A África no centro da história

08/07/2025

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A obra Civilização ou barbárie, de Cheikh Anta Diop, foi publicada em 1981 pela editora Présence Africaine, ou seja, cinco anos antes da morte do autor, ocorrida em 8 de fevereiro de 1986, aos 63 anos, vítima de uma crise cardíaca. Para entender o que esconde esse título, precisamos primeiramente dizer uma palavrinha sobre a origem, a socialização e a formação universitária de Diop. Nascido em 29 de dezembro de 1923 em Diourbel, uma localidade no interior do Senegal, teve uma formação corânica antes de ingressar na escola primária na mesma localidade. Em Dakar fez seus estudos secundários, no Colégio Saint-Louis, e dois bacharelados, em filosofia e em matemática, em 1945. No mesmo ano, ele embarcou para Paris, onde iniciou seus estudos universitários em ciências e letras, na Sorbonne.

Em 1954, seis anos antes da independência do Senegal, apresentou sua tese de doutorado intitulada Nações negras e cultura: Da Antiguidade egípcia aos problemas culturais da África negra hoje.
Essa tese não foi aceita, mas foi a partir dela que tudo começou. Seus mestres da Sorbonne lhe disseram: “Gostaríamos de lhe dar seu título de doutor, mas com uma outra tese. Reconhecemos que a África tem uma história e civilizações, mas não se misturam com o Egito Antigo, que não pertence à África”. Ele teve de preparar e defender uma outra tese, que foi aceita, com o título de Influência profunda do Egito na civilização grega, sem tocar na origem negra da civilização egípcia, que seus mestres consideravam não africana.

Publicado em 1955 pela editora Présence Africaine, Nations nègres et culture tornou-se um best-seller e projetou o professor Cheikh Anta Diop, fazendo dele o intelectual africano mais conhecido desde o início das independências africanas até a atualidade. A respeito, escreve Elikia M’Bokolo num prefácio ao livro L’Afrique de Cheikh Anta Diop, da autoria de François-Xavier Fauvelle:

A África negra tem produzido, há mais de um século, um número significativo, e em variedade notável, de talentosos historiadores profissionais e filósofos da história. Mas nenhum deles, seguramente, conheceu em vida e depois de sua morte a notoriedade de Cheikh Anta Diop desde a metade dos anos 1950.

Nations nègres et culture foi certamente mal recebido, desde seu nascimento, pela comunidade intelectual francesa, com argumentos a priori de caráter mais ideológico do que científico. No entanto a obra apresentava bases factuais e metodológicas indiscutíveis. Mas por que tantas reações negativas no mundo ocidental, principalmente o francês, não apenas contra as teses e ideias defendidas nesse livro, mas também em todos os outros publicados por Diop depois? Confrontando seus trabalhos com os dos “astros” da egiptologia francesa, como Gaston Maspero, entre outros, vemos que Cheikh Anta Diop critica seus argumentos, apontando erros de interpretação, ilogismos e má vontade. Nessas teses, coloca-se a questão da origem da civilização egípcia, que, embora situada na África, não era reconhecida como africana e particularmente não como negra — o que Cheikh Anta Diop rejeita com base numa pesquisa de campo e documental relevante. Com efeito, ele lia os hieróglifos nos textos originais; estudou a morfologia de certos bustos de faraós e as pinturas guardadas no Museu do Louvre; analisou os conteúdos religiosos e políticos dos documentos em hieróglifos e as estruturas sociais por trás deles, os sistemas de parentesco e sobretudo a língua (sintaxe, léxico, formas gramaticais do Egito Antigo). Descobriu semelhanças surpreendentes com os fundamentos das culturas negras vizinhas do Egito, e em consequência demonstrou que os proponentes do imperialismo ocidental (no início da colonização) haviam cinicamente embranquecido a civilização egípcia com a finalidade de afirmar sua dominação sobre os povos colonizados. Evidentemente, como já foi dito, essa tese de Diop foi recusada na Sorbonne, apesar de ter recebido o apoio de grandes mestres da sociologia francesa, como Georges Gurvitch e Schwaller de Lubicz.

