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Professora e escritora faz um relato de seu percurso profissional e reflete sobre a arte/educação como meio de aproximar pessoas

A partir de detalhes do cotidiano e dos movimentos impermanentes da natureza, a arte-educadora Rita Noguera criou, à maneira do poeta Manoel de Barros (1916-2014), um quintal maior do que o mundo. Na infância, em meio a hortas, coelhos e porcos, desenvolveu a aptidão de observadora. Também aprendeu com pais e irmãos que nada se quebra, tudo se transforma em outra coisa e mais outra, e assim por diante. Na escola, as possibilidades de criar enredos e figuras com apenas papel e tesoura à mão, durante as aulas de Educação Artística, foram importantes para que aflorasse uma paixão pela arte e pela educação. Ao longo de aproximadamente 30 anos, Rita Noguera dedica-se à realização de oficinas e cursos e já publicou livros sobre arte/educação na Espanha, onde reside há mais de 25 anos. Entre grandes referências e influências em seu trabalho, está a educadora, professora, pesquisadora e escritora Ana Mae Barbosa (leia Encontros publicado na Revista E nº 272, de junho de 2019), que coordenou, junto ao arte-educador Sidiney Peterson, o curso Abordagem Triangular e o Ensino de Artes na Educação Infantil, de seis videoaulas (15 minutos cada), que estará disponível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo no primeiro trimestre de 2022. Nele, Rita Noguera participa de duas aulas, nas quais fala sobre o fazer artístico.

 

DETALHES FAZEM DIFERENÇA

Posso dizer que a arte me acompanha desde pequena, mas de uma maneira transversal. Eu não tinha contato com a arte de museus, de teatro, mas escutava bastante música em casa e a minha mãe cantava muito enquanto eu fazia as tarefas da escola. Penso que a arte do dia a dia, dos detalhes, é o que me despertou para ser sua grande admiradora nos diferentes âmbitos. Meus pais gostam muito de plantas e meu avô tinha horta, coelhos e porcos. Em casa nunca se jogava nada fora porque tinha quebrado ou gastado: tudo podia servir para outra coisa, podia ser aproveitado. E meu pai sempre foi autônomo e em casa nunca faltou nada, mas sempre soubemos o que custava conseguir cada passo. Penso que, olhando para esse fato, minha família sempre foi muito criativa e poucas vezes se falava de problemas, falava-se de procurar soluções. Lembro que na minha casa nunca compramos uma árvore de Natal e que a cada ano pegávamos um galho caído. Minha mãe e eu éramos as responsáveis por deixar o galho com cara de árvore de Natal e elas eram únicas. Penso que a arte que a minha mãe tem para cozinhar também me influenciou muito.

 

TESOURA E PAPEL

Depois dessa influência desde pequena, era fácil desfrutar da arte. Eu gostava de desenhar e adorava recortar. Para me ver feliz, bastava me dar tesoura e papel. Entre 12 e 14 anos estudei em uma escola municipal e me lembro de duas professoras de Educação Artística: uma de manualidade, só que eu gostava mais da outra, com mais fundamentos artísticos. Isso me chamava a atenção. Lembro que perguntei a ela o que tinha estudado, pois queria ser como ela. Uma atividade que me marcou muito com essa professora, que acho que se chamava Keiko, foi um projeto que consistia em pintar os vidros da escola no sábado. Eu achei aquilo o máximo: ir para a escola de fim de semana, sem uniforme e poder pintar, me marcou. Anos mais tarde, em 2016, fiquei muito surpresa no Seminário Histórias da Arte/Educação: Diálogos com Ana Mae Barbosa na Unesp, quando Ana Mae falou sobre o Festival Multicultural e Multimídia, que aconteceu em Campos do Jordão em 1983 e que, entre tantas atividades realizadas pelos professores, e propostas pensadas para que levassem práticas para a escola nos fins de semana, acho que ela se referia à professora Keiko. Não posso ter certeza, mas, fazendo contas, acho que sim. Para mim essa conexão de tempo e espaço de algo que me marcou tanto quando criança explica a conexão com pessoas que seriam tão fundamentais na minha vida profissional. E um detalhe: curiosamente, aos 14 anos, vim à Espanha pela primeira vez para conhecer a minha família espanhola, e o primeiro museu em que entrei na minha vida foi o Museu do Prado. Me sentia uma formiguinha no meio de tantos quadros enormes.

