Dossiê: Willy Capital | 1 | INTROITUS

19/07/2019

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Regina Porto — Compositora, documentalista, ensaísta e agente cultural. É mestranda em Música pela Unicamp e em Ciência da Informação pela USP. Foi produtora e diretora da Cultura FM de SP, editora de música da revista Bravo!, curadora de concertos do Instituto CPFL e documentarista do Acervo Osesp. Suas áreas de interesse incluem artes acústicas, memória documentária e políticas de dados abertos. Conduz o projeto independente Ludovica® OpenMusic, pesquisa os manuscritos do Acervo Koellreutter e estuda a obra de Debussy. É bolsista CAPES pela USP.

ilustrações por Alexandre do Amaral — Ale Amaral é pai da Laura e continua insistindo ser designer e músico. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e em projetos de Improvisação Livre. É Capricórnio, mas com ascendente em Peixes.

Artista sem pares. Pensador de estirpe. Músico central — e fora do eixo. Gênio? Louco? A publicação deste manuscrito, engavetado por mais de uma década, recupera a trajetória desviante do ultramarxista Willy Corrêa de Oliveira (Recife-PE, 11 de fevereiro de 1938), compositor que fez história na música erudita brasileira, abriu combate contra o chamado sistema, deu tchau às vanguardas de estimação e cavou a própria bonança em vida — não sem antes infernizar meio mundo, dentro e fora da academia, a começar pela USP. Relato em forma de Réquiem, em seis movimentos de época, originais de 2008.

Leia também: Parte 2 | KYRIEParte 3 | DIES IRAEParte 4 | CONFUTATIS e Parte 5 | OFFERTORIUM  e Parte 6 | LIBERA ME

I. INTROITUS

Em 1979, Willy Corrêa de Oliveira conheceu os infernos. Aos 41 anos de idade, viveu, no lapso de uma noite, a desintegração por completo de sua identidade de compositor erudito. Segundo relata, seu pior pesadelo ocorreu em estado de vigília, com o desmoronamento moral e absoluto dos pilotis onde edificara sólida carreira. Dos dogmas, das doutrinas, dos cânones estéticos, das teorias e “tábuas da lei” que ditavam seu solfejo da música contemporânea, nada restou. A longa “Noite Transfigurada” de Willy, diferentemente do opus poético de Schoenberg, não se aplaca ao amanhecer. Nem se limita a ocasião (plena Semana Santa), localidade (Prados, MG) e circunstância precisas (em meio a um seminário de música colonial). Durou exatos oito anos. Nesse hiato criativo, Willy, o farol da vanguarda, se converte em Willy, o arauto da dúvida. Reações não tardaram, e o preço foi alto. Para uns, o inferno estava nele. Para outros, ele era o inferno. O infarto sobreveio em 1981. Um episódio periférico, se comparado à real dimensão de seu dilaceramento psíquico.

Três fatores colidem na ruptura de personalidade que mudou sua vida em definitivo: arte, política e religião. Conforme esse ex-ateu, nascido de família batista, criança educada protestante e pregador nos anos de juventude, houve o súbito redespertar da fé; conforme o comunista nele, ingresso no Partido e no materialismo histórico por volta dos 20 anos, pesou-lhe o privilégio de uma arte “privada”, alheia à sua militância; conforme, por fim, o músico extraordinário que é, deu-se a descrença no próprio métier, sobretudo no que diz respeito ao “progresso da forma”. O colapso enantiodrômico (em miúdos: a síndrome do contrário) fez correr toda sorte de diagnose em torno de seu quadro mental. Neurose, esquizofrenia, pulsão de morte, paranóia e psicose foram especulações leigas correntes. Mas a frase que saiu do coro sotto voce dos corredores da USP para os anais da História não poderia ser menos pernóstica e mais imediata: “O Willy pirou”.

No cataclismo desse marxista-leninista, natural do Recife (PE) e parente distante de Plínio Corrêa de Oliveira, o fundador da TFP, a imagem do apocalipse não chega a constituir hipérbole. Seja pela epifania declarada — a revelação teológica, nessa “certeza absoluta da existência de Deus”; seja pela escatologia manifesta — o pressuposto do fim dos tempos, para ele já presentificado no sistema de produção, consumo e lucro capitalista, ao qual cumpre responder (“Como eu, comunista, não tenho uma obra comunista?”). O desprezo típico da vanguarda política pela música dita de vanguarda (“arte decadente, sofisticada e sem teleologia possível”), e conseqüentemente pela postura (“burguesa”) dos “funcionários da História da Música”, veio a reboque. Mas é nesse ponto nevrálgico que tem início, a valer, a historicidade do “caso Willy”, para além de sua individualidade e crise pessoal.

