Entre aproximações e distanciamentos, quais são as relações históricas entre a música de Brasil e Paraguai? Por Geni Rosa Duarte
Geni Rosa Duarte é doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Autora de artigos sobre música sertaneja e música latino-americana, entre outros temas. Co-organizadora dos seguintes livros: Estado, poder e práticas sociais (2006); História, Práticas Culturais e Identidades: abordagens e perspectivas teórico-metodológicas (2008); Práticas socioculturais como fazer histórico: abordagens e desafios teórico-metodológicos. (2009), Desplazamientos en Argentina y Brasil: aproximaciones desde la historia oral (2011), entre outros.
Afirma-se muitas vezes que o Brasil vive de costas para a América Latina. Seria verdade? E do ponto de vista musical, será que temos sido sempre distantes dos nossos hermanos?
Talvez a diferença linguística tenha se tornado um empecilho para diálogos mais frequentes, mas isso não impede, por exemplo, que a música brasileira esteja presente no mercado musical dos nossos vizinhos — e vice-versa. Naturalmente isso não implica que nos influenciemos sempre uns aos outros num grau significativo. Mas dada a extensão territorial do nosso país, nem sempre todas as regiões brasileiras estabelecem contato com todos os países latino-americanos, com que se limitam, e de maneira uniforme. Há influências regionais a partir da proximidade de uma região com um ou outro país, mesmo porque a nossa música popular também é extremamente diversificada, e continuamente está sofrendo reelaborações e mudanças.
Na nossa história musical, muito especialmente no processo de formação da chamada música sertaneja, desde os anos 19201, músicos e radialistas como Raul Torres, por exemplo, voltaram-se para as raízes rurais misturando as chamadas toadas ou canções sertanejas dos anos iniciais do século, evocando uma época de ouro de paz e serenidade, às emboladas nordestinas, e depois investindo no “filão caipira” trazido pelas gravações pioneiras de Cornélio Pires. Com a abertura da radiofonia para os intérpretes “caipiras”, muito especialmente os trazidos por Pires, como Mariano e Caçula, Sorocabinha e outros, foi se constituindo uma música sertaneja heterogênea, embora ainda fincada no chão paulista2. Nas décadas seguintes foram sendo incorporadas sonoridades as mais variadas, desde a introdução da sanfona ou acordeom, de instrumentos de sopro e de cordas, da harpa paraguaia, — mais tarde também guitarras e teclados — e processando-se a hibridização com gêneros musicais os mais diversificados, fruto de contatos com diferentes regiões brasileiras e com outros países principalmente da América Latina, muito especialmente o México, a Argentina e o Paraguai.
De qualquer modo, um dos diálogos mais profícuos foi feito com o Paraguai. Essa nossa aproximação com o país vizinho se deu de forma mais continuada ao redor dos anos 1930–1940, quando a atividade radiofônica em São Paulo se fortaleceu e se expandiu. Músicos e compositores ligados à música sertaneja foram influenciados ou por viagens feitas especialmente para conhecer o que se produzia no país vizinho, ou por contatos em excursões pelas regiões interioranas e fronteiriças. Foi o que fizeram Raul Torres, Nho Pai, Capitão Furtado, Mário Zan, entre outros.
‘[…] o contato com a música paraguaia iria mais além. A região fronteiriça com o Paraguai até as primeiras décadas do século XX era extremamente permeável, sendo “ora indígena, ora paraguaia e argentina, ora brasileira, dependendo das circunstâncias históricas que emergiram num dado momento, e de quem se propunha a narrá-la’
Enquanto o tango argentino e os boleros e corridos mexicanos faziam-se conhecidos também através das produções cinematográficas que aqui chegavam, a música paraguaia dependia das apresentações ao vivo de conjuntos e orquestras — caso do Conjunto Folklórico Guarani dirigido por Julián Rejala, que aqui se apresentou por volta de 1940 e posteriormente realizou gravações no nosso país. Também a instabilidade política do Paraguai nos anos posteriores à Guerra do Chaco, e muito especialmente após a subida ao poder de Alfredo Stroessner, levou muitos dos compositores e músicos ao exílio — caso, por exemplo, de Teodoro S. Mongelós, que viveu e morreu no Brasil. Outros encontraram fora do Paraguai condições de trabalho — caso, então, do compositor Herminio Gimenez, que viveu por muitos anos também no Rio de Janeiro, desenvolvendo aí diferentes trabalhos como regente e compositor. Outros músicos e conjuntos também excursionaram e alguns se fixaram definitivamente em nosso país, como o harpista Luís Bordón3.
