
Em 2025, o Sesc São Paulo completa 30 anos de trabalho social com pessoas refugiadas. Para celebrar e trazer diferentes pontos de vista sobre o tema, convidamos 13 pessoas impactadas por estas ações, além de 3 instituições parceiras, para relatar suas relações de cooperação e protagonismo no contexto do Sesc. Leia na sequência o depoimento de Yara Osman.
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Do Desenraizamento ao Pertencimento: Refúgio no Sesc São Paulo
Todos nós sabemos que qualquer mudança não é algo simples. Mudar de casa já é um desafio imenso, mas mudar de país — e muitas vezes de forma forçada — é uma experiência que abala profundamente a identidade e a sensação de pertencimento. O refúgio, portanto, não se resume a atravessar fronteiras geográficas; é atravessar fronteiras internas, emocionais e existenciais. É iniciar uma vida em um lugar cuja língua você muitas vezes não domina, onde os códigos sociais são novos e onde o cotidiano precisa ser reaprendido quase do zero.
Funciona como a espinha dorsal de tudo o que viveremos no futuro, seja no campo social, seja no campo profissional a das maiores necessidades de quem chega em condição de refúgio é construir uma rede de apoio. No entanto, para que seja realmente eficaz, ela não pode apenas oferecer ajuda material ou burocrática. Precisa compreender nossa realidade, respeitá-la, valorizá-la e, sobretudo, evitar reduzir o refugiado a uma caricatura: a de alguém digno apenas de compaixão, pena ou solidariedade superficial. O refugiado não pode ser aprisionado em um molde que o define apenas pela falta ou pela tragédia. Somos mais do que isso: somos indivíduos, com singularidades, talentos, histórias e autenticidades que merecem espaço para florescer.
O refúgio, como costumo dizer, é uma constante operação de desconstrução e reconstrução: derrubar o que já estava firmado, reorganizar as bases, erguer novas estruturas internas e externas. Esse processo acontece inúmeras vezes e em diversas camadas — na vida pessoal, na vida familiar, na vida profissional. Poucos países permitem que isso aconteça de maneira menos dolorosa. E nesse sentido, sobretudo em São Paulo, existe um espaço que concede liberdade para esse processo sem a pressão de uma integração imediata, que em tantos outros contextos do mundo se mostrou nociva para refugiados. Esse espaço é o Sesc.
Viver em São Paulo: o peso e a possibilidade
É impossível falar da experiência de refúgio em São Paulo sem mencionar as contradições da própria cidade. Para quem chega, ela pode parecer ao mesmo tempo fascinante e assustadora. O tamanho, o ritmo acelerado, o trânsito interminável, a violência urbana, a desigualdade gritante entre bairros, a solidão escondida em meio à multidão. Tudo isso se apresenta de forma quase esmagadora.
Muitas vezes, caminhar por São Paulo é sentir-se perdido em um mar de rostos desconhecidos, onde ninguém olha nos olhos e todos parecem apressados demais para escutar. Para um refugiado, essa sensação se multiplica: não só estamos deslocados social e culturalmente, mas também nos deparamos com uma metrópole que exige adaptação constante. São Paulo pode oferecer muitas oportunidades, mas também impõe barreiras, que nos testam física e emocionalmente, todos os dias.
E foi justamente nesse cenário que o Sesc se tornou uma espécie de porto seguro. Em meio ao barulho da cidade, suas unidades oferecem silêncio, escuta e acolhimento. Em meio à pressa, oferecem tempo. Em meio à indiferença, oferecem atenção. Para muitos refugiados, inclusive para mim, o Sesc é o lugar onde sentimos que pertencemos a algum lugar, mesmo que por algumas horas, mesmo que apenas dentro de seus muros. É como se fosse um respiro, um lembrete de que ainda há espaço para a humanidade em uma cidade que muitas vezes parece sufocada por sua própria maldade.
A experiência com o Sesc
Ao falar sobre as condições de refúgio no Brasil, especialmente em São Paulo, não devemos ignorar a experiência com o Sesc. Não se trata apenas de uma instituição, mas de um verdadeiro abrigo simbólico. Desde o primeiro contato, suas portas se abrem para acolher de forma ampla. É possível participar de oficinas, assistir a apresentações, simplesmente sentar em um espaço de convivência onde se respira respeito e tranquilidade. O Sesc cria, em meio ao caos de uma metrópole, um ambiente em que se pode existir sem medo.
É difícil pensar em outro lugar onde brasileiros, imigrantes e refugiados convivam em pé de igualdade. Essa sensação, que pode parecer pequena, é na verdade um gesto de imenso valor: sentir-se seguro, respeitado e, sobretudo, reconhecido.
Minha jornada pessoal
Minha própria experiência com o Sesc começou de forma simples: participando de atividades culturais e eventos abertos. Pouco a pouco, esse espaço foi se tornando central em minha vida. Não compartilho esse relato apenas para agradecer — embora a gratidão seja imensa — mas para reforçar a importância de políticas culturais inclusivas em sociedades que se definem pela diversidade cultural, racial e étnica.
Foi em uma oficina musical para imigrantes e refugiados que encontrei pessoas que se tornariam parte daquela rede de apoio fundamental que mencionei antes. A partir daí, minha jornada ganhou novos contornos.