De volta para o Senegal após a aprovação da segunda tese, Cheikh Anta Diop fundou um laboratório de datação por Carbono-14 (C14) no Instituto Fundamental da África Negra (Ifan), onde continuou a fazer suas pesquisas sobre o Egito e a história da África em geral. Com base na premissa de buscar a explicação das contribuições da África na história da humanidade nasceram os livros A unidade cultural da África Negra (1959), L’Afrique noire précoloniale (1960), Antériorité des civilisations nègres: Mythe ou vérité historique? (1967), Les fondements économiques et culturels d’un Etat Fédéral d’Afrique noire (1974) e este Civilização ou barbárie (1981).

Civilização ou barbárie é uma obra de síntese, na qual ele retoma e aprofunda todas as teses defendidas nos livros anteriores que acabei de enumerar. Diop lança mão das pesquisas então recentes em paleontologia (em especial Richard Leakey), arqueologia pré-histórica, antropologia física e biologia molecular que reafirmam que a África é o berço da humanidade, no estado tanto do Homo erectus como do Homo sapiens sapiens.
Logicamente, a própria história da humanidade começou nesse berço. Diop acredita que, para os africanos, o retorno ao Egito em todos os domínios seria uma condição necessária para reconciliar suas civilizações com a história da humanidade e para poder construir um corpo de ciências humanas modernas e renovar a cultura africana. Ou seja, longe de ser uma simples declaração sobre o passado, a retomada do Egito seria a melhor maneira de construir o futuro cultural africano. Assim, o Egito desempenharia na cultura africana repensada e renovada o mesmo papel que as antiguidades grega e latina desempenharam na cultura ocidental. Da mesma maneira que a tecnologia e a ciência modernas vêm da Europa, na Antiguidade o saber universal corria do vale do Nilo em direção ao resto do mundo, em particular para a Grécia, que serviria de intermediária.

O Homo sapiens sapiens, em sua evolução, criou a história, as organizações sociais como os sistemas de parentesco, os Estados, artes, religiões, ciências exatas como a matemática (geometria), a filosofia. Em suma, a cultura em geral. A filosofia africana só poderia se desenvolver no terreno original da história e do pensamento africanos — senão seria um mito, e não uma realidade.

A obra de Cheikh Anta Diop, somando-se ao conteúdo dos oito volumes da História geral da África, inverteu também o esquema da filosofia hegeliana, ao provar que o privilégio do ser humano de ter consciência de viver na história não é reservado unicamente à humanidade europeia. Diop desenterrou algo incontestável no passado negro-africano que foi escondido, recolocando-o na origem da própria história da humanidade: a África como berço da humanidade. Isso e a civilização egípcia vinculada ao ser negro-africano mudam o esquema anterior, fazendo da África o primeiro marco da história. O passado está na pré-história da África desenterrada, no Egito integrado, nos grandes reinos africanos reconhecidos, contrariando o pensamento hegeliano.

Se outros países do mundo continuam a estudar e cultuar seus ancestrais intelectuais de todos os tempos, historiadores, pensadores, filósofos etc., por que os países africanos e suas diásporas não fazem a mesma coisa, em vez de estudar somente gregos, latinos e intelectuais das antigas metrópoles colonizadoras?

Faço aqui um convite: que possamos seguir o exemplo de estudiosas/os e pesquisadoras/es brasileiras/os que se debruçam sobre nossos pensadores passados, presentes e futuros. Se continuarmos a excluí-los da nossa formação, de nossas bibliografias e debates intelectuais, continuaremos a fazer o jogo do europeu, ou a sermos, consciente ou inconscientemente, cúmplices da própria ideologia racista que nega nossa inteligência ou a capacidade de sermos também grandes intelectuais e pensadores da sociedade. É com esse espírito que vejo a importância consciente da iniciativa da Zahar e das Edições Sesc de criar uma edição especial das obras de estudiosas/os e intelectuais africanas/os e da diáspora negra no mundo.

Kabengele Munanga
Antropólogo e professor brasileiro-congolês

Texto publicado originalmente como prefácio do livro.

Veja também:

:: trecho do livro

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