O cinema político de Ken Loach pelo olhar humanista de Louise Osmond

11/12/2023

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Por Duda Leite

A primeira característica que vem à cabeça quando pensamos no cinema de Ken Loach é sua preocupação política. Loach é um dos cineastas mais à esquerda no panorama do cinema europeu contemporâneo, sempre com um olhar voltado às questões do proletariado. Seus filmes flertam de tal forma com o documental que, às vezes, ficamos em dúvida se seus personagens são atores ou se estão de fato passando por aquelas situações. A segunda característica é que seus filmes são invariavelmente humanos e tocantes. Ambas características também estão presentes no documentário Versus: A Vida e Obra de Ken Loach (VERSUS: The Life and Films of Ken Loach), dirigido pela britânica Louise Osmond, disponível na plataforma Sesc Digital.

Louise conseguiu equilibrar perfeitamente esses dois aspectos do cinema e da vida de Loach no seu filme. Antes de mergulhar no universo de Loach, Louise havia documentado, entre outros,  a vida do estilista britânico Alexander McQueen em McQueen and I (2011), e a tocante história de um cavalo azarão, em Dark Horse (2015), vencedor do prêmio do público de Melhor Documentário no Festival de Sundance. Atualmente, Louise prepara sua volta ao cinema, após alguns anos afastada por motivos pessoais. Assim como Loach, Louise busca histórias humanas que possam tocar pessoas ao redor do mundo.

A seguir, os principais trechos da entrevista com a diretora Louise Osmond, de seu escritório em Londres.

DUDA LEITE – Você começou sua carreira produzindo matérias jornalísticas para a TV. Como os documentários surgiram na sua vida?

LOUISE OSMOND – Meu primeiro trabalho foi como estagiária em uma produtora. Tudo era para o minuto seguinte. Aprendi muitas coisas úteis. Eu fazia matérias para telejornais. Conheci vários jornalistas sênior com quem aprendi muito. Mas, era uma linha de produção. Você terminava uma matéria e já partia para outra. Entendi logo que aquelas matérias não iriam me levar a lugar nenhum. Me dei conta de que queria produzir algo que ficasse mais tempo em mim. Então, decidi fazer documentários. Entrei em contato com algumas pessoas para ver se alguém me daria uma chance e, por sorte, conheci o responsável pelo departamento de documentários. Eu implorei por uma oportunidade e ele me ensinou muita coisa. Fico feliz que tenha dado certo.

DUDA – Ken Loach é um dos cineastas mais celebrados do cinema contemporâneo. É um dos poucos diretores a ter duas Palmas de Ouro em Cannes no seu currículo. Você se lembra qual foi o primeiro filme dele que você assistiu? O que te motivou a contar essa história?

LOUISE – O primeiro filme dele que eu vi foi Kes (1969). Sabia que era um cineasta bastante respeitado, mas não conhecia sua história. Estava trabalhando em um outro projeto, até que Rebecca O’Brien, sua produtora de longa data, encontrou no seu escritório uma caixa cheia de documentos que mostravam como havia sido complicado produzir seus primeiros filmes. Havia vários documentos e cartas que mostravam os embates que Ken havia tido com a BBC, no início de sua carreira. Os documentos traziam uma história pouco conhecida sobre a trajetória dele. Ela então decidiu que deveria ser feito um documentário sobre isso e me convidou para dirigir. Ken, por outro lado, não gostou muito da ideia. Ele é muito reservado. Ken vem de uma escola de cineastas que acha que seus filmes devem falar por si próprios, e que os diretores não têm que chamar atenção para si. Não é sobre a personalidade do diretor, e sim sobre a mensagem do filme. Então, Rebecca e eu criamos uma estratégia muito simples: eu passava muito tempo acompanhando a pré-produção do filme, Eu, Daniel Blake (2016), até que me tornei parte da mobília. Ken trabalha muito bem com  Rebecca e com seu roteirista Paul Laverty. Os três são um time. Eles jogam ideias um para o outro e sempre acham algo interessante para contar sobre a sociedade contemporânea. E sempre têm um olhar bastante crítico sobre o que está se passando, algo que ainda não foi explorado no cinema. Como por exemplo, a economia “Gig”, ou as sanções do governo britânico, como em Eu, Daniel Blake. E quando chegou a hora de entrevistar Ken, ele foi extremamente gentil e aberto. Ele reservou um tempo para mim, apesar de estar no meio da preparação para seu filme. Ele estava aberto para todas as minhas perguntas, mesmo as mais íntimas. Foi uma entrevista fascinante. Tenho muita gratidão por ele ter aceitado me dar essa entrevista. Ele foi bem tolerante comigo.

