“Odiei a sua tese, mas com muito prazer” — Willy e a santa inquisição da academia, por Regina Porto
Regina Porto — Compositora, documentalista, ensaísta e agente cultural. É mestranda em Música pela Unicamp e em Ciência da Informação pela USP. Foi produtora e diretora da Cultura FM de SP, editora de música da revista Bravo!, curadora de concertos do Instituto CPFL e documentarista do Acervo Osesp. Suas áreas de interesse incluem artes acústicas, memória documentária e políticas de dados abertos. Conduz o projeto independente Ludovica® OpenMusic, pesquisa os manuscritos do Acervo Koellreutter e estuda a obra de Debussy. É bolsista CAPES pela USP.
ilustrações por Alexandre Amaral — Ale Amaral é pai da Laura e continua insistindo ser designer e músico. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e em projetos de Improvisação Livre. É Capricórnio, mas com ascendente em Peixes.
Artista sem pares. Pensador de estirpe. Músico central — e fora do eixo. Gênio? Louco? A publicação deste manuscrito, engavetado por mais de uma década, recupera a trajetória desviante do ultramarxista Willy Corrêa de Oliveira (Recife-PE, 11 de fevereiro de 1938), compositor que fez história na música erudita brasileira, abriu combate contra o chamado sistema, deu tchau às vanguardas de estimação e cavou a própria bonança em vida — não sem antes infernizar meio mundo, dentro e fora da academia, a começar pela USP. Relato em forma de Réquiem, em seis movimentos de época, originais de 2008.
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Com o lento correr dos anos, o histórico radical da insurgência política de Willy Corrêa, se até questionável, se justifica plenamente no desfecho da subversão estética de seu doutorado, em 1996, no que considera o cumprimento de “um destino”. Desde a crise de 1979, não houve parâmetro da música que escapasse ao seu escrutínio solitário. “Como levar a cabo um escrito em que faço um Wilhelm Master no final do século 20?”, impõe-se desde a introdução. A referência ao romance de formação de Goethe é bom indicativo do norte intelectual do empreendimento e do que Willy tem a defender: a construção da individualidade em condições subjetivas, mas no concreto da realidade histórica. “Quem não percebeu”, escreve, “[está] condenado aos desregramentos do solipsismo mais cruel”.
Por regra, doutoramento é a defesa de uma nova competência, de um novo conhecimento. Quanto à originalidade e à investida corajosa da contribuição crítica de Willy, não resta dúvida. Mas, em se tratando de quem é, o caminho só poderia ser pavimentado por vias tortas. Willy simplesmente ignora o protocolo, o formalismo e o cerimonial acadêmico. Em vez disso, cria uma suíte de textos ficcionais autônomos, num exercício tético em que lança mão da paródia, da sátira, da alegoria e da caricatura (a saber: da piada) para mandar seu recado. “Um jeito de me mostrar mais”, esclarece a uma banca boquiaberta.
Em números, eis o que pode ser a experiência de leitura dessas 270 páginas de texto, entre forçosas 127 idas ao dicionário (forma sua de glosar o cientificismo acadêmico e o glossário concretista, segundo afirma): 7 roteiros ficcionais, 3 biografias imaginárias, 10 protagonistas, um sem-número de coadjuvantes, 1 posfácio fictício (carta do “editor”), 120 recortes de jornais (à maneira do diário de Brecht, o Arbeitsjournal) e uma seriação de 42 referências biblio-filmográficas ao acaso do momento. Dos objetos irreconhecíveis: 11 partituras de autores célebres, 2 quartetos entrecruzados ao avesso (Bartók e Beethoven, revela agora) e 13 composições do próprio Willy — todas, obras atribuídas a personagens. Somados, algo em torno de 70% de quimeras contra 30% de realidade. Índice de nexo e empirismo verificado: 100%. Veredicto da banca, “10 com louvor”.
Na história da academia, é trabalho explosivo incomparável. Para quem vive a música nova, a leitura dessas páginas, se até divertidas à primeira vista, pode ser pra lá de desconfortável: um choque. Sem trégua, Willy implode métodos, certezas, clichês, fórmulas, morfologias, topologias, fenomenologias, valias e mais-valias de um século de paradigmas da música e da musicologia atual (exceção feita à eletroacústica, fora de seu domínio). Não é à toa que tantos se esquivem do escrito como quem vacila ante a taça proibida: o conteúdo exala perigo. (E qual criancinha que se preze nunca ouviu cantar que “Lá em cima do piano/ tem um copo de veneno/ Quem bebeu/ morreu”?)
