Ed. 84 – Entrevista com Ailton Krenak

10/02/2023

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Fotos por Matheus José Maria

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“A gente não pode olhar a questão etária só como uma marcação no sentido temporal, a passagem do tempo na vida daquele sujeito, mas olhar a experiência da vida para aquela pessoa e como ela foi capaz de expressar, não só entregando trabalho, mas produzindo sentido.”

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Mais 60 – Krenak, podemos começar a entrevista com você nos falando sobre o tema principal da revista? Envelhecimento?
Krenak – Há um tempo, fiz uma conversa no Sesc Consolação sobre envelhecer, e eu te digo que foi uma das abordagens que mais me agradou e eu acho que foi a mais rica, porque eu estava em uma roda com pessoas +60, isso que a classificação etária chama de velhos.

Conte como foi essa roda de conversa!
Sei que nós terminamos cantando e dançando naquela sala e foi uma coisa tão forte, foi uma celebração tão grande que a gente conseguiu estabelecer um ambiente de empatia com as pessoas, porque tinha mulheres negras, homens negros, mulheres brancas, senhoras, assim, lá pelos setenta e tantos anos, com diferentes origens. Tinha gente de matriz de imigrantes italianos, que criou uma confraria tão linda, e a gente brincou, dançou, cantou, abraçou, beijou, virou, assim, uma festa. Parecia uma comunidade de convivência, tipo tranquila. Ali, ninguém estava inseguro um com o outro. Mesmo as pessoas mais tímidas, que você sentia que tinham uma natureza mais reservada, gostavam de bater palma, de dançar…

Deve ter sido um momento muito interessante para falar e sentir o envelhecer…
Aquilo me fez pensar o seguinte: a nossa observação sobre envelhecer é uma produção ampla no sentido da cultura. Não tem um dado, não tem um dado psicológico que define essa idade ou essa faixa de idade, que se considera a partir de 60 anos. A minha mamãe, por exemplo, está com 96 anos e ela brinca e conversa comigo quando é ajudada a subir e descer do carro. Ela tira a minha mão e diz “me deixa!”, como se dissesse “não sou dependente”. Nós atribuímos às pessoas nessa faixa de idade uma debilidade. A gente precisa parar com isso. Algumas pessoas que alcançaram essa maioridade não se deram conta de que o tempo passa. Eles (idosos) seguem lépidos e fagueiros enquanto os cães ladram, porque eles conseguem tomar a experiência da vida de uma maneira tão arrebatadora que eles não têm tempo para chorar, não têm tempo para ficar na beira da estrada, assistindo a caravana passar. São pessoas maravilhosas em todas as etnias.

“Eles (idosos) seguem lépidos e fagueiros enquanto os cães ladram, porque eles conseguem tomar a experiência da vida de uma maneira tão arrebatadora que eles não têm tempo para chorar, não têm tempo para ficar na beira da estrada, assistindo a caravana passar. São pessoas maravilhosas em todas as etnias”.

Qual é a relação que você faz com envelhecimento e racismo estrutural? 
O que eu queria nessa conversa com vocês é ajudar a entender que raça não define a natureza das pessoas. Quando a gente olha a questão da idade e quer saber como um árabe envelhece, como um chinês envelhece, como um europeu branco envelhece ou como um indígena envelhece, nós estamos aceitando entrar naquela chave que os especialistas chamam de racismo estrutural. Quer dizer, o que é racismo estrutural? É uma marca que atravessa, em diferentes sentidos, um mesmo corpo. Se a gente estivesse na sala de aula agora, alguém ia lá na lousa fazer um traço e, depois, um traço no sentido vertical e depois cruzar ele com diferentes linhas de incidências. Uma dessas incidências é a ideia de ficar velho. Essa ideia do envelhecer tem sido aborda- da sempre na perspectiva da vida útil. 