DUDA – Como foi para você conseguir chegar em pontos tão delicados sobre a vida dele, como por exemplo, a morte do seu filho?

LOUISE –  Existem muitos pontos de vista sobre se um diretor deve ou não chegar até esse ponto. Minha sensação era que, para fazer um documentário sobre Ken, eu não poderia ficar apenas na superfície. Eu precisava entender quem ele era. Então, perguntei antes para ele se poderia perguntar sobre isso, e ele disse que sim. Nessa altura, eu nem sabia se iria usar isso no filme. Conversei muito com meu editor sobre incluir ou não esse trecho. Mas Ken me deu total liberdade para fazer o meu filme. Eu acho que esse trecho diz muito sobre quem ele é. É um momento revelador. Senti que tinha que incluir essa cena.

DUDA – Eu penso que é impossível fazer um documentário sobre um artista e não tentar entender quem é a pessoa por trás.

LOUISE – Quando você faz um documentário de longa duração para o cinema, você precisa dar ao público uma visão mais profunda de quem é a pessoa por trás das câmeras. Algo mais do que você pode ler em qualquer entrevista. Ken é um homem bem interessante, porque ele é bastante contido e privado, mas ao mesmo tempo, aspectos diferentes de sua personalidade estão sempre presentes em seus filmes. Seus filmes são muito emocionantes e poderosos, porque ele consegue criar uma grande empatia pelas pessoas que estão na tela e por suas lutas. Acredito que é por isso que seus filmes funcionam tão bem. São histórias humanas de pessoas comuns, tentando lidar com o que a vida lhes apresenta. Isso vem de Ken e também de Paul Laverty, seu roteirista. Eles trabalharam em vários filmes juntos.

DUDA – Acredito que você encontrou a humanidade nele, assim como ele encontrou a humanidade em seus personagens.

LOUISE – Você resumiu muito bem. O filme foi exibido em muitos festivais, e em alguns disseram que era um “documentário tradicional”. Eu pensei que o mundo já está cheio de documentários experimentais. O meu filme tinha que tratar sobre o cinema dele. Achei que deveria ser um filme direto, assim como são seus filmes.

DUDA – Os filmes de Ken me parecem bastante audaciosos em termos dos temas tratados, porém relativamente tradicionais no formato.

LOUISE – Sim, concordo. Eu acredito que isso é algo deliberado da parte dele. Suas histórias não precisam de um plano elaborado de grua para tocar as pessoas. Seu princípio sempre foi: “fazer filmes que se pareçam com documentários”. E foi isso que me guiou como documentarista.

DUDA – Eu li que, na época que ele dirigiu seus primeiros filmes para a BBC como Up The Junction (1965) e Cathy Come Home (1966), o público não sabia se aquilo era ficção ou documentário. Acho que essa é a essência de seu cinema. No seu filme, Ken menciona que Eu, Daniel Blake seria seu último filme. Felizmente ele mudou de ideia e já dirigiu vários filmes depois disso. Você acha que ele vai se aposentar algum dia?

LOUISE – Não sei. Acho que, após as filmagens, ele se sente cansado e diz que vai pendurar suas chuteiras de diretor. Mas, após um período, algo novo vai surgir na sociedade ou na política que o deixará revoltado e renasce o desejo de contar alguma história. É algo que faz parte dele, ele não consegue se livrar. Eu acredito que ele fará filmes enquanto tiver condições. É um apaixonado pelo que faz.

DUDA – No início da nossa conversa você disse que as notícias de TV são feitas para não durar, exatamente o oposto dos documentários. Acabei de assistir seu documentário sobre o estilista Alexander McQueen, lançado em 2011, e é um registro que ficará para sempre para quem quer entender quem foi ele. Como você escolhe seus temas?

LOUISE – É curioso. Às vezes, alguém me oferece um trabalho. Porém, na maioria das vezes, surge alguma história ou alguém que me toca de forma muito pessoal e com quem eu sinto alguma conexão. Eu tinha um parceiro que era ótimo. Sempre que eu tinha alguma ideia, ele me sugeria uma lista de livros sobre o tema. Aquilo me ajudava muito. A coisa mais importante é entender onde está o coração da história, seu centro emocional. Ou pelo menos, algo que te conecte com ela. Se vou passar um ano da minha vida trabalhando em um documentário, que é um trabalho estressante e duro, o que eu posso tirar daquilo? Sempre tenho isso em mente quando vou escolher um tema.

