Marco Badin, fundador do Hangar, fala sobre o início e as mudanças desse espaço que acolheu a cenas punk e hardcore em São Paulo
Dago Donato atua no mercado independente desde o final dos anos 90, produzindo shows e festas. Uma delas é a célebre Peligro, que em cinco anos de história no início dos anos 2000 ajudou revelar uma série de nomes relevantes do atual cenário musical. De 2009 até 2016 foi sócio do Neu Club, casa fundamental na cena paulistana nos anos recentes. Desde 2016 é um dos sócios do Breve, casa de shows independentes no bairro da Pompeia.
Como proprietário de uma casa para shows independentes em São Paulo, o Breve, na Pompeia, recebi a missão de entrevistar os fundadores de três espaços fundamentais, cada um a seu modo e em seu momento, para a cena musical da cidade. Conversei com Wilson Souto Junior, do Lira Paulista, Marco Badin, do Hangar 110, e Mancha, da Casa do Mancha, para entender as motivações, as dificuldades, os processos, as alegrias e os perrengues de quem se aventura a abrir um espaço para música autoral. Encontrei três caras movidos antes de tudo pela paixão pela música. Todos tiveram que aprender a ser empresários na marra. E, na marra, deixaram sua marca no panorama cultural da cidade.
Marco Badin, o Alemão, do Hangar 110
Inaugurado no final de 1998 em um imóvel próximo à Estação Armênia do metrô, o Hangar 110 foi um espaço fundamental para o desenvolvimento das cenas punk e hardcore de São Paulo. Em seus 19 anos de história, recebeu incontáveis shows de bandas que iriam dominar as paradas roqueiras do início do milênio. Nomes como CPM22, Fresno e NxZero, por exemplo, podem ser considerados crias das casa. Após o encerramento oficial das atividades em dezembro de 2017, a casa renasceu com outro nome — The House -, e uma nova proposta. Marco Badin, o Alemão, segue no comando do espaço.
O que você fazia antes do Hangar?
No começo da década de 80 eu tive banda de punk rock. Lá por 82 a cena tava muito nervosa, eu dei um tempo e saí fora. Aí em 97 a gente começou a falar sobre música e o Fábio (Sampaio) do Olho Seco, que tinha uma loja na galeria, sugeriu “tem um monte de banda e continua sem lugar pra tocar”. Aí acendeu a luzinha. Fui pesquisar, fui em shows pra ver se tinha público, fui amadurecendo a ideia. Aí em outubro de 98 a gente abriu o Hangar. Mas até então eu trabalhava com outra coisa. Era sócio de uma gráfica.
Como foi esse processo de sair de algo que você fazia e se lançar nesse mundo de shows independentes?
A princípio foi o lance de montar um negócio como alternativa de trabalho mesmo. Nunca tive nada similar, nem bar, nem nada, então pra mim foi uma novidade.
Vocês escolheram um ponto bem distante de tudo. Não tinha nada acontecendo por lá.
Quando fomos procurar um lugar, queríamos que fosse próximo ao metrô e longe de residências. Não queríamos incomodar vizinho. Mas o primordial era que fosse perto do metrô. Pra dar 23:30 e o cara pegar o metrô pra casa. No começo, quando a gente veio ver o imóvel, rolou até uma resistência. Tentamos procurar na Barra Funda. Mas em 98 o mercado de locação tava em alta. Então a gente bateu o pé e falou “vai ser aqui mesmo, vamos pra cima”. E acho que no fim o diferencial foi esse ponto.
Rolou bem logo de cara?
Não, não. Demorou quase um ano. A gente já tava quase desistindo, já tinha colocado uma data X pra dar certo ou fechar o lugar. Como fiquei muito tempo fora, quase 17 anos, no começo muita gente não me conhecia. Era tipo “quem é esse cara? É um oportunista?”. Aí a Cherry do Okotô começou a trabalhar com a gente e ela tava mais na ativa. Ela foi conhecendo a gente e vendo que o negócio era sério, e começou a passar isso pras bandas. As pessoas começaram a ter mais segurança de fazer shows na casa. No final de 99 as coisas começaram a deslanchar.
Foi quando você percebeu que o negócio era viável?
Não, demorou mais. Até ali já percebi que dava pra focar mais lá. Em 99 fizemos uns quatro shows gringos e em 2000 que a coisa começou a fluir mais.
Como foi com a parte burocrática?
Foi tudo mesmo na porrada. A princípio tentei fazer tudo direito, contratei gente pra fazer, pra tirar os alvarás. O prédio na época tinha problemas de atualização da planta. Mas os caras que contratei foram muito morosos. Até que em 2008 tive uma intervenção da prefeitura. Então me liguei que os caras tavam empurrando com a barriga. Então tomei a frente e foi mais fácil. Quando você tem uma interdição, resolve se atualizar de tudo, ver o que tá fazendo errado. Dispensei aqueles caras, peguei alguém mais competente e aí a coisa fluiu.
Teve outras dificuldades?