Ao morrer para as crenças da contemporaneidade, Willy enterrou junto, em seu esquife particular, a história mais importante do Deptº de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde lecionou composição por três décadas, de 1971 a 2003. Líder e dominante, sua passagem transgressora pela academia — fossem anos de “situação” ou de “oposição” — deixou por lá marcas tão profundas quanto permanentes. Para coroar, lega à escola um irrevogável testamento antiacadêmico: sua tese de doutorado, polifônica paródia em que tece filigranada argüição contra os métodos e a ideologia da universidade. Para decepção sua, a sessão de defesa não logrou contraponto dialético à altura. Com indisfarçada frustração, acompanhou os louvores atabalhoados de uma banca intimidada, conforme registro em vídeo. Foi clamor no deserto. Os decanos da academia, em peso, marcaram ausência. Tentativa última de diálogo, a tese que deveria despertar reflexões, insuflar o debate — Willy não tem ilusões — repousa até hoje em silêncio mortuário, “enterrada nas estantes de biblioteca, no sarcófago universitário”.

Aposentadoria assegurada, Willy retirou-se de vez daquilo que é, para ele, o suplício na Terra: o modus vivendi do pensamento burguês, o modus faciendi da classe musical e o modus operandi da sociedade capitalista. Auto-exilado “na terceira margem do rio”, tal personagem de Guimarães Rosa, seu paraíso privado é um sobrado de classe média no bairro paulistano do Brooklin, incrustado entre ruelas tortuosas de paralelepípedo, numa área verdejante com ares de vila italiana. Sai pouco, e quando o faz, sempre de ônibus, é para fuçar algum sebo, assistir a um filme europeu, ver uma exposição ou marcar ponto na Livraria Francesa, no centro da cidade. Willy renunciou e foi renunciado. Seria o patético “retrato do artista quando só” que desdenha, não fosse o fato de já ter sublimado o próprio ego: nunca esteve tão apaziguado. O telefone toca apenas o necessário (verdade que o número é restrito a poucos, e que por tempos ele aboliu o aparelho) e somente aos muito chegados é dado acionar o sonaglieri da casa, sonalheira que ele manufaturou com sinos de boi e que, por meio de engenhosa fiação (não-elétrica), se estende da porta da sala até o destrancado portão de ferro para fazer as vezes de campainha. No jardim, à sombra da quaresmeira, o vira-lata Biscoito a tudo vigia com semblante pacífico.

Quem quer que já tenha freqüentado aquela casa de abundância intelectual e austeridade franciscana — e amigos e alunos foram muitos — logo terá identificado na presença forte de Marta, com quem Willy é casado desde 1965, o arrimo de sua estruturação emocional (num escrito dele: “E desde o mar, como Vênus, veio a Marta — com um buquê de sol para mim”). Matemática de formação, natural de Santos (SP) e mãe de seus dois filhos (Suzana, 42, bacharel em história, e Daniel, 40, em economia), essa inquebrantável mulher de 66 anos e beleza ainda resplandecente não perdeu o equilíbrio quando a casa caiu. Com a eclosão da crise, Willy foi aos limites da desorganização — interior e exterior. Num relâmpago, a tormenta evoluiria do foro íntimo para o campo aberto das contendas públicas — que ele, diga-se, por anos cuidou de alimentar com o pomo da discórdia. “Foi uma época muito difícil”, diz ela, “mas muito mais difícil para o Willy”.

Não que o tempo tenha arrefecido o conflito. Apenas moldou seus contornos. Sentenciado como ovelha desgarrada, banido como ovelha negra (“destoei da tribo”), protagonizou os primeiros combates num crescendo furioso. Acabou por trombetear sozinho. O confronto de idéias logo deu lugar a um desistente diminuendo adversário, até morrer em tacet abruptio — posto que o resto é silêncio (há quem diga conspiratório) do tutti. Quanto à reclusão de Willy, que nunca quis se pronunciar de público sobre os bastidores da crise, foi mais do que conveniente: garantia bonança ao estado das coisas. Dorme-se em paz com Willy no esquecimento. Sem ele, o state of the art do status quo fica a salvo de maiores desassossegos. Proscrito e autoproscrito, com o tempo seu nome veio a desaparecer dos créditos, dos discos, das publicações, dos festivais e programações, das reedições. Da história, enfim. Ao que Willy, num misto de Dom Casmurro e Quincas Borba, dá de ombros: “Ao vencedor, as batatas. As batatas quentes”.