O Brasil também propiciou desde a década de 1930 gravações de produções paraguaias. O musicólogo Evandro Higa, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, identificou duas composições paraguaias gravadas no Brasil entre 1935 e 1936 (das quais não foram preservados fonogramas): a guarânia Al Paraguay (Agustin Cáceres/Santiago Parissi), e a polca La canción del arriero (Agustin Cáceres/D.G.Serrato /Torres), ambas gravadas por Agustin Cáceres. Além disso, apontou a existência de um total de vinte e quatro fonogramas de gravações de Agustin Cáceres e de Amado Smendel4, pelas gravadoras Victor, Odeon, Star, Copacabana e Todamérica, até 19575.
Todavia, o contato com a música paraguaia iria mais além. A região fronteiriça com o Paraguai até as primeiras décadas do século XX era extremamente permeável, sendo “ora indígena, ora paraguaia e argentina, ora brasileira, dependendo das circunstâncias históricas que emergiram num dado momento, e de quem se propunha a narrá-la”, considerando as diferentes formas de ocupação e de disputas que ali se processaram. Mas nas vivências cotidianas, a definição do que era Brasil e do que não era “ia se desfazendo no próprio dia-a-dia, nas micro relações que dissolviam as rígidas fronteiras nacionais que se pretendia estabelecer — e por que não dizer? — colocando em segundo plano até mesmo históricas rivalidades e ressentimentos nacionalistas que marcaram a sempre tensa e vacilante relação entre Brasil, Argentina e Paraguai em âmbito diplomático”, nas palavras de Emilio Gonzalez6. Assim, pesavam mais os deslocamentos e as aproximações da população da fronteira do que as questões nacionais, vistas num plano mais distante.
“De forma geral, o diálogo da produção musical paraguaia com a nossa música sertaneja vai se fazer de duas maneiras: a) pela versão (livre) das guarânias paraguaias; b) por composições nacionais de guarânias ou de ritmos derivados das guarânias e polcas paraguaias, como o rasqueado e a canção campera.”
As migrações e errâncias interfronteiras propiciavam encontros musicais e sonoros, que diluíam e suavizavam as relações tensas do passado. Encontramos ecos dessas musicalidades paraguaias nas gravações feitas por Helena Meirelles nos anos 1990. Tendo aprendido a tocar violão quando adolescente, vendo e ouvindo os migrantes paraguaios que atravessavam a fronteira e encontravam abrigo no sítio do avô, trouxe resquícios disso nas gravações feitas tantas décadas depois. Nelas reconhecemos ecos de Virgínia, de Teodoro S. Mongelos e Diosnel Chase; Pajaro Campana, ou Guyra Campana, de Carlos Tavalera e Eduardo Rayo, que aparecem em Araponga e A volta da Guyra Campana; além da polca Campamento Cerro León, que ela toca de forma menos acelerada e denomina Campamento Cerrollon; e de Cerro Corá, esta sim com indicação dos autores7.
De forma geral, o diálogo da produção musical paraguaia com a nossa música sertaneja vai se fazer de duas maneiras: a) pela versão (livre) das guarânias paraguaias; b) por composições nacionais de guarânias ou de ritmos derivados das guarânias e polcas paraguaias, como o rasqueado e a canção campera, como demonstrou Evandro Higa8.
Segundo Evandro, a primeira guarânia nacional foi Morena murtinhense, de Nhô Pai, gravada em 1941 por ele e por Nhá Zefa; “relata um encontro e despedida românticos ocorridos na cidade fronteiriça de Porto Murtinho no Mato Grosso do Sul, importante núcleo de importação e exportação às margens do Rio Paraguai na primeira metade do século XX”9. Além das mudanças no andamento (bastante rápido) Higa assinala que “As vozes de Nhô Pai e Nhá Zefa (a voz masculina faz a segunda voz cantando abaixo da feminina) transitam em uma tessitura média, sem rubatos e ornamentações, com glissando (portamento) nos referidos “sincopados paraguaios” e sapucays, gritos de euforia próprios de gêneros dançantes como a polca paraguaia e que nunca são utilizados nas guarânia.10“
Higa assinala também que o primeiro rasqueado, gênero derivado da polca paraguaia (que fazem referência à técnica de rasgueio no acompanhamento de violão), foi Paraguayta, de Cunha Jr., gravada por Nhô Nardo e Cunha Jr. e lançada em 1940.11
Na verdade, o que se tem é uma mistura de influências as mais diversas, todas elas identificadas como “paraguaias”, — inclusive a utilização da harpa paraguaia, — mas que nada tem a ver com o processo de renovação musical que se processava no país vizinho.