“Somos criativos até ao atravessarmos as ruas.”
Entre a mesa, o banheiro e o cafezinho, compuseram a banca que o avaliou os catedráticos Nelson Carvalho (Direito, USP), José Miguel Wisnik (Letras, FFLCH-USP), Rodrigo Duarte (Filosofia, FAFICH-UFMG) e Sílvio Crespo (Música, ECA- USP), em sessão presidida pelo pianista e docente Amílcar Zani (ECA-USP). Ao longo de três horas, a tônica é de estatelamento, de total constrangimento. Gaguejam-se impertinências, preâmbulos e considerações irrelevantes que chegam a impacientar aquele que deveria (e estava pronto para) ser sabatinado. Diz um, isentando-se: “Me coloco como leitor dessa avaliação”. Diz outro: “Muito difícil argüir esse trabalho, não posso ser seu inquisidor”. E outro: “Certamente, um trabalho que me desconcertou bastante. Não pretendo de forma alguma argüir”. No máximo, um “Odiei a sua tese, mas com muito prazer”. Seriam também todos unânimes no reconhecimento ao seu “aporte de escritor” e nas congratulações à “rica abordagem multidisciplinar” do trabalho.
Confronto de ideias com Willy não é coisa que se deseje a inimigo. Nem a banca amiga, como foi o caso. Enfiado em uma japona de capuz azul marinho, Willy agita-se o tempo todo, anda pela sala enquanto fala e sobressalta a banca quando emite vocalises assustadores (à guisa dos problemas da linguagem), quando rasga uma folha e improvisa uma “obra” para papéis amassados, que atira agressivamente ao chão (das teorizações levianas e das vanguardas fáceis), e quando salta ao piano para ilustrar práticas epigonais abomináveis (imita uma composição estúpida) ou para ressaltar diferenciações de gênero (dedilha a jazzística Laura, de Raksin e Mercer). Pequenos momentos de pânico em que todos recuam com a expressão de quem se vê a sós com um psicótico em surto.
Elaborada cerca de quinze anos após a virada de 1979, a tese é a depuração do seu pensamento sob a forma de polifonia literária: um texto a várias vozes, em que contrapõem “peças de denúncia” por meio das quais visa demonstrar problemas-chave do ensino e o drama (e o escândalo) da música erudita em cena no capitalismo. “Me submeto ao engenho do dialogismo do leitor”, introduz. Sem título, o trabalho é dividido em três volumes principais: Caderno de Pânico, Caderno de Biografia e Caderno de Recortes, resumidos e comentados no introdutório e conclusivo Caderno do Princípio e do Fim.
“Fugiu do memorial acadêmico e se problematizou”. “Na verdade, a universidade é que sai argüida.”
“Os temas reunidos no Caderno de Pânico são frutos do terror”, escreve no prefácio. “Do susto de quem se apercebe da ilogicidade (ou má-fé) no tratamento dos problemas musicais contemporâneos. Do pânico de quem aprendeu com eles!”. Só o Discurso do Método, primeiro capítulo, no qual denuncia “o papelão” do ensino por meio de jocoso “elogio” a “obra fundamental para os que se interessam pelas práticas sobre o ilimitado” — a imaginária coleção universal em dez volumes do método Organon, dos impensáveis Schlowski & Härte (1ª edição de 1952 pela Doktoratverlag de Frankfurt, dá-se o trabalho de apontar) –, já seria motivo suficiente para deixar a academia de cabelo em pé.
Nesse ensaio em treze páginas, faz uso de neologismos para caricaturar os três “paradigmas-vagas” do compositor contemporâneo em seus “oceanos de criatividade”: o “introvagante” (“seu ponto de fuga é o sonho”), o “extrovagante” (“um épateur por vocação”) e o “autovagante” (“vaga pelos sendeiros do próprio ego e pode nos mimosear com uma obra para quatro seixos miúdos de sete horas de duração”). Na mesma marcha avança sobre as “vocatypias” (ou vocações) das vanguardas: a estruturalista (“coimada de requintes matemáticos”), a semântica (“substitui a realidade pelo significado”, sendo capaz de se ater ao som das entranhas de um tenor que se enforca ao vivo) e a populista (em que “o público, participante, gratifica o seu compositor contemporâneo”). E, sem perder o rebolado, tripudia sobre os cateretês do extemporâneo nacionalismo (de um Xaxando em Si, de um certo Wolfgang da Silva), sobre a demagógica “arte revolucionária” (de um sinfônico Improviso pelas vítimas da exploração) e sobre os vales do “pós-tudismo” (sob cuja bandeira, “somos criativos até ao atravessarmos as ruas”). Não fica pedra sobre pedra. É uma rajada só de desaforos às mais de 40 “línguas estranhas” praticadas no último século (a “Babel sem torre” de que fala) — do dodecafonismo ao neo-tonalismo, da chance music à música aleatória, do pointillisme à computer music, da música concreta à não-música. “Glossolalia ao léu de glossomania”, conclui.