 

TRILHA PROFISSIONAL

Percebo que a arte/educação parece que me encontrou de maneira natural, sem que eu fosse muito consciente. Mesmo que aos quatro anos eu falasse que queria ser professora de desenho e dos 11 aos 14 eu desfrutasse das aulas de Educação Artística, não era claro que eu fosse me dedicar a essa área. Tenho dois irmãos mais velhos que estudaram Engenharia Civil e meu pai trabalhava com terraplanagem. A relação da família com o campo e a horta é muito forte. No entanto, minha tia foi a primeira mulher a terminar uma faculdade na família e ela fez Administração de Empresas. Então, para mim foi horrível a hora de pensar no que iria estudar. Queria uma universidade pública para que meus pais não tivessem que pagar e que eu pudesse trabalhar ao mesmo tempo. Por isso prestei para Administração de Empresas na Universidade de São Paulo (USP) e Engenharia Agronômica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Também prestei para Arquitetura no Mackenzie, a única particular, e não queria estudar na Universidade Estadual Paulista (Unesp) por ser fora da cidade, mas minha amiga Karina Almeida foi quem me avisou que em São Paulo está o Instituto de Artes e que ela achava que essa carreira podia combinar comigo. Gostei da ideia e me inscrevi para o vestibular da Unesp: foi o único em que passei e na segunda chamada.

 

SEGUNDA ESCOLA

Em 1991, comecei a faculdade e comecei a trabalhar em uma escola infantil como auxiliar. A escola estava começando a passar do método tradicional, com fichas, ao método construtivista. Aprendi muito com as minhas colegas de trabalho Gisele Massa, Alessandra Strano e Luciana Miranda. Era uma equipe ótima. Uma das coordenadoras, Ana Maria Escobar, escutava as ideias que eu trazia da universidade. Eram propostas para crianças mais velhas, uma vez que na universidade não se falava da etapa infantil. Ana Maria me ajudava a adaptar as propostas para as crianças de dois a três anos, que eram com as quais eu trabalhava. Lembro até hoje de uma frase que Ana Maria nos falou em uma reunião: “A escola só vai ter o seu verdadeiro sentido quando ela deixar de ser esse enorme elefante branco dentro da sociedade”. Ensinar com sentido, com significado, relacionar um tema ao outro, realizar atividades de reciclagem de material com as crianças… Tive muita sorte de começar a trabalhar em uma escola como o Núcleo Educacional Bosque do Morumbi, que naquela época também já trabalhava a inclusão. Eu sempre digo que realizar a licenciatura em Educação Artística, com habilitação em Artes Plásticas, ao mesmo tempo que trabalhei nessa escola infantil de linha construtivista, fez com que eu me apaixonasse pela arte/educação. Senti que era aquilo a que iria me dedicar. Por isso digo que, refletindo bem, acho que foi a arte/educação. que me encontrou de maneira natural. Na verdade, salvou a minha vida profissional, pois, depois de adulta, já na Espanha, aos 28 anos, descobri que era disléxica e por isso a ortografia e a leitura sempre foram complicadas para mim. Como fiz uma licenciatura totalmente prática, isso me possibilitou poder realizar a universidade sem maiores dificuldades.

 

A ARTE É, SEM DÚVIDA, UMA FERRAMENTA DE COMUNICAÇÃO E

CONSCIENTIZAÇÃO MUITO POTENTE E NECESSÁRIA NOS DIAS DE HOJE

 

 

