Jafar Panahi e a persistência em filmar o impedimento
03/12/2025
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Sob a sombra de uma recente condenação à prisão, mais uma em sua trajetória marcada por acusações políticas do governo do Irã, Foi Apenas Um Acidente, novo longa de Jafar Panahi estreia nos cinemas brasileiros. O filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2025, conta a história de um homem que se depara com aquele que acredita que foi seu torturador. Tendo apenas o som incomum de sua perna mecânica como identificador, ele entra em contato com outras vítimas desse homem e os dilemas e dúvidas se instalam no grupo, sobre sua identidade e o que fazer com o suposto algoz.
O diretor Jafar Panahi (Mianeh, Irã, 1960) é um dos mais influentes e emblemáticos do cinema contemporâneo, cuja obra atravessa quase três décadas de transformações políticas, estéticas e pessoais. Criado em uma família modesta na província do Azerbaijão Oriental, Panahi demonstrou desde cedo interesse pela observação do cotidiano e pelas possibilidades narrativas das imagens em movimento. Após cumprir serviço militar, ingressou na Escola Avançada de Treinamento Técnico em TV e Cinema do Centro de Radiodifusão do Irã, em Teerã, onde consolidou sua formação e mergulhou no universo cinematográfico iraniano. No início da carreira trabalhou como montador e como assistente de Abbas Kiarostami — colaboração que seria fundamental para sua atenção às nuances humanas.
O Espelho. Foto: Divulgação
Sua estreia em longa-metragem, O Balão Branco(1995), projetou-o instantaneamente no cenário internacional ao conquistar a Câmera de Ouro no Festival de Cannes. O filme, protagonizado por uma menina em busca de um simples balão, inaugurou a marca central de sua obra: a capacidade de extrair de situações aparentemente banais uma profunda reflexão sobre a sociedade iraniana. Seguiram-se títulos como O Espelho (1997) e O Círculo (2000), vencedor do Leão de Ouro em Veneza e proibido no Irã por retratar criticamente a realidade das mulheres sob o sistema jurídico e social iraniano. Ouro Carmin(2003) e Fora do Jogo (2006) reforçaram suas características com um cinema social direto e humanista. O Balão Branco, O Espelho, O Círculo e Ouro Carmin estarão em exibição essa semana, os três últimos em película 35mm, acompanhando o lançamento de Foi Apenas Um Acidente, no CineSesc.
A partir de 2010, a trajetória do cineasta foi abruptamente marcada pela repressão. Preso sob acusações políticas, Panahi recebeu sentença que o proibiu por 20 anos de filmar, roteirizar ou conceder entrevistas, além de enfrentar vigilância constante e períodos de confinamento. Em vez de silenciar, ele transformou a restrição em combustível artístico: sua fase clandestina inaugurou um dos capítulos mais notáveis de sua história. Isto Não é um Filme (2011), realizado durante prisão domiciliar e distribuído internacionalmente de forma clandestina, revelou ao mundo a intimidade de seu confinamento e a tensão entre criação e proibição. Cortina Fechada (2013) e Taxi Teerã (2015) aprofundaram essa vertente que incorpora a figura do próprio cineasta e o ato de filmar como resistência política; Taxi Teerã recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim.
“Quando pessoas como eu fazem essas coisas, nós sabemos em qual posição estamos. Nós somos reconhecidos mundialmente e então (as autoridades) não conseguem nos pressionar muito. Se alguma coisa acontece conosco, vira notícia no mundo inteiro, mesmo aqui (no Irã). Nós temos que nos arriscar pressionando esses limites por aqueles jovens que estão apenas começando. Aqueles que estão fazendo seus primeiros filmes são forçados a fazer o que mandam; eles permitem que os censores mutilem seus filmes. Se nós não desafiarmos os censores, as condições serão piores para os jovens cineastas. Isso significa que este cinema não poderia continuar; ele seria suprimido e terminaria com as poucas pessoas que fazem filmes agora. O cinema só pode sobreviver com novos cineastas que fazem novos filmes. Se nós não resistirmos, o caminho será bloqueado para estes novos cineastas e consequentemente, na visão das novas gerações, nós teremos sido os responsáveis. Não há outra saída.”
Citação de Jafar Panahi no livro “A política do cinema Iraniano – Filme e sociedade na República Islâmica” de Saeed Zeydabadi-Nejar
Mesmo sob risco constante, Panahi continuou a trabalhar e circular sua obra. 3 Faces (2018), premiado em Cannes, refletiu sobre gerações de artistas iranianas, enquanto Sem Ursos (2022), realizado durante novo período de perseguição e prisão, confrontou diretamente mecanismos de opressão, vigilância e manipulação estatal. Em 2025, consolidando um percurso de coragem e consistência estética, Panahi conquistou a Palma de Ouro em Cannes com Foi Apenas Um Acidente obra que dialoga com thriller, crítica social e autorreflexão.
“Meus filmes são sempre inspirados pelo ambiente no qual eu me encontro. Eu não tinha ido para a prisão anteriormente, meu ambiente era apenas a sociedade iraniana. O que eu podia ver, observar, inspiraram meus filmes – a vida cotidiana de pessoas perfeitamente normais. Mas uma vez que você é preso, inevitavelmente você será influenciado e impactado pelas suas experiências ali e o que você vê. Eu não sei se me referiria a isso como violência, entretanto. Não-violência também pode ser encontrada na violência. Ao longo do filme, um dos temas recorrentes é evitar a violência e isso é diretamente mencionado por vários personagens. Neste filme, mostramos diversos grupos, diversas formas de reagir ao que está acontecendo, como em qualquer sociedade hoje. Na sociedade iraniana atual, você tem todos os tipos de diferentes grupos, pessoas muito radicais e pessoas muito simples. Talvez você leia violência nisso, mas todos podem interpretar as coisas à sua própria maneira. As pessoas, sem dúvidas, percebem o filme diferentemente e vão interpretar as coisas de uma forma diferente como resultado.”
Fala de Panahi após premiação em Cannes (IMDB)
Foi Apenas Um Acidente. Foto: Divulgação
Ao longo de sua carreira, Jafar Panahi transformou-se não apenas em um dos cineastas mais premiados de sua geração, mas também em símbolo da luta pela liberdade artística. Sua obra, alicerçada no neorrealismo iraniano e na investigação das estruturas sociais, expõe contradições, injustiças e desejos de indivíduos ordinários em situações extraordinárias. Panahi construiu um cinema político que dispensa slogans — preferindo silêncios, gestos e tensões que emergem do próprio tecido social.
Hoje, sua filmografia é estudada em universidades, celebrada nos maiores festivais do mundo e admirada por cineastas, críticos e espectadores que reconhecem em sua obra uma expressão potente da união entre arte e testemunho. Mesmo diante da censura e da perseguição, Panahi permanece como uma voz lúcida e incansável — um artista cuja coragem se tornou inseparável de seu legado cinematográfico.
Para conferir os filmes do diretor em cartaz no CineSesc, clique aqui.
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