Inclusive você escreveu um livro com esse título, A Vida Não É Útil. 
Eu zerei o relógio da vida. Se você consegue entender que a vida não é útil, as pessoas já não vão ser avaliadas pelo quanto elas produzem. A idade moderna – aliás, eu estive no lançamento de um livro maravilhoso, com o título de Homo Modernus, da nossa querida Denise Ferreira. Esse homem é a produção de pensamento, que inclui a ideia de inutilidade da vida e trabalho. Quer dizer, o homo modernus, ele só existe como força de trabalho. Se ele não oferecer essa força de trabalho dele, ele não existe. Ele é excluído de qualquer referência. A Denise Ferreira dá uma noção global de raça. O Homo Modernus é uma leitura complexa. Ela faz uma leitura de todos os pensadores europeus. É uma biografia monumental, porque ela pega todos os traços do que veio a se constituir nessa ideia moderna de raça. Quer dizer, ela mostra que isso é uma invenção também. Raça é uma invenção. Uma invenção de nós, os humanos, com o privilégio dela ter sido instrumentalizada pelos europeus brancos. Ela é uma ideia supremacista. É um conceito supremacista, independentemente de nossa avaliação, ele atua em favor do capitalismo como ferramenta. 

“Eu zerei o relógio da vida. Se você consegue entender que a vida não é útil, as pessoas já não vão ser avaliadas pelo quanto elas produzem”.

Ailton, o Sesc tem um programa que em 2023 fará 60 anos. É o Trabalho Social com Idosos (TSI), que trata dessas questões sociais, convida a pessoa idosa a participar de ações, atividades, oficinas, fomenta a convivência, inclusive com outras faixas etárias, busca desconstruir preconceitos, e ficamos pensando como é essa relação nos povos indígenas, ou seja, de pessoas idosas com outras faixas etárias.  

Nós vamos falar disso, mas se a gente falar só disso, vai parecer que nós estamos sublimando o fator racialista, que está presente, e o próprio etarismo. A gente não pode ignorar que tanto o etarismo quanto o racialismo são marcas diluídas nisso que a Denise chama de conceito global de raça. Agora nós podemos seguir em frente, falando especificamente de povos originários. E povos originários a gente pode entender, agora, que não é só essa gente chamada no Brasil de indígenas, mas aqueles que estão em diferentes latitudes, os que estão nos Andes, os que estão na América do Sul, os que estão nessa Pachamama, nessa América. O que é a América? É esse vasto território onde povos indígenas, povos nativos, povos originários de diferentes historicidades experimentaram uma colonização brutal nos últimos 500 anos. Então, tem uma questão que é também de tempo. Como essa gente, ao longo de cinco séculos, conseguiu manter memória de si e modo de se perceber como humano, como gente, e contar sua idade. 

E como a idade é contada para os povos indígenas? 
Contamos a idade a partir de marcas que são próprias da cosmogonia de cada um desses povos, inseridos numa cosmovisão tão singular… Uma pessoa guarani, ou uma pessoa yanomami ou uma pessoa krenak vai perceber o envelhecimento com um traço de semelhança, onde quanto mais o tempo passa, mais interessante você fica. E aí a contagem desse tempo é feita a partir de ritos. São rituais, a vida é ritualizada. Talvez essa maravilha de permanecer por tanto tempo, por tantos séculos marcando a passagem do tempo por ritos, por rituais bem identificados, permita que a experiência de envelhecer se torne também uma experiência de descarte. Essas sociedades não descartam ninguém. Elas não são sociedades do descarte. Elas são sociedades de uma crescente associação, valorização, a gente poderia dizer assim, de um engrandecimento do ser. Vamos imaginar uma árvore na floresta, quanto mais antiga essa árvore na floresta, mais diversidade de vida ela expressa, porque, no seu crescimento, ela começa a abrigar muitos outros organismos e forma verdadeiros bosques em seu corpo. Então, é como se o tempo mostrasse naquela árvore majestosa uma produção incessante de benefícios para si e para os que estão ao redor dela. Para mim, é a própria ideia da prosperidade.

Vamos imaginar uma árvore na floresta, quanto mais antiga essa árvore na floresta, mais diversidade de vida ela expressa, porque, no seu crescimento, ela começa a abrigar muitos outros organismos e forma verdadeiros bosques em seu corpo. A gente não pode olhar a questão etária só́ como uma marcação no sentido temporal, a passagem do tempo na vida daquele sujeito, mas olhar a experiência da vida para aquela pessoa e como ela foi capaz de expressar, não só́ entregando trabalho, mas produzindo sentido”. 