Com a pesquisadora Renata Mattar, participei da oficina de cantos de trabalho. Dessa experiência nasceu o convite para formar o grupo Tananir, junto a outras mulheres refugiadas e brasileiras. Nosso objetivo era unir canções tradicionais brasileiras a canções dos países de origem das participantes. Essa mistura de vozes e culturas deu origem a apresentações artísticas, e, o mais importante, a laços de amizade e reconhecimento mútuo.
E dali vieram convites para novas atividades: oficinas de culinária, roteiros de turismo cultural, a criação de um grupo de música iraniana com colegas que também conheci no Sesc São Paulo, e o Sarau Vozes Femininas que durou anos, reunindo mulheres refugiadas e imigrantes de diversas nacionalidades. Celebrávamos, neste sarau, poesia, música, dança e cultura em geral. Cada encontro era uma reafirmação da riqueza que em nós brilha.
Além disso, tive a oportunidade de participar, como palestrante, do curso Refúgios Humanos de formação de professores da rede pública, que marcou profundamente minha trajetória. Este curso em que refugiados e imigrantes floresceram, revelaram talentos, valorizaram suas histórias e perceberam o impacto de compartilhar suas experiências com os educadores brasileiros.
Esse curso merece destaque especial. Seu foco principal era preparar professores para lidar com o crescente número de estudantes refugiados nas escolas públicas. E sua importância não pode ser medida apenas pelo conteúdo transmitido, mas pelo impacto humano. Até hoje, recebo mensagens de professores que participaram, agradecendo ou pedindo conselhos. Esse curso não foi um espaço passageiro de fala, mas um terreno fértil para diálogos transformadores, amizades, oportunidades de trabalho e parcerias.
Entre desafios e descobertas
O Sesc também me permitiu estabelecer paralelos entre os conflitos que vivemos em nossos países de origem e os desafios enfrentados no Brasil. Muitas vezes, fala-se do “mito do Brasil acolhedor” ou dos “mitos do sucesso”. Mas a verdade é mais complexa. Há racismo, há desigualdades, há dificuldades que não podem ser ignoradas. E é fundamental reconhecer que, por exemplo, o racismo vivido por colegas de ascendência africana não pode ser comparado à experiência dos sírios ou de outros grupos. Cada trajetória tem seu peso, sua dor e suas lutas específicas.
Por isso, é importante sempre perguntar: quem acolhe quem? E como esse acolhimento acontece? Quando nos reunimos em espaços como o Sesc, não contamos apenas nossas histórias, mas também refletimos sobre as histórias daqueles que já estavam aqui. É um exercício de escuta mútua, de encontro humano.
As lágrimas que caíam ao final de cada palestra ou atividade não eram exclusivamente de pena ou desespero, mas de descoberta. Descoberta de si mesmo através da escuta do outro. Descoberta de possibilidades de ação, de novos caminhos, de uma identidade em reconstrução.
Por além do lazer
As atividades do Sesc além de serem momentos de lazer, são também espaços de celebração da diferença. E celebrar a diferença não é algo trivial. Muitas vezes, refugiados se isolam, procuram apenas aqueles que se parecem com eles, em busca de segurança. Isso é compreensível, mas também limita o processo de integração. No Sesc, ao contrário, fomos incentivados a compartilhar nossas histórias, ouvir histórias de outros e trocar experiências com pessoas que não compartilhavam do mesmo passado ou presente.
Esse processo foi profundamente terapêutico. Para muitos de nós, o Sesc representou o primeiro passo em uma longa jornada de abertura para a sociedade brasileira.
Um reconhecimento necessário
É importante registrar aqui o impacto profundo dessa experiência toda. Vivemos em um tempo em que instituições culturais e sociais enfrentam inúmeros desafios, e em que a ética do trabalho e do cuidado humano muitas vezes parece enfraquecida. Por isso, cada esforço nesse sentido ético deve ser celebrado.
Assim como o Sesc celebrou nossas identidades, nossas culturas e nossas diversas estratégias de enfrentamento, nós também celebramos o Sesc. Incentivamos a continuidade de seu trabalho, desejando que ele siga sendo um espaço de acolhimento, diálogo e transformação.
E, ao mesmo tempo, guardamos a esperança de que as guerras cessem, que a justiça prevaleça, e que nenhum de nós precise mais deixar sua pátria à força, buscando em outros palcos a dignidade que deveria estar garantida em sua própria terra.
Palavras finais
Ao longo de nove anos no Brasil, trabalhei em muitos lugares, mudei de cidade várias vezes, mas nunca senti minha identidade plenamente notada tanto quanto senti no Sesc. Foi por este meio que consegui afirmar que não somos apenas sobreviventes: somos criadores, artistas, pensadores e, acima de tudo, seres humanos.
O testemunho que deixo aqui é, portanto, um convite: que outras instituições sigam o exemplo do Sesc, que políticas culturais inclusivas sejam fortalecidas, e que a sociedade brasileira continue trabalhando se reconhecendo naquilo que sempre foi a maior riqueza do nosso mundo: a diversidade.
Yara Osman
Refugiada síria desde 2016, fotógrafa, pianista e formada em odontologia. Em São Paulo, atuou em palestras sobre refúgio, feminismo e diversidade, além de participar de projetos musicais e exposições fotográficas. Atualmente trabalha como tradutora, integrando experiência artística e trajetória migratória.
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