por Magda Pucci
No coração de São Paulo, entre ruas que contam histórias de trabalho, resistência e deslocamentos, o bairro do Bom Retiro se configura como um território de encontros. Nele convivem línguas diversas, temperos de múltiplas procedências e, sobretudo, sons — vozes, cantos, instrumentos e ritmos que revelam trajetórias de migração, refúgio, de exílio, mas também de reinvenção. É nesse cenário que nasce o projeto Sons do Mundo, uma celebração das musicalidades do mundo presentes no Brasil contemporâneo.
São Paulo é uma cidade marcada pela diversidade cultural, mas também por desigualdades profundas. Desde os tempos em que diversas comunidades indígenas habitavam essas terras, ao lado de diversos rios hoje encobertos pelo concreto, passando pela significativa presença de pessoas de diferentes países da África e imigrantes de toda parte do mundo, a cidade é um microcosmo das lutas e conquistas de muitos. No bairro do Bom Retiro essa pluralidade se manifesta de forma singular, refletindo as histórias de resistência de grupos marginalizados. Tradicional reduto de imigrantes — judeus da Europa Oriental e Central, italianos, sírios, libaneses, bolivianos, peruanos, coreanos, chineses, haitianos, entre tantos outros —, o bairro se tornou uma espécie de microcosmo das diásporas globais que, ao se estabelecerem aqui, não apenas buscaram abrigo, mas também desafiaram as estruturas de opressão e exclusão. E nesse processo, muitas vezes doloroso, trouxeram não apenas modos de vida, mas também patrimônios sonoros ancestrais e novas expressões artísticas importantes.
O projeto Sons do Mundo propõe uma escuta atenta a essas múltiplas vozes. Reunindo artistas do Brasil e de fora do país, migrantes, descendentes de imigrantes e artistas em situação de refúgio, a programação busca evidenciar a potência criativa de quem carrega no corpo e na memória canções e expressões sonoras únicas.
A escolha do Bom Retiro como palco deste encontro é repleta de simbolismos. Em meio a transformações urbanas e pressões econômicas, o bairro resiste como espaço de convivência e reinvenção cultural. As apresentações que compõem esta edição do projeto incluem países como Moçambique, Argentina, China, Bulgária, Síria, Palestina, Tunísia, Angola, Guiné-Bissau, Índia, Japão, República Democrática do Congo, Cabo-Verde, Macedônia, Uruguai, Sérvia, Turquia, Líbano, Espanha, Grécia, Cuba, Venezuela, França, Ucrania, África do Sul, Peru e Brasil — são testemunhos da vitalidade de culturas que, em sua luta pela preservação, nos mostram que a resistência é uma forma de arte.
Mais do que um festival multicultural, este é um projeto de escuta. Uma escuta que reconhece os atravessamentos históricos e afetivos que moldam as paisagens sonoras do país. E que, ao trazer à tona vozes muitas vezes silenciadas, nos convida a refletir sobre os modos de habitar o Brasil contemporâneo — um país que, apesar de suas feridas coloniais, segue sendo espaço de enraizamento e criação para povos do mundo inteiro.
Neste tempo em que o deslocamento marca tantas vidas, a música nos oferece pontes entre culturas e um instrumento de resistência. Que este festival seja um convite à travessia — sensível, ética e coletiva — pelos cantos do mundo que reverberam aqui, agora, entre nós.
Magda Pucci
Artista e pesquisadora, Magda Pucci é uma verdadeira viajante sonora. Com uma formação que abrange regência, antropologia e pesquisa artística, sua obra se desdobra em múltiplas direções: dos cantos indígenas aos festivais de música do mundo, das trilhas teatrais às jornadas de educação musical.
Fundadora do MAWACA, um grupo que recria músicas tradicionais de diversas culturas desde 1995, Magda já levou sua música de lugares como a China à Amazônia, colaborando com artistas de culturas tão variadas quanto o Curdistão, Japão, Espanha, Israel, Turquia, Ucrânia, Venezuela e Galícia. Suas composições, arranjos e direções musicais — como “Fragmentos Troianos” (Antunes Filho) e a Orquestra Mediterrânea — revelam um olhar que entrelaça pesquisa e prática musical.
Autora de vários livros de educação musical e literatura, com destaque para o projeto “Cantos da Floresta”, sua pesquisa mergulha nas vozes dos Paiter Surui, Ikolen-Gavião, Guarani Mbyá, Krenak, Kambeba e outros povos, transformando conhecimento em arte e ativismo. Curadora de festivais e produtora do programa de rádio “Planeta Som”, Magda está conectada a instituições de etnomusicologia e antropologia, tecendo paisagens sonoras onde diferentes mundos se encontram e se celebram.
–> Programação completa
–> Clique aqui e saiba mais na matéria completa
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.