A formulação da guarânia e sua incorporação ao cancioneiro paraguaio pode ser pensada no interior de um movimento intelectual — literário, teatral, musical — que buscava fortalecer os ideais nacionalistas e patrióticas, muito especialmente durante o período em que o país se envolveu na Guerra do Chaco contra a Bolívia (1932–1935). A discussão sobre o passado do país, desfigurado no século XIX pela Guerra da Tríplice Aliança, bem como as perspectivas que podiam se abrir para o futuro, já eram preocupações, nos anos iniciais do século XX, dos intelectuais da chamada Generación 900, cujas linhas dominantes foram, do ponto de vista político, o liberalismo e o nacionalismo colorado, e do literário, algo entre o romantismo tardio e o nascente modernismo, abundando poemas e prosas de exaltação do passado heroico e dos heróis nacionais12.
Foi gerado um discurso de revalorização da mestiçagem e do idioma guarani, mas reduzindo o componente indígena a um valor meramente histórico-lendário13 Seguramente, nas décadas iniciais do século XX, o movimento incorporava perspectivas políticas divergentes, mas sempre voltadas para a valorização da nação e das tradições nacionais. Nesse processo foi gestada a guarânia.
Em artigo sobre o criador desse gênero musical, José Asunción Flores, intitulado ironicamente Flores, traidor a la patria, — como era chamado pela ditadura Stroessner14, Montserrat Álvares afirma que esse gênero musical “é um caso insólito de invenção individual, com data e assinatura, espontaneamente adotada por toda uma comunidade como expressão de sua história e sua experiência social e coletiva”15. Nessa direção, processa-se principalmente um chamamento de adesão à guerra, e ressalte-se, apesar das diferenças ideológicas entre os diferentes poetas e compositores.
“[…] com a guarânia o Paraguai adquiriu sua identidade musical, colocando-se entre os países do mundo com música própria e de autor conhecido.” segundo uma proposta para a inclusão do termo ao Dicionário da Real Academia Espanhola.
Muitos desses músicos participaram da Guerra do Chaco, apresentando-se para as tropas ou mesmo participando nas frentes de combate. Em decorrência, muitas composições épicas foram feitas abordando a questão da guerra, como 13 Tuyutí, de Emiliano R. Fernández, Nanawa de Julián Alarcón, Fortín Toledo de Hermínio Giménez, Reservista Puraihei, de Felix Fernández, entre muitas outras, geralmente no idioma guarani. Algumas estabeleciam uma continuidade narrativa com a Guerra da Tríplice Aliança no século XIX, como a composição Cerro Corá, de Herminio Gimenez e Felix Fernandes, composta em 1931, heroicizando o Marechal Solano Lopez. Segundo Wolf Lustig, durante a guerra do Chaco, nas trincheiras cantavam-se também canções patrióticas, sempre em guarani, como Campamento Cerro León — nas palavras de Mauricio Cardozo Ocampo, era uma “polca épica de 1865 que chegou a 1912 com seus vibrantes sons de pátria”.16
Há inclusive uma proposta para a inclusão do termo guarânia ao Dicionário da Real Academia Espanhola, nos seguintes termos: “gênero musical do Paraguai. Foi criado pelo músico José Asunción Flores, inspirando-se na natureza exuberante de sua pátria e no profundo significado da expressão aborígene. (…) Não tem influências de ritmos de outras regiões da América. A denominação reflete o âmbito geográfico e os traços culturais e linguísticos do povo paraguaio. Com a guarânia o Paraguai adquiriu sua identidade musical, colocando-se entre os países do mundo com música própria e de autor conhecido”17. O nome do ritmo presentifica uma relação com o passado, incorporando os elementos indígenas que constituirão a própria identidade paraguaia (inclusive o idioma guarani, de muitas das composições mais conhecidas).
No Brasil o diálogo musical nesses anos com a produção paraguaia não incluiu a discussão da guerra. Aliás, o Dicionário Cravo Albin de Música Popular aponta apenas um compositor que se referiu à Guerra do Paraguai: Domingos de Faria Machado, autor de Canto de Guerra do Voluntário Baiano, e do poema sinfônico A tomada de Vileta, para homenagear a vitória do Brasil18.