Fale mais sobre a ideia da prosperidade, por favor. 
Prosperidade. É diferente daquela ideia que fica meio pairando na cabeça, no cotidiano, principalmente das pessoas que vivem a dura experiência do trabalho no sentido cotidiano, porque são trabalhos, no caso dos povos originários não têm a importância que têm no mundo dos brancos. Numa comunidade urbana, é impossível alguém pensar que vai ficar fora da dança do mundo do trabalho. Numa sociedade de povos nativos, originários, ficar fora dessa dança do relógio, dessa dança digital que marca o tempo, o tempo que você vende em troca da sua possibilidade de ser cuidado, de ter abri- go, de ter comida e de ter engajamento social também, de ter presença no meio social. Aqui na cultura do Ocidente, se a pessoa não tem um engajamento visível nesse mundo do trabalho, ela não é socialmente aceita. Então, é o trabalho como religião. Seria inaceitável alguém que não faz um culto ao trabalho. As sociedades originárias, esses povos, observados rigorosamente nos últimos cem anos por etnógrafos, antropólogos, pesquisadores de toda ordem e por um grande sujeito chamado Lévi-Strauss2 – que decidiu pegar todos os mitos dessa gente e olhar como essa gente pensa – viraram o balaio de todos os lados e não encontraram nenhum elogio ao trabalho, mas, sim, celebração da vida. Quando você olha a diversidade de povos e de culturas no planeta, é uma profusão de gente, na perspectiva da diversidade. E é isso que nos salva. É maravilhoso, porque a diversidade biológica está presente também na diversidade cultural.  

E a diversidade precisa estar na pauta de várias ações, certo? 
Eu gosto muito da abordagem dos últimos 60 anos que o Sesc faz de questões que cruzam a identidade, a diversidade, a pluralidade e é muito interessante imaginar que 60 anos atrás, uma instituição que não é pública, uma instituição do setor privado, do mundo do comércio, tenha se preocupado com essa relação do trabalho e o envelhecimento. Já que o envelhecimento é um fator universal para o Ocidente, o Sesc, dentro dessa lógica, dessa racionalidade do Ocidente, procura tratar a questão essencial, que é a questão da vida. A gente não pode olhar a questão etária só como uma marca- ção no sentido temporal, a passagem do tempo na vida daquele sujeito, mas olhar a experiência da vida para aquela pessoa e como ela foi capaz de expressar, não só entregando trabalho, mas produzindo sentido. Produzindo sentido da vida para ela mesma e para quem está no seu entorno. Seus parentes, seus irmãos, sua comunidade, é uma disposição de produzir comunidade, de produzir experiência comunitária. É geracional, mas é também individual. A gente pode observar uma geração inteira, mas a gente pode observar uma pessoa dentro daquela passagem geracional de tempo, como ela se inventa, se reinventa…  

É plural, né? 
É plural. É tão maravilhosa essa diversidade que quase não tem sentido se referir simplesmente a uma faixa de idade para qualificar pessoas. Quando eu estava vindo de manhã̃ para esse lugar onde tem conexão para a gente conversar eu fiquei pensando, interessante, tem uma defasagem, digamos assim, do ponto de vista social, com essa marcação etária, de etarismo, essa coisa, como se fosse um prejuízo envelhecer. Mas isso é uma malandragem, uma malandragem instituída pelo sistema econômico global, que a gente chama de capitalismo. Seria maravilhoso se a gente pudesse compartilhar a ideia de que para os povos indígenas, para os povos originários, a experiência da vida não se conta apenas, ela se conta com a capacidade de produzir sentidos.  

O que significa a palavra ancião para esses povos? 
A palavra ancião entre esses povos evoca um brilho, uma luminosidade, que toda criança gostaria de se aproximar disso, ficar perto. As crianças olham os anciãos com uma vontade de um dia chegar lá, é maravilhoso. E isso produz uma, vamos usar um termo que eu não gosto muito dele, uma valorização do sentido de envelhecer, porque valorizar é justamente o que é instituído por uma ideia de utilidade e que ela está presente no mundo do trabalho de uma maneira perversa: valorizar. A gente precisava buscar outros termos, talvez na poesia, talvez em outro lugar, para gente expressar a beleza dessa passagem do tempo, para quem não se rendeu a essa utilidade da vida.  