Caberia a José Miguel Wisnik entreabrir — com cuidados — uma brecha nas comportas do dilema represado por entre aquelas quatro paredes da instituição. Em sua fala “testemunhal” como as demais, é o único a escancarar o potencial de dilaceração contagiante de um trabalho que, por tocar questões fundantes, “fugiu do memorial acadêmico e se problematizou”. “Na verdade, a universidade é que sai argüida”, afirmou. “[Até 1979], todo este Deptº era caudatário da perspectiva do Willy. Essa sua virada de 180 graus deixou o próprio Deptº a falar sozinho, questionando seu próprio sentido. Eu não sei até que ponto terá hoje se recuperado disso”. E fecham-se, de novo cuidadosamente, as comportas.
Vale a pena escarafunchar os três supostos perfis do Caderno de Autobiografia. Tal como nas ilustrações do inglês Martin Handford, trata-se sempre de descobrir Onde Está Wally, ou melhor, Willy. Com o primeiro biografado (Ensaio de Autobiografia, 34 pg), um compositor “internacionalmente conhecido em São Paulo”, assemelha-se na infância neurótica, desde as primeiras notas aos primeiros “pavores da morte” (que o acompanham até hoje); no insulamento (“Não que eu me encontrasse em um deserto: eu é que me sentia o deserto”); e no respeito às lições dos grandes mestres do passado: Chopin (“a sinergia da sobreposição”), Mozart (“os mistérios da informação”), Schumann (“a arte da condensação), Mahler (“a bricolagem dos objetos”), Liszt (“o tema por referência”), Scriabine (“a metáfora harmônica”) e Debussy (“o domínio do dominó”).
“Mas aí não posso cobrar que as pessoas compreendam. Se eu faço para alguém mais, eu tenho que ter objetividade.”
Do segundo (Grito de liberdade, 24 pg), um compositor “de fato” conhecido mundialmente (“como personalidade”), afora a menção a sério a Ouviver, obra sua de 1951, terá o assumido lado “mais mau-caratoso” dos tempos em que, de mal com a vanguarda, lograva ludibriar crítica, platéia e o próprio meio musical com obras de grande efeito performático que rigorosamente não existiam como composição. Seu personagem será o próprio artista-mercadoria que agrada ao poder e seduz multidões com fogos de artifício, ganhando rios de dinheiro com blefes de “once music” (única execução) de retumbante sucesso, como Lá na Floresta Amazônica (72 horas de emissão da nota lá em 440 hertz em plena clareira na mata virgem), Apollo 11 (o lá em sutil glissando de 447 para 440 durante a alunissagem da nave) e Once Music 2000, para a virada do milênio, em que se ouve um altissonante buááá (o primeiro choro) em lá 444. “Cada trabalho meu é um grito de liberdade”, proclamará, inflado de orgulho, seu personagem.
O último compositor (Procura-se Morto ou Ressuscitado, 99 pg), o cognominado “Maestro Anônimo Brasileiro”, aquele que “ninguém nunca soube que existiu”, é o alterego mais próximo do Willy atual. Desde o temperamento (“antropófobo”, “inconformado”, “instável”, “taciturno”) até a condição (“abandona a sociedade dos homens para dedicar-se ao que Schumann chamava de o “secreto prazer da música que não se ouve”). A ele irá atribuir parte ilustrativa de sua produção recente, dando todos os indícios de um compositor nem morto nem ressuscitado: vivíssimo. Com o que ninguém atinou. Pena.
Imbróglios à parte, porém, a coisa fica muito, muito séria.
No resumo da ópera, além dos aspectos filosóficos e ideológicos já ditos, o que Willy tem a denunciar na “esquipática” e “anômica” música contemporânea, diz respeito também, do ponto de vista da ciência da composição, aos meios técnicos vigentes. Em sumário aproximativo, eis os tópicos de fundo que se podem apreender como centrais em sua crítica, apropriada a terminologia semiótica: 1) A ausência de um paradigma (i.e., um padrão lingüístico) que pré-exista ao discurso; 2) O emprego de sintaxes sem equivalência semântica, em prejuízo da comunicação e da memória auditiva; 3) A vigência de sintagmas (discursos) que se prestam muito mais à análise (“às vezes fugidia ao próprio especialista”) do que à escuta; 4) O uso do léxico sem busca teleológica (i.e., sem finalismo), haja vista a ausência de direção, a entropia da dissonância, o zig-zag das alturas e os volteios discursivos; 5) O descaso à ideia de gênero musical, com inadequações entre forma e conteúdo e conjugação de procedimentos incompatíveis.