As distâncias entre a formulação identitária das guarânias e a sua difusão no Brasil em versões e traduções são imensas. Ao atravessar a fronteira as composições adquiriam outros sentidos. Podemos entender isso comparando Índia, de José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero, que no Brasil recebeu letra de José Fortuna, e Galopera, de Mauricio Cardozo Ocampo, aqui na versão de Pedro Bento.
José Asunción Flores compôs uma introdução instrumental que não aparece nas inúmeras gravações feitas no Brasil. Além disso, os versos de Ortiz Guerrero19 descrevem uma mulher selvagem, mistura de deusa e pantera, que traz no corpo os símbolos da sua origem guajaki (desnuda, usando um colar de dentes de feras da região, um cocar de plumas), corpo aliás formado a partir dos elementos da natureza paraguaia (nascida nas montanhas de Yvytyrusu, tem curvas copiadas do Rio Paraná). Eva do Éden guarani, portanto isenta do pecado original, fala um guarani doce e selvagem, comparado ao mel de eirusú, abelha que produz um mel saboroso. Mesmo tendo como lar a selva, conclui o poema, ela sabe amar e sabe sonhar20.
A versão de José Fortuna21, gravada primeiramente em 1951 por Cascatinha e Inhana, vendeu “dois bilhões e meio” de cópias em discos de 78 rpm, segundo informações da dupla. Descreve uma mulher de origem (sangue) tupi, “flor do meu Paraguai”, de pele morena, cabelos negros e longos, boca pequena e lábios rosados; trata-se de uma paixão logo abandonada, visto que quem canta está de partida para terras mais distantes. Narra, na verdade, um encontro numa região fronteiriça, em que os relacionamentos tornam-se passageiros, não vinculados a nenhuma territorialidade.
Índia se fez presente também na música popular fora do filão sertanejo, e recebeu um número expressivo de gravações, algumas bem conhecidas. Em 1979, Gal Costa regravou a versão de José Fortuna no LP Gal Tropical pela Philips, sendo que já havia feito uma gravação com acompanhamento orquestral em 1973 no LP Índia, também pela Philips).
O cantor e compositor Taiguara, voltando ao Brasil do exílio, produziu em 1984 um LP bastante politizado, Canções de Amor e Liberdade, em que tenta construir uma identidade americana a partir de uma visão libertadora da América do Sul pós ditaduras. Além de uma guarânia e de uma composição do paraguaio Oscar Nelson Safuán, realizou uma gravação de Índia, com a tradução literal para o português feita por ele do poema, inclusive com a introdução instrumental composta por Asunción Flores e executada pelo paraguaio Luis Bordón.
Uma das composições ainda hoje muito gravadas em sua versão brasileira feita por Pedro Bento é Galopeira (Galopera, de Mauricio Cardozo Ocampo). A galopa22, segundo Luís Szarán23, é derivada da polca, sendo uma dança rápida em compasso 6/8, cuja conclusão depende do diretor e pode ocorrer em qualquer parte da música. É executada em festas populares e religiosas. A galopera é a bailarina solista da galopa, e leva sobre a cabeça um cântaro ou várias garrafas.
O poema de Mauricio Cardozo Ocampo24 se refere à festa de San Blas (São Brás), santo padroeiro do Paraguai, no dia 3 de fevereiro, realizada num dos bairros de Assunção. O tambor chama para a festividade, que é bastante ritualizada; formada a roda, as galoperas começam a dançar, devidamente paramentadas (pés descalços, usando roupas típicas, o chamado tîpoy seguá, enfeitando suas tranças com o kîguá verá, pente de ouro e pedras preciosas nos cabelos, além de brincos e anéis preciosos e um rosário de coral). Do seu cântaro a mitacuñá (jovem mulher) oferece água para os peregrinos, do que resultam os versos finais, “dame un poco de agua fresca de tu cántaro de amor”.
Na versão de Pedro Bento25, o olhar estrangeiro enxerga um baile realizado em Assunção, com quatro cantores executando as músicas e as paraguaias dançando. Portanto, uma festa sem nenhuma conotação religiosa, uma atividade puramente de lazer. O narrador entra na dança, e se recorda do baile, dizendo que tem saudades desse acontecimento e pretende por isso voltar ao Paraguai.