Tarde de segunda-feira. Toca o telefone. Do outro lado, alguém canta o Parabéns, Willy balbucia junto, contente. É a filha Suzy (“Catita!”) que liga de Toulon, sul da França, para cumprimentá-lo. Willy fez 70 anos em 11 de fevereiro. Lucas, o único neto, filho de pai francês, seis anos incompletos, quer falar. O avô devolve o salut: “ÊÊÊÊ! ÊÊÊ!” (…) “Pode falar!” (…) “Vi o seu retrato na neve. Maurício trouxe”. [Maurício de Bonis é jovem ex-aluno seu e com Marcus Siqueira e Thiago Cury logrou importante edição de obras suas em CD e partituras em 2006.] Parece haver ruído de comunicação. Nova tentativa. “Maurice a porté un portrait de toi. À la neige”. (…) Agora, sim. “ÊÊÊÊ!” Passa para Marta. “Já é um espiritinho francês”, comenta preocupado. E com corujice de músico-avô: “Incrivelmente dotado. Aos 2 anos cantava afinadíssimo coisas difíceis: Greensleeves, Laura, o tema de Pedro e o Lobo. Uma expectativa enorme da minha parte. Tenho impressão que ele tem algo, um corpo estranho lá dentro”. Genes? De tempos em tempos, ele e Marta passam temporada por lá. “Sou companheiro de brincadeira dele. Brincamos de bombeiro, guerra. Não sou professor”. Tentou incentivar “o menininho” com teclado e violão. “Não adiantou nada”, diz. “Falta haver um uso social da música em casa também”. Traduzindo: uma função para a música em todos os compartimentos da vida. Para Lucas, compôs uma ode ao seu nascimento e um Pequeno Álbum de peças infantis para piano, plenas de corpos estranhos, e imaginativas como a lógica infantil. No mesmo recorte sócio-doméstico, faria uma pungente nênia para Xaxim, a gatinha morta, e peças de celebração para as bodas da filha e de amigos. Coisas assim.

Meses de convivência informal com Willy — e neste caso o convívio precedeu o jornalismo — dão a reconstituir o enredo da grande ópera da vanguarda brasileira em que desempenhou papel solista, cambiando com desenvoltura seu personagem de herói consagrado ao de odiado vilão, o inimigo nº 1. Há muito, porém, que esse drama deixou de interessá-lo. Para sondá-lo em segurança, convém que as visitas sejam esparsas, pacientes, cautelosas. Willy não quer saber de retrospectos, questionário, gravador ligado. “O mundo vive muito bem sem mim”, replica. E vice-versa. Aparentemente, o bloco de anotações não constitui ameaça. Sempre prevalente na condução do assunto e do timing, sua imprevisibilidade derruba qualquer pauta prévia. Desarmado, recebe com franqueza e generosidade, protagoniza seu sarau particular de horas, e se despede com gratidão, levando, num gesto, a mão ao coração. À medida que sua dispersa memorabilia se revela, começa a tomar corpo — quem há de negar? — capítulo dos mais vívidos, sísmicos e candentes da música erudita praticada no País. “Um caso interessante, sim”, até concede um compositor na casa dos 50 que prefere não se identificar. Para completar, exaltado: “Mas só depois de morto!”. Resta saber como a espinha dorsal da vanguarda se perpetuou como agudo espinho dorsal a pontuar, tal Cassandra, o grave réquiem das vanguardas.

RECITATIVO

“As pessoas insistem em abrir o zíper de quem não quer”. Por telefone, o maestro Olivier Toni, 82, enérgico e simpático no humor, considera ainda hoje “irrespondível” a pergunta sobre a dissidência de Willy Corrêa, a quem se refere como “um eremita completo”. De 1961 até oito, nove, dez anos atrás, nos falávamos o dia inteiro. Um dia ele resolve que alguns estavam ligados à vanguarda e que, portanto, eram burgueses e antiproletariado. Aí eu dizia, “Mas, Willy, e a música contemporânea em Cuba?”. E ele: “Em Cuba pode. Pra você ver”. Toni, que fundou e conduziu com pulso de zelador o Deptº de Música da ECA-USP (para deleite do cartunista e aspirante à música Laerte, que chegou a caricaturá-lo vigiando a garrafa de café dos professores), compõe uma minoria que não se inflama à mera sugestão do nome Willy. “São discussões fabricadas”, diz ele, como quem fala de uma criança travessa. Procede: Willy sempre o teve num misto de mestre fundamental e figura paterna. “Um pai para mim. Nos anos difíceis me deu costas quentes”. Por “costas quentes” entenda-se a tolerância de Toni para com as manobras radicais de Willy em aula. “Subia na mesa, tocava a Internacional. Eram 15 minutos de música e 40 de Stalin. Eu pedia: “Fale um pouco de Beethoven, Mozart. Fale menos de Stalin”. Respondia nervoso: “Você é um burguês reacionário. Os costumes da burguesia a gente tem que abolir daqui”. Fanfarronices desse tipo. “Toni não foi à defesa de tese de Willy.” “Claro que não fui! [aquiesce] Mas soube que foi brilhante. Pra variar”. Resume a altercação entre ambos a uma “briga com cordialidade”, guarda a lembrança de “uma inteligência incrível” e, como única mágoa, a ausência de Willy na sua despedida do Deptº, em 1992. “Não foi à minha festa”, diz, queixoso. A ver ou não, registros oficiais apontam que, desde 1989, Willy não reinava mais sozinho na cadeira de composição.


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