Por Cida Bento*
É uma honra escrever sobre envelhecimento no contexto de uma organização como o Sesc que, desde a década de 1960, vem reconhecendo a importância desse tema muito antes de termos políticas públicas consolidadas, direitos assegurados ou o bem-estar como pauta central. O Sesc tem sido, ao longo de mais de seis décadas, uma instituição que incide na construção de uma sociedade que valoriza todas as etapas da vida.
Falar de envelhecimento é falar de desafios. Como disse Vinicius de Moraes, “a gente mal nasce começa a morrer porque não há nada sem separação, sei lá, a vida é uma grande ilusão, só sei que preciso é de paixão.” Envelhecer é atravessar as diferentes fases da vida, com suas mudanças e permanências — um fio contínuo que nos acompanha. Mas esse processo se dá de formas muito distintas, especialmente quando olhamos para a população negra.
A experiência do envelhecer no Brasil carrega a marca da desigualdade. A população negra, majoritariamente usuária do SUS, tem menos acesso à saúde privada e sofre os impactos da precarização desse sistema público. Isso significa, na prática, menos acesso a cuidados físicos e emocionais ao longo da vida, o que compromete profundamente a qualidade do envelhecimento. A expectativa de vida da população negra sempre foi menor do que a da população branca — e esse dado, por si só, já denuncia um envelhecimento desigual. Morremos mais e mais cedo.
Como destaca Ana Paula Procópio da Silva, da Faculdade de Serviço Social da UERJ, enquanto 55,6% da população brasileira se declara preta ou parda, apenas 48% das pessoas com mais de 64 anos são negras. “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco”, afirma ela. Essa é uma das expressões mais cruas do racismo estrutural: o direito de envelhecer com dignidade não é igualmente assegurado.
Os dados do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA) reforçam essa realidade. Entre 2012 e 2023, o percentual de pessoas negras em situação de extrema pobreza cresceu de 70,5% para 73,5%. Mais de 60% vivem com até um salário-mínimo. E, em sua maioria, são mulheres negras que sustentam os lares, muitas vezes por meio do trabalho doméstico, ainda hoje subvalorizado e desprotegido. Esses fatores, somados ao racismo institucional, ao machismo e à violência do Estado — como expressa a letalidade policial — revelam que parte da população brasileira vive em cidades onde não é reconhecida como cidadã de pleno direito. Envelhecer, para muitas dessas pessoas, é um privilégio negado.
Mas há também outros saberes, outros fios que atravessam esse processo. Entre as heranças culturais da população negra há muito a ser aprendido. A tradição africana, por exemplo, valoriza a oralidade e o papel das pessoas mais velhas como detentores de sabedoria e memória coletiva. O provérbio africano que diz “quando um idoso morre, é como se uma biblioteca fosse queimada” expressa a potência desse lugar de transmissão intergeracional.
Nas sociedades africanas tradicionais, o idoso é o griô: o contador de histórias, aquele que guarda e compartilha os saberes da comunidade, não apenas como indivíduo, mas como representante de um coletivo. Mesmo em contextos marcados por adversidades, como em partes da África subsaariana — com baixa cobertura de saúde e altos índices de pobreza — essas sociedades nos ensinam a importância de reconhecer no envelhecimento um espaço de sabedoria, de pertencimento e de continuidade cultural.
*Cida Bento é Doutora em psicologia e, em 2022, defendeu a tese intitulada “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. É conselheira e cofundadora do CEERT. Foi professora visitante na Universidade do Texas e, em 2015, foi eleita pela revista britânica The Economist uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade. É colunista da Folha de S. Paulo e, em março de 2022, lançou, pela Cia das Letras, “O Pacto da Branquitude”. Cida Bento é uma das principais intelectuais em atividade no Brasil e foi responsável por difundir o termo “branquitude” por meio de suas pesquisas e atuações profissionais.
Este texto faz parte da Campanha de Conscientização da Violência contra Pessoa Idosa, realizada de 14 a 17 de junho de 2025 pelo Sesc São Paulo, com o tema “Envelhecer como direito para todas as pessoas”. Saiba mais em: sescsp.org.br/contraviolencia
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