É linda essa ideia de as crianças se projetarem… 
Se projetarem nos seus avós, nos seus tios, é por isso que as crianças param e ficam olhando alguém fazendo cesto, por exemplo. Porque tem uma complexidade, ali tem uma paciência, ali tem uma dedicação de fazer aquele tecido tão complexo, de imprimir nele aquelas marcas, porque aquilo ali é um texto. Ele é um texto possível de ser lido por um menino daquela cultura e quem faz aquilo da melhor maneira é um homem mais velho ou uma mulher mais velha. Quer dizer, os sábios desse lugar são os velhos. Eles são sábios, quase ao ponto de a expressão sabedoria ser sinônimo de envelhecimento, sem a conotação que é dada ao envelhecimento para as coisas.

As histórias antigas da maioria dos nossos povos, dessas etnias, que conseguiram passar por tantas provas e ficarem vivos e terem memória, sem museu, sem galeria, sem base de dados, carregam a memória no corpo. Isso deveria nos sugerir que o corpo, com a idade, é uma biblioteca viva. Vocês já devem ter ouvido a expressão: quando morre um ancião, é como se queimasse uma biblioteca inteira. Nas nossas culturas, isso é verdade. Se eu posso recitar o nome da minha antiga tribo, eu devo isso aos mais velhos, aos que viveram antes de mim e carregaram essa memória sem nenhum suporte material. Não tinha um HD físico para botar na memória. Era o corpo. E é o corpo que envelhece. É preciso ver que esse corpo é um casulo. Ele é uma cápsula da vida. E a vida é selvagem, e a vida não acaba. A vida no sentido biológico. Não a vida como experiência individual, a vida que atravessa tudo. A vida que já estava aqui, quando o planeta Terra se formou, e a vida que ainda está aqui, agora. Quer dizer, bilhões de anos. É maravilhoso. Essa experiência do tempo, essa experiência da vida, ela transcende a cronologia.

Seria maravilhoso se a gente pudesse compartilhar a ideia de que para os povos indígenas, para os povos originários, a experiência da vida não se conta apenas, ela se conta com a capacidade de produzir sentidos. As crianças olham os anciãos com uma vontade de um dia chegar lá, é maravilhoso. Isso deveria nos sugerir que o corpo, com a idade, é uma biblioteca viva. Vocês já devem ter ouvido a expressão: quando morre um ancião, é como se queimasse uma biblioteca inteira. Nas nossas culturas, isso é verdade. Se eu posso recitar o nome da minha antiga tribo, eu devo isso aos mais velhos, aos que viveram antes de mim e carregaram essa memória sem nenhum suporte material.  

Ailton, quais são os benefícios e aprendizados de viver em comunidade? 
Talvez a gente pudesse pensar que o que falta nessa sociedade é a experiência comunitária, porque o afastamento das pessoas, tanto no campo etário quanto no social, não acontece quando você vive na comunidade. A comunidade… é como se ela criasse uma membrana protetora contra essa praga do esquecimento uns dos outros. Então, a gente podia considerar que a palavra para valorização seria a experiência de produção de afeto entre as pessoas. Quer dizer, a gente se acompanha tão proximamente uns dos outros no cotidiano que não deixa acontecer esse afastamento, essa indiferença que produz essa diferença de idade. O convívio íntimo, ele não deixa escapar esse sentido de afeto na experiência cotidiana ao longo do tempo. Passam décadas, mas aquela mesma comunicação direta que a netinha de 5 anos tem com a avó de 40, 50, vai ter, depois, com a netinha de 40, com a avó de 90. A liberdade, a intimidade, a cumplicidade, elas não se perdem, mas isso é dentro da comunidade. Precisa ter muita gente produzindo esse sentido da vida.  

Ailton, te ouvindo falar, eu lembrei de coisas importantes em seus escritos, de uma forma muito crítica a essa sociedade capitalista e por mais que a gente saiba que tem uma diversidade muito grande entre esses povos originários, a gente consegue ver algumas semelhanças como essa que você comentou, dessa valorização da vida comunitária e também da valorização dessa relação com outros seres. E como essa passagem do tempo é muito diferente para essas lideranças espirituais. Por favor, fale sobre a experiência com essas lideranças.  

