
Ao revelar um lugar de construção de lealdades, solidariedade e sentimentos, Era o hotel Cambridge – o livro e o filme – mostra que morar é mais do que um número em um cadastro
Por Raquel Rolnik*
Como o hotel Cambridge, são centenas de edifícios – e terrenos – ocupados por quem não tem onde morar hoje e não pode se dar ao luxo de esperar cinco, dez, talvez até mais anos inscrito em um cadastro. As “ocupações”, como são designados por seus moradores esses novos modelos de morar nas grandes cidades brasileiras, não se enquadram no léxico das políticas públicas e dos “diagnósticos” habitacionais. Para boa parte da grande imprensa, para os juízes, que emitem ordens de despejo sem jamais terem pisado no local, e para a polícia, que muitas vezes usa bombas de efeito moral e balas de borracha para executar essas ordens, trata-se de “invasões” cometidas por “invasores” que tentam usurpar a propriedade alheia.
Porém, ao observar “invasões” e “invasores” de perto e com delicadeza, como faz a lente do cinema no filme Era o hotel Cambridge, outras imagens e narrativas são reveladas; abre-se uma grande multiplicidade de histórias de vida que levou ao mesmo lugar migrantes, imigrantes, refugiados, mães solteiras, entre tantos outros, lugar este da falta de acesso a uma opção de moradia que caiba no minguado rendimento às vezes ocasional, às vezes inexistente. Como mostra o filme, talvez principalmente um lugar de construção de lealdades, solidariedade e sentimentos que ocupa o vazio das institucionalidades da moradia, para as quais casas são números, e seus habitantes, inserções em cadastros. São redes de amizades forjadas na luta por condições mínimas de sobrevivência e que tecem uma resistência sensível e poderosa ao seu enquadramento como “invasores” e, portanto, ao seu banimento da categoria de sujeitos cidadãos.
Não, não quero aqui esconder nada: nem a presença dos partidos políticos que atravessam esse lugar, assim como atravessam a totalidade dos territórios em constante negociação com o Estado, marcados por uma condição ambígua em relação a seu pertencimento à cidade – como são as favelas, as periferias feitas de parcelamentos irregulares, os puxadinhos nas casas e conjuntos construídos, as sublocações mutantes onde vive a maior parte dos moradores urbanos do país –; nem o fato de que se trata, sim, de uma ocupação de terrenos e prédios cuja existência nos registros cartoriais os vincula a um proprietário, mas que, na prática, no mundo real das cidades, encontram-se vazios há décadas, degradando o espaço e afrontando todos os dias o direito universal de morar. Tampouco queremos esconder as superposições de vulnerabilidades que entrelaçam de forma perversa fragilidades e violência, inclusive a violência que se exerce contra as mulheres na domesticidade do “lar” – questão essa que aparece com sutileza na tela.
Neste ponto, o filme grita: a presença das mulheres, liderando, conduzindo, mediando e acolhendo, é elemento estruturador do movimento e do próprio lugar. Elas estão em toda parte: à frente da organização cotidiana do edifício, nas articulações políticas mais amplas, no dia a dia do cuidado com os filhos e com outras mães. Aparecem também – sem aparecer – através daquelas que foram abandonadas (com seus filhos) em Áfricas distantes. São essas mulheres que, fantasiadas, podem brilhar na festa; são elas que, escondidas em um canto, podem finalmente chorar. À revelia e apesar das grandes organizações sociais e políticas desacreditadas, são elas que constroem o lugar que as sustenta, enfrentando as misérias do cotidiano.
Finalmente, não podemos deixar de mencionar o enorme significado do entrelaçamento de coletivos que não apenas marca boa parte das ocupações hoje, mas que também tornou possível o filme e, portanto, este livro. São coletivos culturais que, presentes, em contato e “residindo” nas mesmas ocupações, vão transformando o lugar e igualmente transformando a si mesmos. Esse talvez seja um dos elementos novos e promissores que marca as ocupações hoje. Explico-me: ocupações organizadas de moradia acontecem na cidade de São Paulo pelo menos desde a década de 1990. Há mais de duas décadas, portanto. Contudo, nos últimos anos observamos nelas a presença crescente de ações de coletivos artísticos, o que reflete a proliferação de sua presença na cidade, atuando em problemáticas situacionais e de intervenção por meio de representações e situações performáticas.
No hotel Cambridge, assim como em muitas outras ocupações espalhadas pelas cidades do país, podemos ler as novas faces da resistência à total submissão do espaço urbano à lógica da rentabilidade do capital; mas ali também se experimenta e se exercita a construção de uma cidade de direitos, inclusive do direito de imaginar.
*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista brasileira. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
Ficha técnica do filme
Era o hotel Cambridge (93 min.)
Sinopse: O filme conta a inusitada trajetória de um grupo de refugiados que divide com os sem-teto uma ocupação no centro de São Paulo. Na tensão diária pela ameaça de despejo, revelam-se pequenos dramas, alegrias e diferentes visões de mundo dos ocupantes. O filme estreou no 64th Festival de San Sebastián, na Espanha, e já foi exibido na 40ª Mostra de Cinema de São Paulo (onde recebeu o prêmio de Melhor Filme pelo Voto Popular) e no Festival do Rio (onde ganhou o Prêmio de Melhor Filme pelo Voto Popular, Melhor Montagem e também Prêmio da Crítica Internacional – Premio FIPRESCI).
Direção: Eliane Caffé
Produzido por: Rui Pires, André Montenegro, Edgard Tenembaum e Amiel Tenenbaum
Diretora de arte: Carla Caffé e alunos da Escola da Cidade
Direção de fotografia e câmera: Bruno Risas
Montagem: Márcio Hashimoto
Elenco: José Dumont, Carmen Silva, Isam Ahamad Issa e Guylain Mukendi
Atriz convidada: Suely Franco
Participação Especial: Lucia Pulido e Ibtessam Umran
Gênero: Drama
Produção: Aurora Filmes
Coprodução: Tu Vas Voir (França), Nephilim Producciones (Espanha) e Apoio (Brasil)
Classificação: Não recomendado para menores de 12 anos
Distribuição: Vitrine Filmes
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