espaço, shows e divulgar seu trabalho. Tudo o que você sonhava enquanto artista já se realizou?  

Entendo que o que falta para que talvez algum sonho se realize, é uma questão mais estrutural, porque sinto que tudo o que eu fiz na força, na garra, já me trouxe resultado: entender o meu lugar no mundo e a que vim. Já é uma realização, me sinto contemplada, preenchida. Mas a gente não se alimenta disso, né? Alimenta a alma, mas a barriga não [risos]. Quando eu olho para minha família, minha avó que eu falei, para minha tia, que é empregada doméstica e me criou e também está nesse disco, com a música De Casa, para os meus irmãos que quero que tenham trajetórias diferentes, pensando que eu vim de uma família de periferia, quero estruturalmente uma narrativa diferente para a nossa vida, para os meus filhos. Sei que estou fazendo um trabalho que tem potencial para isso.  

Qual é o momento em que você se sente mais feliz e livre?  

Cantar! Muito clichê, muito óbvio, mas é cantar, sem dúvidas. Nina Simone tem um trecho de uma entrevista que me toca muito, em que ela fala: ‘Liberdade é não ter medo’. O que é liberdade para você? Liberdade é não ter medo. E se tem um lugar que algumas vezes, não todas, mas algumas vezes eu consegui não ter medo, é no palco cantando!  

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