Algumas duplas foram extremamente importantes na gravação de dos gêneros paraguaios. A dupla feminina Irmãs Castro, fez seu primeiro sucesso interpretando Beijinho Doce26, composição de Nhô Pai gravada em 1945. Inicialmente, gravaram versões e adaptações feitas por Nhô Pai e por Ariovaldo Pires para canções mexicanas. Posteriormente voltaram-se para as produções paraguaias ou derivadas dela, como rasqueados de diferentes autores. Com relação às guarânias paraguaias, considerando apenas as gravações em 78 rpm: em 1947 gravaram Noites do Paraguai (versão de Ariovaldo Pires para Noches Del Paraguay, de Samuel Aguayo e Pedro José Carlé); Camba cuá, em 1949, apresentada como sendo de de Nhô Pai e Nhô Fio a partir de composição de domínio público, mas que o Portal Guarani indica como sendo de Osvaldo Sosa Cordero27; em 1950, Moreninho Lindo (versão de Rielinho para Paraguaya Linda, de Maurício Cardozo Ocampo e J. Pierpauli); em 1955, Recordações de Ypacarai (versão de Juraci Rago para Recuerdos de Ypacaraí, de Zulema de Mirkin/Demetrio Ortiz); e Mariposa Porã Mi (de Félix Perez Cardoso/Emiliano Fernandez); em 1956 Alma Guarany (versão de Fiico para a composição de Damasio Esquivel/Osvaldo Sosa Cordero).
As guarânias, e muito especialmente os rasqueados vão trazer elementos do cotidiano fronteiriço, o que vai ser incorporado com muita força pela música sertaneja. Embora de origem paulista, as Irmãs Castro valorizaram nas suas gravações exatamente os aspectos mais significativos do modo de vida da fronteira do Mato Grosso (do Sul) com o Paraguai. Muitas das composições gravadas por elas trazem referência ao idioma guarani no título, como Moreninho Porã-mi (Nhô Pai/Osvaldo Rielli), ou as guarânias Che Yara Porã Tupy (Capitão Furtado/Osvaldo Rielli), e Minha pequena — Che china mi (Antônio Cardoso e Ariovaldo Pires). Outras trazem trechos em guarani, como Amor de Fronteira (Joly Sanches/Zezinho Brasil), que narra o casamento de uma brasileira com um paraguaio. Os rasqueados também vão trazer referências à natureza da região de fronteira, como em Chalana (Arlindo Pinto/Mário Zan), ou Ciriema (Mário Zan/Nho Pai).
Outra dupla representativa do diálogo com a música paraguaia foi Cascatinha e Inhana. Apresentando-se primeiramente em circos, chegaram a São Paulo e tiveram maior visibilidade a partir das apresentações em rádio. Em 1951 gravaram Rolinha (La Paloma, do compositor espanhol Sebastian Yradier, em versão de Pedro de Almeida) e uma composição de José Fortuna, Fronteiriça. Em 1952, a partir dessas composições, o sucesso veio com as gravações de músicas paraguaias, em versão livre: Índia (versão de José Fortuna para India, de José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero); Meu Primeiro Amor (versão de José Fortuna e Pinheirinho Jr. para Lejania, de Hermínio Gimenez); em 1953, Solidão (versão de José Fortuna para Che Picazu Mi, de Eládio Martinez/José Asunción Flores), Asunción (versão de José Fortuna para a composição de mesmo nome de Federico Riera); em 1956, Recordações de Ypacarai (versão de Juraci Rago para Recuerdos de Ypacaraí, de Demetrio Ortiz/Zulema de Mirkin); Noites Do Paraguai (versão de Nogueira Santos para Noches Del Paraguay, de Samuel Aguayo/Pedro José Carlé), e Lar Destruído (versão de José Fortuna para Regalo De Amor, de Maurício Cardozo Ocampo). Gravaram também “guarânias nacionais”, como Flor Serrana (José Fortuna/Daniel Salinas), Colcha de Retalhos (Raul Torres), Quero Beijar-te as Mãos (Arcênio de Carvalho/Lourival Faissal), entre muitas outras.
Por um lado, a incorporação desses gêneros (assim como outras influências de outros países ou de outras regiões) propiciou o alargamento territorial da música sertaneja, que deixou o solo anteriormente denominado “caipira”. Abriu campo para o aparecimento de duplas regionais, como Delio e Delinha, Beth e Betinha, e outras28.
As guarânias e rasqueados passaram a constar do repertório de inúmeras outras duplas sertanejas, e foram gravados mesmo por músicos fora desse filão. Luiz Vieira compôs e gravou Guarânia do amor sofrido (1962) e Guarânia da lua nova, esta última gravada por ele (1969) e também por Cascatinha e Inhana (1977). A guarânia ingressou até mesmo na restrita MPB dos anos 1960, com a composição Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré.
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