Um dos principais espaços de música autoral da cidade, seus doze anos e mais de dois mil shows
Dago Donato atua no mercado independente desde o final dos anos 90, produzindo shows e festas. Uma delas é a célebre Peligro, que em cinco anos de história no início dos anos 2000 ajudou revelar uma série de nomes relevantes do atual cenário musical. De 2009 até 2016 foi sócio do Neu Club, casa fundamental na cena paulistana nos anos recentes. Desde 2016 é um dos sócios do Breve, casa de shows independentes no bairro da Pompeia.
Como proprietário de uma casa para shows independentes em São Paulo, o Breve, na Pompeia, recebi a missão de entrevistar os fundadores de três espaços fundamentais, cada um a seu modo e em seu momento, para a cena musical da cidade. Conversei com Wilson Souto Junior, do Lira Paulista, Marco Badin, do Hangar 110, e Mancha, da Casa do Mancha, para entender as motivações, as dificuldades, os processos, as alegrias e os perrengues de quem se aventura a abrir um espaço para música autoral. Encontrei três caras movidos antes de tudo pela paixão pela música. Todos tiveram que aprender a ser empresários na marra. E, na marra, deixaram sua marca no panorama cultural da cidade.
Danilo Leonel, o “Mancha”
Em 2007, Danilo Leonel, mais conhecido como Mancha, decidiu abrir a casa onde morava numa pequena rua da Vila Madalena para um show não imaginou que o local viraria uma dos principais espaços de música autoral da cidade. Doze anos e mais de dois mil shows depois, ele já não mora mais lá, mas a casa segue levando artistas nacionais e internacionais, iniciantes e veteranos, do indie rock até a nova música brasileira para se apresentarem na pequena sala de estar para um público invariavelmente interessado em novidades sonoras.
Antes de mais nada, conta como começou a Casinha.
Eu mudei praquela casa no começo de 2007, recebendo amigos informalmente. No final de 2007 eu fiz a primeira festa com banda, com flyer divulgado. Então considero que o começo da Casa do Mancha foi em 22 de setembro de 2007.
Mas você já morava lá e já fazia festas?
Sim. A casa pra mim começa nesse dia, que foi o último show do Polara. O pré-22 de setembro foi: eu vim pra São Paulo em 2001 por conta da minha filha, que morava com a mãe aqui. Vim também pra estudar e trabalhar. Sempre tocando em banda, produzindo, fazendo festas. Em 2006 me dei conta que não dava mais pra morar em apartamento por conta de todo o equipamento que tinha lá pra ensaio e produção: bateria, amplificador, mesa de som, etc. Fui praquela casa, num primeiro momento, pra montar um home estúdio e gravar coisas dos amigos, pra ter mais liberdade com meu hobby de fazer música. Nunca tinha planejado ir pra uma casa e transforma-la num lugar de shows. Nessa época, o Rafael Crespo e o Fernando Seixlack estavam desmontando seus estúdios e acabaram deixando as paradas lá. Começamos a trabalhar junto então, fazendo trilhas, gravando discos. Com isso, começou um movimento de pessoas indo pra lá pra gravar, ver o que a gente tava fazendo. Por ser na Vila Madalena, que naquela época ainda era um lugar legal, acabou virando um ponto de encontro. Isso me fez perceber que o que estávamos fazendo não era só um espaço pra costurarmos nossas ideias, existia uma demanda de mais pessoas irem à casa, gravarem, ver o que estávamos fazendo. Nisso, o Tomaz Afs, um amigo meu, me disse “se você não organizar isso aqui você vai enlouquecer. Todo fim de semana tem 50 pessoas na sua casa”. Ele me botou essa pilha de organizar. Aí a (artista plástica) Pacolli decidiu fazer sua feirinha Bendgy lá e botamos o Polara pra tocar.
Nesse momento você já pensou que isso poderia se tornar um negócio viável?
Imagina! Quando a gente fez essa festa com o Polara foi uma galera, foi super legal, deu muito certo. Eu lembro de ter pensado “talvez a gente consiga fazer uma dessas a cada três meses”. Foi um começo completamente despretensioso. Foi um processo gradual. No meio de 2009 já estávamos fazendo uma festa por semana. Hoje fazemos até 20 bandas por mês.
Como foi aprender a ser empresário da noite?
A utilização do espaço com música nasceu de um home studio. A preocupação maior que eu tinha no começo era ter um equipamento legal pra poder fazer um som de banda. Quando cheguei em São Paulo e comecei a ver shows, a maioria dos locais não tinha um backline minimamente descente. Se você chegasse num lugar e visse um amplificador Fender, ficava muito feliz. Normalmente a parada era meio bagaceira. Me dei conta eu conseguiria fazer um som melhor no meu espaço do que nos outros lugares que tinham shows de banda independentes na cidade. Pensei que o principal ponto de profissionalização que eu precisava pra fazer a parada girar era ter um bom som. O principal foi entender que, apesar de trabalhar num ponto de intersecção entre a arte e o entretenimento, a raiz da parada é artística. Foi o divisor de águas na minha cabeça pra perceber que aquilo poderia ser um negócio se seu olhasse pra esse lado da profissionalização.