DUDA – No caso de McQueen and I (2011), o que te fez querer contar essa história? É claro que Alexander McQueen foi um dos mais importantes designers britânicos de sua geração, mas ele também teve uma história pessoal bastante trágica.

LOUISE – Quando fiz esse filme, ficava sempre imaginando como teria sido bom se ele ainda estivesse vivo. (McQueen morreu em fevereiro de 2010). Quanto mais eu pesquisava sobre ele, mais me dava conta do seu imenso talento. Pouco antes da sua morte, ele estava interessado em fazer filmes. Ele já havia criado visuais incríveis para seus desfiles. Assim como o artista visual Steve McQueen (diretor de filmes como 12 Anos de Escravidão e Shame), teria sido muito interessante ver o que Alexander teria produzido no cinema. Foi uma perda terrível. Conforme me aprofundava na sua história, me dava conta da pressão imensa que esses designers sofrem. Por coincidência, acabei de ver o documentário de Kevin MacDonald sobre John Galliano, e ele também sofreu uma pressão enorme da indústria da moda. Eles são obrigados a fazer de três a quatro coleções de alta-costura por ano, lançar uma coleção de jeans, bolsas, sapatos, jóias, todo ano. E com aquelas pessoas anotando tudo na primeira fila dos desfiles e as estrelas que frequentam os desfiles, é uma pressão imensa. “Ele ainda é um gênio, ou já ficou para trás?”. Quando comecei a fazer o documentário sobre McQueen encontrei um vídeo no Youtube, acho que ainda está lá, chamado “Alexander McQueen and a Male Wedding Dress“. É um vídeo de McQueen com um modelo masculino onde ele cria um vestido no corpo do modelo. Era como observar um escultor trabalhando. Ele podia pintar, fazer roupas, tudo. Foi muito emocionante poder observar esse garoto do East End, com seus amigos da Saint Martin Fashion School, e a alegria deles durante esse período. Em seguida, a pressão começou a subir muito e ficar cada vez mais pesada. Sua morte foi uma grande perda para o Reino Unido, para a indústria da moda e para a indústria do cinema. Se ele tivesse tido tempo de produzir algo no cinema, tenho certeza que seria algo excepcional.

DUDA – Teria sido bem interessante ver o que ele teria produzido como artista visual.

LOUISE – O holograma que ele criou para Kate Moss, e algumas instalações em vídeo que ele criou para seus últimos desfiles eram realmente incríveis. Por acaso, ontem fui ver uma exposição sobre a Yayoi Kusama na Tate Gallery, e sei que você lançou um documentário sobre ela e entrevistou a diretora Heather Lenz. Mais um gênio. Eu fiz essa conexão mental.

DUDA – Que interessante. Por coincidência, a maior parte dos filmes que estou licenciando para a plataforma foram dirigidos por mulheres. Foi algo que aconteceu naturalmente.

LOUISE – Vi que você também entrevistou Lorna Tucker (diretora do documentário sobre Vivienne Westwood). No início da sua carreira, Lorna dirigiu filmes curtos para McQueen. Isso deve ter sido fantástico.

DUDA – Quais são seus próximos projetos?

LOUISE – Precisei me afastar do cinema por razões pessoais. Mas está sendo um processo interessante voltar ao cinema. Esse mercado muda tão rápido que você se afasta por algum tempo, já não conhece mais ninguém. Mas tenho alguns projetos que estão me deixando animada. Veremos o que vai acontecer. Alguém me disse: “você faz filmes sobre temas tão diferentes”. Mas, curiosamente, eu consigo ver uma ligação entre eles.

DUDA – De McQueen a Dark Horse, passando por VERSUS, eu consigo ver que todos têm ótimas histórias humanas.

LOUISE – Isso é a primeira coisa que me atrai em um projeto. Adoro contar histórias. E as diferentes formas que você pode contá-las. Adoro histórias com várias camadas. E histórias que conseguem transmitir algo universal para outras pessoas. Existe algo nessas histórias que tocam as outras pessoas e não apenas a mim mesma.


VERSUS: A VIDA E OBRA DE KEN LOACH
Dir.: Louise Osmond | Reino Unido | 2016 | 93 min | Documentário | 12 anos

Documentário sobre a vida e obra do cineasta britânico Ken Loach, um dos mais respeitados do cinema contemporâneo. Sua política na TV e no cinema britânicos, desde a década de 1960 até os dias atuais. Um retrato revelador do cineasta, vencedor de duas Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa

Disponível até 06.03.2024

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