A era dos bootlegs

25/09/2020

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Pedro Alexandre Sanches é maringaense, jornalista em São Paulo desde 1995, autor dos livros Tropicalismo — Decadência Bonita do Samba e Como Dois e Dois São Cinco

ilustrações por Alexandre Calderero — “de boa”.

Eles já foram um subproduto cobiçado pelos fãs de música. No tempo em que as canções tinham formato (um disco de vinil, uma fita cassete, um compact disc), os bootlegs se disseminaram, primeiro nos Estados Unidos. Eram gravações clandestinas, feitas diretamente em shows dos artistas (a partir do som ambiente da casa de espetáculo ou da mesa de som), ou captadas de exibições musicais de rádio e televisão. Ou seja, os bootlegs eram uma modalidade à parte de pirataria, entre as muitas que a indústria musical teve de enfrentar ao longo de sua história. Nesse caso, estava-se fazendo uma cópia de algo que não tinha versão original colocada à venda no mercado oficial. Os pirateadores de bootlegs e os consumidores desses produtos subterrâneos tinham uma característica em comum: eram colecionadores apaixonados por música.

Para o escritor musical Clinton Heylin, o conceito de bootleg remonta à época de William Shakespeare (1564–1616), dramaturgo inglês que teve publicadas transcrições não-oficiais de suas peças. Nos anos 1950, mesmo antes da consolidação do formato LP (long playing), a indústria de cinema enfrentou os piratas, que gravavam as trilhas sonoras dos filmes diretamente das salas de exibição. Mas o bootleg ganhou impulso e popularidade a partir de 1969, quando foi publicado, dentro de uma capa branca vazia, o LP Great White Wonder, de Bob Dylan. Era um álbum duplo tirado de várias origens: gravações informais feitas em 1967 com The Band, uma gravação regisrtrada num hotel em 1961, sobras de estúdio de discos oficiais do artista, uma gravação ao vivo retirada de um programa de TV. Dylan seria pioneiro também em 1975, quando a gravadora Columbia tentou enfrentar a cultura bootleg lançando o duplo The Basement Tapes, com parte do material pirateado em Great White Wonder.

Edição de The Great White Wonder (1969), bootleg de Bob Dylan, um dos pontapés da história

No mesmo 1969, novamente sob capas brancas, foram editados Kum Back, dos Beatles, com versões iniciais do que seria o álbum Let It Be (1970), e Live’r Than You’ll Ever Be, dos Rolling Stones, gravado provavelmente a partir do palco durante um show da banda no ano anterior. Resenhando o disco, o futuro cineasta Wim Wenders classificou-o como o melhor álbum dos Stones. A partir dali, tudo seria pirateado para saciar a fome dos fãs: Led Zeppelin, Pink Floyd, Black Sabbath, Sex Pistols, todas as bandas que nos anos 1970 expandiam o formato do rock de arena.


“O bootleg era consequência da carência dos fãs, que queriam mais do que a indústria consentia em fornecer”


Outro veio farto nos anos 1970 foi a exploração de raridades de artistas mortos (como Jimi Hendrix) e bandas já extintas, os Beatles à frente de todas. O também duplo Live! At the Star-Club in Hamburg, Germany; 1962 resgatou, em 1977, um show alemão do grupo que, então, ainda não havia lançado nenhum LP. Para os responsáveis pela confecção dos bootlegs, tratava-se de colocar os fãs em contato com a música sem a intermediação de uma gravadora. Comparável a essa modalidade romântica de pirataria foi a reação das ditas majors: pequena e localizada. A gravadora EMI (hoje incorporada à Universal), por exemplo, demorou até 1994 para transformar os bootlegs dos Beatles na série Anthology. “Eu morri com os Beatles, porque juntei tantos (bootlegs)e depois fizeram a série Anthology em três volumes duplos, que matavam toda a pirataria. Os caras juntavam todos os piratas num disco oficial, e aí acabou a graça”, conta Luiz Calanca, dono da mitológica loja, sebo e gravadora paulistana Baratos Afins.