Tem certas coisas que são difíceis. Por exemplo, meia entrada pra estudante. É um negócio que o governo estipula pro empresário pagar o ônus. A gente não tem incentivo nenhum pra música. Tentei várias vezes lei Rouanet, mas projeto barato não vira. Então a gente trabalha porque gosta, porque quer ver a coisa acontecer, mas o incentivo é zero pra quem trabalha com música e cultura. Nem quero ajuda do governo, mas podiam deixar de atrapalhar com essas leis idiotas.
Com o PSIU vocês tiveram problemas?
Tivemos no começo. A gente era inexperiente, mas depois fomos nos enquadrando. Até porque eu não era da noite, tive que aprender na porrada. Tomei muita porrada. Tomei uma multa do PSIU, entrei com um recurso, não rolou. No fim dava pra pagar um apartamento com a multa que paguei pro PSIU.
O que te levou a fechar o Hangar depois de 19 anos?
Foi a mudança de comportamento. A gente começou a perceber que o público de rock tava envelhecendo e que não tava tendo renovação nenhuma. Das banda também. Pouquíssimas bandas novas aparecendo com compromisso de, sei lá, se divertir mesmo. O compromisso era fazer sucesso. A gente sempre trabalhou com música autoral e a gente começou a ver essa mudança radical. E do público também. O cara começa a chegar nos trinta e poucos, começa a ter uma pá de responsabilidades. O cara que casa, o cara que começa a namorar a menina que é de outro rolê, o cara que tem filho e não tem com quem deixar. Tudo isso vai deixando as pessoas um pouco mais afastadas da cena. Aí tava difícil de manter. Então a gente parou e pensou que era melhor a gente cair de pé do que deitado. Até pra se manter na memória das pessoas que frequentaram esse lugar. Esse lugar que foi importante pra elas não pode ir degradando e acabar com essa memória. Então a gente resolveu botar uma data e encerrar mesmo. Fechar o ciclo.
Hoje a casa funciona com outro nome, The House.
Mudou tudo. A casa funciona com outro nome e outra proposta. Porque além de tudo isso que te falei, muitas bandas acabaram e muitas casas, por conta acho que da crise ou de um movimento musical forte, começaram também a contratar as bandas de rock. E eu, por ser um ponto de rock não consegui contratar outras bandas, fazer alguma coisa diferente. Porque tem aquele lance “não sei se eu vou lá porque é uma casa de punk rock”. Quem não conhece fica achando que tem facada na porta. Então eu tava limitado a bandas de rock enquanto outras casas podiam receber tudo. Precisava me enquadrar nesse esquema. A gente até tentou vender o espaço, passar pra frente, mas como tava muito taxado como punk rock a gente teve uma resistência pra vender o espaço. Aí as alternativas eram fechar e entregar o prédio, ou transforar o espaço numa coisa híbrida em que pode ser feito isso ou aquilo ou aquilo.
Teve um momento mais marcante na trajetória do Hangar?
Foram muitos, 19 anos é uma coisa muito longa. Mas um momento marcante que tá ainda na minha memória foi o último show do CPM 22 em que os caras nos fizeram uma homenagem de surpresa.
O Hangar foi uma plataforma para as cenas do hardcore melódico e do emo. Como você viu isso?
Foi um lance muito natural. A gente não criou o espaço pra ser um pico isso ou aquilo. As coisas foram acontecendo. Fazíamos punk rock e hardcore melódico. Aí apareceu uma banda legal do sul, que era o Fresno. Pô, vamos fazer. Ainda era muito atrelado ao melódico, mas o melódico sempre foi meio emo, né? (risos). Aí acabou virando uma modinha. Por um lado foi muito bom pras bandas, muitas acabaram assinando com gravadoras. Mas nenhuma dessas bandas estourava no primeiro dia. NxZero abriu pra um monte de banda, era a primeira banda a tocar na noite. Depois foi crescendo. Foi uma coisa gradativa. Quando chegou no ápice, essas bandas já tinham tocado muito aqui.
Você acha que a casa teve um reconhecimento de sua importância pelas bandas e pela cena?
Acho que sim. Acredito nisso. As pessoas vinham, assistiam à banda, compravam um CD, compravam a camiseta da banda, a banda saía com uma grana, isso ajudava as bandas gravar com mais qualidade. Foi um ciclo que ajudou muita banda a se consolidar, a fazer um trabalho melhor. Então acho que a gente teve uma importância dentro da cena sim. Não sei como seria pra essas bandas se não existisse o Hangar, mas teria sido muito mais difícil. Até tem bandas que nem iam existir porque teve gente que montou banda só pra tocar aqui. O Cueio Limão, por exemplo, eram uns moleques que frequentavam o Hangar e se juntaram só pra tocar aqui.
O que você diria pra alguém que te dissesse que iria abrir um espaço para shows independentes?
Essa é difícil. Acho que o cara tem que gostar muito, estudar muito o que ele vai fazer. Porque não é só montar e pronto. Tem que ter uma grana pra se manter durante um tempo. Todo negócio demora pra engrenar, ainda mais na crise que a gente tá.
Leia a entrevista com Wilson Souto Jr., fundador do Lira Paulistana, e a entrevista com Danilo Leonel, o “Mancha” da Casa do Mancha
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