Muitas das casas alternativas não nascem como um negócio, nascem como um ideal.
O pessoal do rap fala “não sou eu que escolho o rap, é o rap que me escolhe”. Acho que é a mesma coisa. É um carma, uma paixão. Você percebe que não tem ninguém cumprindo essa lacuna, você se dá conta de que talvez você consiga fazer isso minimamente direito, de forma honesta com todos envolvidos e decide “vamos fazer”. Não sei quanto tempo vai durar, não sei se vai dar certo, não sei nem o que é dar certo. Dar certo é ganhar grana? Ser reconhecido? É os artistas quererem participar do que você está fazendo? É o público querer participar? É muito no escuro. Você vai pela paixão, seguindo um ideal, rezando pra não se foder muito.
Falando nisso, como faz pra conta fechar?
Tenho um espaço pra 100 pessoas. Seria extremamente ousado começar um espaço pra 500 pessoas. Eu não saberia nem o que dizer pra alguém que fosse abrir um espaço desse tamanho não ficar fechando no vermelho. Num lugar pequeno, você tem que entender o teto de giro de dinheiro e saber que você dificilmente vai girar mais do que aquilo. Aí tem que aprender a se estruturar dentro daquele universo financeiro. Não adianta achar que vai fazer mais grana porque você não vai. Então tem que adequar seus custos. E sempre oscila, muitos meses você fecha no vermelho, outros você fecha no azul. Então o primeiro ponto é entender sua dimensão, e o segundo é ser muito rigoroso nas planilhas, na administração do que você faz. Demorei uns quatro anos dando nó em pingo d’água pra perceber que é preciso botar na planilha absolutamente tudo, todas as cervejas que entram e saem da casa, todo quilo de açúcar, todo suco. Então o segredo é planilhar a paixão.
Como é pra Casa do Mancha existir em São Paulo, uma cidade em que o poder público não é muito amigo de empreendimentos noturnos?
É super paradoxal. Porque não acredito que conseguiríamos fazer o que fizemos em nenhuma outra cidade do país. Pelo fato de ser uma cidade de 20 milhões de habitantes e pelo constante fluxo de ideias mais diversas, São Paulo dá a possibilidade de você meter o louco e se aventurar numa parada que nem você sabe direito o que é. Esse é o lado legal de estar em São Paulo. Mas ao mesmo tempo o governo não prioriza manifestações culturais e artísticas. Percebendo que vivemos em uma cidade e num estado que não são muito amigáveis pra nossa atividade, nossa tática sempre foi estar abaixo do radar. Se eu chamasse mais atenção, fatalmente estaria sob os olhos dos que não concordam com o que a gente faz. A casa nunca teve uma fachada. Não temos a necessidade de estar o tempo todo na mídia. Não movimentamos uma quantidade muito grande de pessoas num mesmo momento, movimentamos poucas pessoas em muitos momentos, o que incomoda menos. Tudo isso contribui para estarmos fora do radar.
Olhando para os empecilhos mais comuns pra quem tem um espaço como o seu, como é lidar com ECAD, fiscalização, PSIU?
Nossa! Todos eles têm pontos muito falhos. O ECAD, a gente pode dividir em duas linhas de pensamento. Se eu for para um lado de que não existe propriedade intelectual e sim um grande conglomerado de ideias no universo, eu falaria foda-se o ECAD. Mas não vamos pra esse lado. Pensando que o ECAD tem que existir, o problema é que ele existe de uma forma muito errada.
Faz sentido cobrarem de uma banda pra tocar as próprias músicas?
Exato, isso não faz o menor sentido. E outra, não faz sentido você cobrar de um artista que não tem um volume quantitativo pra receber de volta esse repasse do ECAD. Ele não olha pro mercado da música como um todo, ele olha pro mercado da música quando ele atinge grandes fatias do mercado. E sustenta as grandes fatias com o todo. A grana de ECAD paga pelas casas de shows independentes acaba não voltando pras bandas que tocaram lá. Falta um mapeamento de quais estabelecimentos trabalham com quais recortes musicais. Eu iria me sentir mais confortável se soubesse que as bandas que tocaram na minha casa efetivamente receberam do ECAD por ter tocado lá. Não sou contra a existência do ECAD, só acho que é muito mal estruturado. O PSIU pra mim é problema muito pior. Acho completamente desonesto. Se você tá construindo um prédio você pode fazer o barulho que for, se você tá fazendo um show não pode.