O produtor musical Pena Schmidt, com longa história nas gravadoras (majors e independentes), define o porquê da popularidade do formato: “O bootleg era consequência da carência dos fãs, que queriam mais do que a indústria consentia em fornecer. Eram registros para fãs, uma coisa romântica, feita anonimamente, a maioria com selos brancos, sem nada escrito, para serem anônimos na fábrica de discos”. Schmidt cita um exemplo fora da curva: “O Grateful Dead rompeu o controle da gravadora ao declarar que sua obra era aberta a todos. Eles deixavam as pessoas gravarem seus shows direto da mesa, incentivavam a troca desse material entre os fãs. O resultado foi que não havia mais ‘fitas pirata’ do Grateful Dead, todas eram oficiais”.

O Brasil tardou a chegar à era dos bootlegs, e chegou muito precariamente. “Para Iluminar a Cidade (1972), do Jorge Mautner, é um disco pirata”, define Luiz Calanca. “Ele me deu a luz de como fazer, os caminhos de fazer prensagem exclusiva. Eu entrei no mundo do disco por causa do Mautner e do Arnaldo Baptista.” Para Iluminar a Cidade é o único “pirata” nacional de que Calanca se lembra nos anos 1970. Mas não tinha nada de pirata: o selo de lançamento, Pirata, estava vinculado à multinacional Philips. Não era, portanto, falsificado. Elaine Medeiros, gerente de marketing estratégico e catálogo da Warner Music Brasil, confirma o alcance restrito dos bootlegs no Brasil: “Nunca houve uma presença muito grande de bootlegs no mercado brasileiro, não foi um item de se chamar tanta atenção. A maioria apresentava uma qualidade de áudio ruim, restringindo o público a fãs mais fiéis”.

O que Luiz Calanca viu muito desde que abriu a loja Baratos Afins, em 1978, foram bootlegs estrangeiros, importados clandestinamente para cá. Foi o caso de Two Sides Live (1981), da banda U2. Calanca colocou o bootleg à venda na loja e acabou vendendo para um policial à paisana, com nota fiscal. “A gente fez 300 cópias, era o pirata do pirata. Alguém me denunciou e eles vieram aqui para me dar o flagrante. Até aí eu estava completamente leigo sobre a pirataria”, diz. Segundo o lojista, o disco foi posto à venda porque ele tinha uma autorização assinada pelo empresário do U2, banda ainda pouquíssimo conhecida àquela altura.

Mas o dono da Baratos Afins se envolveu em outro caso: “Nós fizemos um pirata do Joy Division, o Closer(1980)”. O disco tinha nove faixas, e ele incluiu mais uma, o hit “Love Will Tear Us Apart” (1980), que mundialmente só havia saído em compacto. “Mais tarde, quando a (gravadora) Eldorado fez, ela incluiu ‘Love Will Tear Us Apart’, e aí eu entendi que a cópia era uma cópia do meu. Lembro até que voltaram para a gráfica e adicionaram o nome da música no encarte”, ri Calanca.

Exclusividade brasileira, lado b de “Closer” com Love Will Thear us Apart (sic)

Pena Schmidt descreve os anos 1970 e 1980, pré-ascensão do CD: “Aqui no Brasil havia LPs piratas de trilhas de novela. E Roberto Carlos, raros porque era muito arriscado e as poucas fábricas de vinil daqui não topavam. Vinham de fora, bem complicado, eram falsificações comerciais, não eram coisa de fã. Nos anos 1980 isso piorou com as fitas cassete, que podia ser multiplicadas em fabriquetas de garagem, e aí virou pirataria. Os artistas comerciais eram lançados em cassetes piratas, cópias falsas, com redes de venda em postos de gasolina na estrada. Isso não era bootleg”.

