
Por Cris Rosa*
Enquanto tocava a versão de Little Sunflower interpretada por Dorothy Ashby na caixinha de som, uma criança pressionava o peito com a mão dizendo “tia, essa música faz a gente sentir amor”. Demorei um pouco para responder, mas de imediato me identifiquei e sorri. Há algo nessa música que me acolhe quase como um abraço e talvez, em outro momento, eu a descrevesse com as mesmas palavras. Ao me colocar em um contínuo exercício de reflexão sobre amor pela condução de bell hooks, porém, passei a interpretá-lo como um conjunto de escolhas e ações que extrapolam o sentimento. Respeito, honestidade, cuidado, carinho, comunicação, entre outras qualidades se combinam para que o amor exista, e foi uma parte disso que busquei apresentar para as crianças na oficina “Por onde passa o amor?”, realizada durante o evento Maré Delas – 2025.
Falar sobre amor com as crianças é diferente de ensiná-las o amor, ainda que seja algo que precisamos aprender. Ensinar pressuporia algum conhecimento conclusivo sobre o assunto, algo que não tenho e que sequer considero possível na sociedade em que vivemos. No entanto, ao falar de amor com ludicidade e em coro com os significados mencionados por elas, traduzo um pouco do que aprendi com autoras como Lívia Natália, Louise Queiroz, Maya Angelou e tantas
outras. Nesse percurso, pratico os aprendizados que herdei da convivência com as mulheres que habitam o fundo da casa da minha avó, me permitindo ser povoada por perguntas que não cessam.
Ao aceitar o convite para escrever e falar sobre o tema, cada criança inventou um caminho que amplia não apenas o significado de amor, mas também de infância. A primeira delas escreve “O amor é um sentimento bem livre, pode ser familiar, ou a pessoa pode gostar de outra pessoa. É muito bom sentir o amor”; outras dizem “O amor é um sentimento muito feliz, um abraço quentinho” e “O amor é um sentimento de carinho e de respeito com todos sem exceção, todos merecem!!!”

Ao tentar localizar o amor no próprio corpo, uma delas acrescenta: “é um sentimento que eu sinto quentinho perto do meu ombro”, seguida de outra voz que compartilha “o amor é um sentimento que tem no corpo, no cérebro e coração, e nos sentimos bem”. Por onde passa o amor, afinal? Quantas partes do meu corpo manifestam o amor sem que eu perceba? E qual liberdade eu preciso alcançar para expressá-la?
Em meio a caminhos que se cruzam e tantas vezes se sobrepõem – onde o amor é descrito como um sentimento, como gostar de alguém, ou tem a família, a mãe, os bichinhos e a natureza como seus sinônimos – nota-se que, para elas, amor é no mínimo relacional. Amar é se direcionar a algo ou a alguém. Algumas vezes é aquilo que se pode dar: “tia, tá aqui, o amor é pra você!” (com um desenho de coração no papel).
A amizade, nesse ínterim, aparece como uma chave fundamental no acesso e no aprendizado de um amor que se escolhe, seja pela melhor amiga que se senta ao lado, ou por aquela que faltou, mas antes avisou o motivo. Emocionadas pela relação que têm, uma dupla se abraçou, declararam-se uma para outra e trocaram cartas com corações coloridos. A que desenhava na outra extremidade da mesa relatou a importância daquele espaço para a sua vida, dizendo: eu só
tenho amigos aqui, por isso fico triste quando sentamos separadas. Me pergunto: quais são os espaços onde nos sentimos seguras para construir amor? E de quantas formas eles podem ser silenciosamente interditados?
Em outro momento, o amor aparece como algo que não se alcança pelas palavras, tanto pelos recorrentes pedidos de substituição da escrita pelo desenho, quanto pelas manifestações explícitas: “quando penso em amor, sinto tanta coisa que não consigo escrever”. Para nós, valeria pensar: de quanto tempo precisamos para definir o amor?Quanta criatividade ainda nos falta para inventá-lo à nossa maneira?
Pensar o amor como construção pode nos levar a reconhecer que o merecemos e podemos crialo nas relações que escolhemos construir. Tratar o amor como uma ação é torná-lo possível, a despeito das condições que marcaram a nossa história e que possivelmente o desautorizaram. Daí, inclusive, o potencial político de introduzir a discussão desde a infância.
Partir de uma ética amorosa para construir conexões com as crianças, além de fascinante, pode revelar muito da nossa própria história ao nos colocar em contato com memórias pouco confrontadas. De tudo o que aprendi nesses encontros, foi a coragem que elas têm para manifestar o que sentem que fez uma marca no meu corpo. Com movimentos muito simples, deixavam saltar da boca algo como “Tia, eu posso sentar ao seu lado?”, “Posso ficar perto de você
na foto?”, ou “Você quer ser minha amiga?”. Tenho me questionado em que momento perdemos a capacidade de demonstrar com tanta serenidade o nosso desejo e quanto dessa perda incide sobre a nossa capacidade de escolher e fazer o amor. Quando recuperaremos essa coragem? Por ora, guardo no relicário: “o amor é pra você”.
*Cris Rosa é mulher negra baiana, geógrafa, pesquisadora, escritora e fundadora da Lab Rachadura












O Maré Delas ofereceu uma programação dedicada ao protagonismo feminino, abordando temas relevantes às condições das mulheres na sociedade. Em 2025, o projeto propôs reflexões e vivências que reconhecem o amor como potência criadora, política e transformadora – uma força ativa, capaz de reconfigurar relações, desafiar estruturas históricas de opressão e fortalecer redes de solidariedade entre mulheres.
Nesta edição do Maré Delas, convidamos às reflexões: como o amor tem guiado suas lutas e contribuído para a construção de novas realidades? Como podemos transformá-lo em alicerce de uma vida mais justa, plena e solidária? Entre palestras, oficinas, espetáculos e vivências, a programação deste ano celebra o amor em sua plenitude e multiplicidade.
Veja aqui como foi a programação:
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