Maravilha! É uma revelação maravilhosa de que o tempo, a ideia de tempo que nós contamos, ela não é a única marca, não é o único alinhamento que a gente pode ter com o sentido da vida. Eu fiquei pensando que todas as pessoas que me inspiraram ao longo desses 50, 60 anos de acolhimentos afetivos, ânimo intelectual, capacidade de reflexão sensível da vida, sentem-se a maior parte do tempo socialmente ativas, se relacionando com outras pessoas, com outras comunidades, e são pessoas que permanecem além do seu cronograma, digamos assim. Além da sua cronologia. Elas não estão fisicamente mais entre nós, mas elas têm uma presença tão intensa que constitui aquilo, que em algumas de nossas culturas se chama de encantado. Os encantados.  

O que são os encantados? 
Os encantados são exatamente aquelas pessoas que transitaram desse lugar da experiência física para a continuidade da experiência não física, que a gente pode chamar de espiritual, mas também a gente pode buscar outras expressões pra se referir à continuidade de existir como pensamento, como afeto, como memória, que ganha tantos sentidos e que é chamado de os encantados. Têm as festas que são feitas para os encantados. Encantados são exatamente os nossos ancestrais. São os nossos ancestrais numa continuidade atemporal, quer dizer, fora do tem- po. Meus parentes não são só aqueles que estão ali, que eu posso alcançar com um telefonema ou com uma visita física. Meus parentes são todos aqueles que me antecederam. Então, esse é o sentido de ancestralidade. É como se você experimentasse a sensível experiência de que seus ancestrais, seus avós, todas as pessoas queridas suas estão a seu alcance afetivo. Você pode estar com eles. Em alguma hora do dia, ou do final da tarde, você pode se sentar com as pessoas que estão fisicamente próximas de você em comunidade e evocar a presença dos encantados, acendendo uma fogueira no quintal, puxando um maracá, cantando ou simplesmente fazendo silêncio ao redor do fogo. Silêncio. Escutando os pássaros.

Então, isso é maravilhoso, porque abre uma possibilidade sensível para cada um de nós experimentar a convivialidade. A convivialidade com nossos antepassados, mas a gente poderia dizer também com os nossos entes presentes. Eu acho interessante essa língua portuguesa, porque não é na língua krenak, é na língua portuguesa que eu me expresso, mas que dá possibilidade de você fazer uma relação entre antepassados e ente presentes. Então, a gente pode pensar isso, como eu quero tratar aqueles que não estão aqui ao meu redor? Como antepassados ou entes presentes? Isso pode ser uma experiência poética, rica, de dar sentido à vida, independentemente de quantas décadas você tenha. E, de repente, quantas décadas você tenha, pode só acrescentar sentido à vida e não tirar sentido. 

Ailton, estamos encerrando a entrevista. Muito obrigada por tanto! Você gostaria de fazer mais alguma consideração? 

Tem um pequeno poema que, na verdade, antes de ser um poema, ele é um canto, uma cantiga… esse canto repete o sentido dessa ente-presença e diz assim: 

Cantando, dançando, passando sobre o fogo  
Seguimos nos rastros dos nossos ancestrais  
No contínuo da tradição 

Cantando, dançando, passando sobre o fogo, quer dizer, passar sobre o fogo é a experiência radical de estar vivo. É quando a gente é testado. Quando tem os embates da vida. Quando nós somos desafiados a ser, a cada tempo, aquilo que o tempo em que estamos vivendo nos exige.

Se a vida moderna nos exige responder ao confinamento, à violência do trabalho, ao constrangimento, a gente tem que ser capaz de lidar com isso, porque alguém pode pensar: ah, o Ailton está falando da vida em comunidade, porque ele tem esse privilégio de estar numa comunidade, de poder se refugiar numa comunidade, mas milhões de pessoas não têm mais esse privilégio, já nascem com o marcador do tempo no pulso. Quem sabe, num futuro não muito distante, as pessoas vão preferir viver em comunidade a competir na individualidade. A individualidade só institui competição. Se a gente puder experimentar uma expansão da experiência coletiva, comunitária, nós vamos poder criar experiência própria para criar comunidades.  

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Ailton Krenak

Ailton Alves Lacerda Krenak nasceu em 1953, em Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, território do povo krenak. É líder indígena, ambientalista, escritor e jornalista. Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades indígenas e ribeirinhas na Amazônia. É comendador da Ordem de Mérito Cultural da Presidência da República e doutor honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB) e Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem vários livros publicados. Sua obra está traduzida para mais de 13 países.

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