Antes que o Brasil criasse o hábito de fabricar e consumir bootlegs nacionais, a era do compact disc entrou em vigor. O primeiro CD brasileiro, de Nara Leão, saiu em 1986. E tudo mudou daí por diante. Os bootlegs passaram a parecer ingênuos, se comparados à pirataria maciça, industrial de CDs. Tudo passou a ser pirateado, dos lançamentos do momento a raridades nunca relançadas em CD pelas gravadoras. Voltaram à tona e passaram a ser revalorizados títulos esquecidos, como Tim Maia Racional (1974/75), a estreia dupla do paraibano Zé Ramalho e do pernambucano Lula Côrtes Pâebirú (1975), e raridades da psicodelia nordestina como No Sub Reino dos Metazoários (1973), de Marconi Notaro, e o disco homônimo de Flaviola e o Bando do Sol (1976). Na maioria dos casos, eram discos reeditados por selos internacionais, importados e pirateados em cópias toscas. Eventualmente, a circulação internacional desses títulos encorajou os selos nacionais a relançá-los aqui, em CD e/ou em vinil. Hoje, estão todos disponíveis no YouTube e demais plataformas digitais.

O culto ao grupo Mutantes, de Rita Lee e Arnaldo Baptista, provocou os dois casos mais próximos da cultura bootleg no Brasil, ambos tardios. No primeiro, uma gravação dos Mutantes num estúdio parisiense, em 1970, circulava clandestinamente nos bastidores da indústria musical e não chegou a ser comercializada em bootleg. O disco só foi lançado pela gravadora Universal em 2000, sob o título Tecnicolor. O segundo caso remete ao momento em que Rita Lee saiu dos Mutantes e tentou formar uma dupla feminina com Lúcia Turnbull, chamada Cilibrinas do Éden. Em 1973, elas gravaram um álbum que foi rejeitado pela gravadora e ficou arquivado. O sucesso de Tecnicolor motivou a Universal a querer lançar as Cilibrinas, mas Lúcia Turnbull desautorizou a edição. Em 2008, surgiu uma bonita edição clandestina chamada Cilibrinas do Éden. Até hoje, sebos locais comercializam por aqui esse único lançamento físico em CD, mas hoje ele pode ser ouvido livremente nas plataformas de streaming, com carimbo da Universal.

À medida que crescia a pirataria, crescia também na indústria estadunidense o hábito de fortalecer relançamentos com faixas-bônus obtidas de versões demo, outtakes e gravações inéditas. O Brasil nunca chegou a investir a sério nessa linha. Mas aqui se popularizaram as gravações ao vivo de shows, principalmente a partir do advento do DVD, que veio substituir as fitas VHS. A partir do Acústico MTV de Gilberto Gil, em 1994, o Brasil virou terreno fértil para a disseminação do formato ao vivo. Juntas, as faixas-bônus e os álbuns ao vivo significaram um ataque das majors ao antigo mercado dos bootlegs. Na fase de abundância de CDs e DVDs, séries oficiais extensas de artistas como Bob Dylan e Neil Young passaram a ressuscitar shows antigos que foram ou seriam alvos de bootlegs. A de Dylan, por sinal, se chamou The Bootleg Series, e foi lançada pela Sony.

Playlist com bootlegs oficiais de alguns citados no texto e preciosidades do Sessões Selo Sesc

A próxima revolução foi promovida pela internet, que neutralizou a necessidade de haver produtos físicos, desmaterializou a música e democratizou o acesso às canções e aos artistas. Primeiro foi uma nova modalidade de pirataria, o download, no qual cada consumidor se viu convocado a criar seus próprios bootlegs. Afinal veio a hoje vigente cultura do streaming, quando tudo parece deixar de ser pirata ou bootleg porque tudo está disponível oficialmente nas plataformas digitais tipo Deezer, Spotify e YouTube. “A pirataria física já não é mais problema. O mercado não tem mais escala para isso e não absorve tão mais esse formato”, diz Elaine Medeiros, da Warner.

Pena Schmidt dá sua definição para o admirável mundo novo: “Quase dá para ver que o modelo corrente é os fãs e seus celulares captando e espalhando a obra, de forma complementar ao registro oficial que circula no streaming e apesar do controle dos donos do repertório, que derrubam as lives e transmissões ‘piratas’, por pura burrice empedernida”. Ironicamente, hoje a pirataria parece sob controle, e até os saudosos bootlegs parecem mortos e enterrados. Mas foi embora junto de roldão a própria indústria fonográfica.

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