O envelhe-ser negro – sonhos ancestrais

06/06/2025

Compartilhe:

Por Kwame Yonatan Poli dos Santos* 
 
Tive a alegria de conhecer e crescer com a minha avó, o que é uma raridade entre a população negra, que possui uma expectativa de vida muito menor do que a das pessoas brancas (pessoas negras chegam a viver até 20 anos a menos). 
 
Quando nasci, minha avó tinha quase 60 anos de idade e uma vitalidade ímpar. Assim seguiu até a pandemia, em 2020, quando perdeu a mobilidade e não conseguiu fazer suas valiosas caminhadas. 
 
Há alguns anos atrás, encontramo-nos à noite, numa dessas caminhadas, e começamos a conversar sobre o mistério de uma estrela que aparecia e desaparecia em determinado horário: “É muito mistério nesse universo” – ela dizia. “Até que um dia a gente morre e vira parte do mistério!”. 
 
Dela, carrego a marca do trabalho, do estudo e da alegria. Ela sempre contava que trabalhou em três empregos para sustentar os quatro filhos. Não pôde concluir os estudos, mas sempre nos incentivou a não deixar de aprender. 
 
Em 11 de abril de 2024, minha avó faleceu com 95 anos. Em sua história de envelhecimento, houve vivências muito parecidas com a de outras pessoas negras. 
 
A vida da minha avó foi bastante marcada pela sobrecarga do trabalho, pelo cuidado da família e pela alegria. Lembro-me da sua risada solta, da sua sagacidade e sabedoria. Acredito que o envelhe-ser negro com saúde seja a possibilidade de construção do bem-viver.  
 
Na pandemia, minha avó parou de andar, o que ela dizia ser bastante sofrido. Por inúmeras vezes, ela tinha uma melhora na saúde, tentava se levantar e quase caía. Devido ao trabalho de profissionais de saúde, além da minha irmã, meu irmão e minha mãe, minha avó recuperou, por um período, um pouco da capacidade de andar.  
 
As limitações físicas são parte do envelhe-ser e exigem movimentação física e um exercício de compreensão constante do tempo, do corpo, dos afetos e da idade que se tem. 
 
Os racismos promovem limitações das existências negras, reduzem a vida a apenas sobrevivência, seja pelas violências raciais, ou por meio da sobrecarga do trabalho, ou da jornada tripla das mulheres negras, ou pela ausência de perspectiva de uma aposentadoria, ou pela solidão vinda da exclusão ou abandono. 
 
No Brasil, a experiência negra é profundamente marcada pelos racismos (recreativo, estrutural, religioso estruturante etc). Muitas vezes, a militância é para que as violências raciais, de gênero e de classe não nos definam, e esse é um combate vital que se dá não só pela sobrevivência, mas por uma vida, no singular. 

No entanto, essa é uma luta que enfrenta barreiras nas estruturas que compõem o tecido social. A forma como uma sociedade cuida das crianças e dos mais velhos revela sua ética e seus valores. Muitas sociedades africanas veem no cuidado das pessoas mais velhas a possibilidade de construção de um futuro ancestral. Para elas, a possibilidade de continuidade se dá com os mais velhos buscando entender os mais jovens. 
 
Minha avó dizia, em sua sabedoria: “a vida é uma passagem”. De fato, somos seres temporais. A luta pelo envelhe-ser negro é que essa passagem vital não seja marcada apenas pelo sofrimento dos racismos, mas por uma vida digna de uma obra de arte, como um bom samba, uma bela filosofia, ou um sonho ancestral. 
 
*Kwame Yonatan Poli dos Santos é psicólogo, psicanalista e pesquisador. Doutor em psicologia clínica, atua com foco em saúde mental, psicanálise, relações raciais e práticas decoloniais. É articulador do projeto “Aquilombamento nas Margens” e professor em instituições de formação em psicologia. Também é escritor, com livros de poesia e publicações acadêmicas. 


Este texto faz parte da Campanha de Conscientização da Violência contra Pessoa Idosa, realizada de 14 a 17 de junho de 2025 pelo Sesc São Paulo, com o tema “Envelhecer como direito para todas as pessoas”. Saiba mais em: sescsp.org.br/contraviolencia

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.