E se você constrói um prédio do lado de uma casa de show que já existe…
A casa de show tem que ir embora. Se não me engano o nível de ruído permitido é de 50 decibéis e um carro ligado faz 50 decibéis. Eles medem o barulho a partir da rua, sendo que o barulho da rua também é contado como seu. Eles não levam em consideração que o que você está fazendo não é exatamente barulho, é música. Você não pode tratar uma banda tocando com um cara buzinando no carro. Não consigo entender como o PSIU não é questionado de maneira mais incisiva. Os parâmetros são completamente absurdos. Já recebi uma vez uma multa do PSIU que está na justiça. O valor é absurdo. É como tomar uma multa de carro que custa mais que o próprio carro. E não existe orientação. Não vai ninguém lá te orientar, é completamente arbitrário, não há o objetivo de que você se adeque. Eles chegam com o decibelímetro e aplicam a multa de R$43 mil. E essa é a mesma multa que um lugar como, por exemplo, o Via Funchal vai levar. Não tem proporcionalidade. Não tem cabimento você dar a mesma multa pra um estabelecimento de 100 pessoas e um de 5 mil.
E a parte de fiscalização?
Nunca bateu na minha porta, acho que justamente pra eu me colocar abaixo do radar, não causar estrago. Funcionamos mais cedo pra não incomodar. Nossos shows não são pra galera ficar loucona bêbada. Foi uma coisa muito boa pra eu descobrir que se eu não incomodar ninguém, ninguém me incomoda.
Lembro que quando fomos abrir o Neu, minha antiga casa, fomos à subprefeitura e a orientação que tivemos foi “abre e não incomoda ninguém porque o alvará vai demorar”.
Acho que é tudo fruto de uma parada completamente obsoleta. Todas regulamentações imobiliárias, de licenças, do PSIU, do ECAD, são extremamente obsoletas. Vocês que todos os parâmetros do mercado ligado à música estão sendo repensados, mas a regulamentação não está.
O fechamento das pequenas casas de show é uma tendência mundial. Tem cidades como Londres que estão preocupadas com isso, criando a figura do prefeito da noite e tudo mais. E aqui?
Lembro que uns anos atrás houve um projeto chamado São Paulo Cidade da Música. A ideia era fazer um levantamento do quanto que a noite de São Paulo movimenta público, em grana, não sei o que, e comprovar que essa era um mercado importante para a cidade, para que existisse um olha diferenciado pra quem produz música na cidade de São Paulo, principalmente no período noturno. Era uma parada que tinha a ideia de dialogar com o poder público dentro do sistema deles. Eu lembro claramente de ir numa reunião de apresentação do projeto e você falava “e o PSIU, vamos falar sobre isso”, e eles “melhor não mexer nisso, é muito difícil”. Pô, como você quer chamar São Paulo Cidade da Música se você não pode fazer mais de 50 decibéis de volume? Então é isso, quando existe algum movimento pra dialogar com o poder público ele é quase que ingênuo.
Melhor maneira de ajuda é não atrapalhar.
Esse é o grande ponto. A casa nunca participou de nenhum edital, nenhuma lei de incentivo. Tudo que fizemos em doze anos foi na tora. Tudo o que tô pedindo é pra me deixarem trabalhar em paz. Tô movimentando cultura nessa cidade há doze anos. Você movimenta em mais de uma década mais de 3 mil artistas e é como se você fosse quase que um fora da lei.
Como é a relação da casa com as bandas no aspecto prático da coisa?
Nesse momento já me considero privilegiado porque todo mundo, ou pelo menos 90% dos artistas do meio independente, já ouviu falar de nós. Então fica mais fácil esse contato. Pesquiso música o tempo inteiro e quando marco um show o diálogo é sempre “somos uma casa pequena, mas tudo aqui é feito com muito carinho, muito bem feito. É uma casa pra 100 pessoas, nunca vai ser o mesmo cachê que um lugar maior paga”. Tento ser honesto nesse sentido. Eu insisto para que as bandas conheçam a casa antes de fazer show lá. Como somos um lugar pequeno, temos poucos funcionários, todo mundo é muito amigo, a banda acaba se sentindo em casa. A única regra da casa é que todos os shows são autorais. Não fazemos banda cover.
Fala um momento marcante da trajetória da casinha.
Cara, isso é um grande problema porque minha memória é bem horrível. Mas tivemos alguns momentos emblemáticos, um deles você presenciou. Foi quando o Kyp Malone (guitarrista do TV on the Radio) apareceu pra tocar. Todo mundo era muito fã dele. A gente falou “não vamos ficar tietando. A gente paga um pau pra ele, mas isso é um trabalho. Assim como ele vai tocar, a gente bota a cerveja pra gelar”. E ele é um doce de pessoa. Ele cumprimentou todo mundo, dissemos pra ele ficar à vontade e seguimos nosso trabalho. Aí eu lembro muito, essa cena ficou muito gravada na minha cabeça: na hora que ele ligou a guitarra e meteu um acorde na primeira música pra fazer um soundcheck, todo mundo parou o que estava fazendo e um olhou pra cara do outro, arrepiados. “Caralho, é igualzinho no CD, esse cara tá fazendo isso aqui e só tem nós cinco”. Foi impressionante. Missão cumprida. Um cara que admiro muito veio aqui fazer um som e foi tão incrível quanto a gente achou que ia ser.
Leia a entrevista com Wilson Souto Jr., fundador do Lira Paulistana, e a entrevista com Marco Badin, fundador do Hangar 110
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