“O Willy sempre teve uma insatisfação muito grande com a própria obra. Via tudo de maneira crítica, era uma visão dele contra ele mesmo.”
No enunciado fundamental de sua tese, é da inexistência de uma língua comum, de um vocabulário geral, de uma ferramenta de escrita, que resulta o “dramático estado de insularidade” a que chegou a música atual. Durante a defesa, argumentaria em desesperação: “Música é linguagem, enquanto intercessão entre mim e o sistema. Toda vez que eu sento para escrever, eu tenho diante de mim, a interpor-se entre a caneta e o papel, um sistema de referência, um índex de antemão. O que estou reclamando é que no capitalismo eu não tenho esses dados. Ou escrevo qualquer coisa”. Ninguém ousou nem questionar.
Mas a subjetividade não seria legítima? Seria uma pergunta. “Nos momentos em que a subjetividade é fundamental”, responde. “Mas aí não posso cobrar que as pessoas compreendam. Se eu faço para alguém mais, eu tenho que ter objetividade”. Das resoluções possíveis, tampouco chegou a ser questionado. A elas, Willy responde hoje com dois pontos “irredutíveis”: o fundamento da metalinguagem e o da semântica. “Metalinguagem é um momento da história que a história não soube prover uma linguagem”, diz. “Quando você tem uma língua, a semântica é a linguagem. Não havendo significação, você vai em busca do sentido. E para mim o sentido veio através da História”.
Por essa sua premissa, a noção de “progresso da linguagem” não passa, para ele, de falácia, sofisma. “Tanto quanto a ʽHistória da Músicaʼ que fingem vivenciar”, completa. “A vanguarda é um movimento que a burguesia criou para produzir em laboratório um desenvolvimento histórico da música que socialmente não aconteceu. Só se faz vanguarda sozinho. Mas não se funda sozinho uma língua”. E pela boca de um personagem vaticina: “Para as suas vanguardas, esses néscios continuam a fazer planos para mais cem anos”.
“Não vou brigar”, encerra Flo Menezes, vanguardista inveterado, cria assumida de Willy e, aos 46 anos, o compositor e acadêmico de maior projeção nacional e internacional de sua geração. Mestrado na Alemanha, doutorado na Bélgica e pós-doutoramento na Suíça, afora colaborações estreitas com Berio, Boulez e Stockhausen dão a ele autoridade para representar o outro lado. E ponderar. “O Willy é extremamente inteligente. Num dia menos mascarado, em que esteja razoável, sem camuflagem, porque o teatro faz parte da sua personalidade, sabe dar valor. Se empolgava com as coisas bem feitas da vanguarda, mesmo com Webern”. E adiciona novo dado ao mundo Willy. Ex-assistente seu na USP, conseguiu arrancar dele matérias pra valer em caráter privado. “De 1982 até 85, tive aula na casa dele todos os domingos, das seis da tarde às duas da manhã. Ele dizia: ʽComo você é cabeça dura, com você vou ver o que você quer’”. O que viam? Berio, Stockhausen, Schoenberg… “Fez isso muito até por uma questão de afeto”, afirma.
Flo é dos poucos que podem falar de Willy num âmbito pessoal. Conheceu-o aos 5 anos em meio à amizade dele e seu pai, o poeta Florivaldo Menezes, e teve nele seu maior incentivador. “Apesar do estranhamento que fez com que a gente se afastasse, gosto muito dele. Foi o cara que me ensinou composição. Foi meu grande professor”. Sobre a crise, tem um viés peculiar: não teria sido política. “O Willy sempre teve uma insatisfação muito grande com a própria obra. Via tudo de maneira crítica, era uma visão dele contra ele mesmo. Isso gerou uma válvula de escape para o stalinismo como subterfúgio”.
Em casa, Marta diz nunca ter duvidado. “Eu sabia que daquela crise toda ia sair alguma coisa. E o resultado é fantástico. Porque Willy reuniu duas coisas: o lado racional, de arcabouço, com o lado sentimental, que ele nunca expunha”. O que ela, como “leiga” assumida, chama de sentimental é exatamente o que Willy chama, em música, de semântica: a sua significação sonora, “o seu dado humano mais imediato”.
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