REFERÊNCIAS NA BAGAGEM

Já levo 30 anos trabalhando com arte/educação.. Desse total, 25 trabalhando na Espanha, com um breve intervalo de pouco mais de dois anos nos Estados Unidos, onde também morei e tive a oportunidade de me dedicar à arte/educação. como voluntária em diferentes projetos. A minha grande referência na área se deu ao conhecer a professora Ana Mae Barbosa e a Abordagem Triangular no 2º Congresso de Arte Infantil na Universidade Complutense de Madrid, em 1998. O seminário foi organizado pelo Departamento de Didática da Expressão Plástica, dentro da Faculdade de Belas Artes. Nessa época, eu cursava os créditos do doutorado com professoras como Noemi Martinez Diez e Marian Lopez Cao. Tenho contatos com muitas arte-educadoras do Brasil, pois Ana Mae, com o passar dos anos, foi me apresentando profissionais incríveis como: Leda Guimaraes, Vitoria Amaral, Fernanda Jalles, Fernanda da Cunha Fava, Rita Inês Petrykowski, Daniella Zanellato, Analice Dutra Pillar. Na Espanha, também fui conhecendo muitos profissionais dedicados à arte/educação, com quem realizei e realizo colaborações, intercâmbios enriquecedores, e que vêm de formações e campos de atuação bem diferentes do meu, como Alicia Weschsler, Janet Val, Sandra Sevita, Noemi Peña, María Arango, Alfredo Palacios, Amalia González, Laura Szwarc. É importante sinalizar que na Espanha atuo na área da educação não formal. Em atividades extraescolares, ateliês de arte em família, formação para adultos, atividades em museus.

 

DIFERENTES CONCEPÇÕES

Até hoje, quando digo que sou licenciada em Educação Artística, as pessoas seguem se surpreendendo, pois na Espanha não existe essa formação específica. Não existe um professor especialista em Educação Artística e sim professores generalistas com alguma preparação em Educação Artística. Existem cursos de especialização, mestrados e doutorados, mas essa trajetória da arte/educação como disciplina no Brasil tem outra estrutura. Acho importante ressaltar que percebo que as pessoas profissionais que trabalham com o ensino da arte, tanto no Brasil quanto na Espanha, valorizam a necessidade de relacionar temas relevantes como meio ambiente, obras de mulheres artistas, trabalhos com arte e natureza, arte e ecologia, arte e artesanato ou abrir as portas dos museus para famílias com crianças pequenas. No entanto, há cada vez mais livros de arte de qualidade para crianças. Gosto de ver o lado positivo e acredito que temos características similares que nos alimentam. Acho que temos que continuar aprendendo uns com os outros para continuar avançando na valorização das artes na educação. Não precisamos ser melhores que ninguém, podemos aprender com as trocas.

 

DESDOBRAR SENTIDOS

Para mim a arte é uma ferramenta essencial nos dias de hoje. Aqui trago uma frase que Ana Mae disse no 2º Congresso Internacional Online entre Arte, Cultura e Educação – Reconexões da Abordagem Triangular no Ensino das Artes, em outubro deste ano. “A arte é a fibra ótica da educação”. A arte é um veículo da comunicação fluida do passado com o presente, que mostra diferentes pontos de vista do nosso entorno, com diferentes estéticas que nos fazem pensar, contextualizar ideias, ler imagens e nos instigar para o fazer artístico. As bases da Abordagem Triangular são parte necessária de um conjunto para pôr em prática as diferentes linguagens da arte e para que nos comuniquemos com elas e por meio delas. A arte permite que nos comuniquemos sem confrontações, ela abre uma via de comunicação para provocar o pensamento e o debate interno de cada um. Os artistas nos contam temas importantes que nem sempre são difundidos nos meios de comunicação. Este ano vi a exposição Joanie Lemercier. Paisajes de Luz, na Fundação Telefônica, em Madri, e uma das obras me surpreendeu muito: A Floresta de Hambach e a Sublime Tecnologia, uma instalação na qual o artista francês mostra o desmatamento de uma das florestas mais antigas da Europa, a 200 quilômetros de Bruxelas, onde foi estabelecida a maior mina de carvão do continente. Ouço muito sobre a Floresta Amazônica, mas eu nunca tinha escutado sobre essa floresta. Não se trata de uma comparação, mas de olhar por que questões econômicas prejudicam nosso planeta. A arte é, sem dúvida, uma ferramenta de comunicação e conscientização muito potente e necessária nos dias de hoje.

 

 

Jugar Con Arte

 

 

O curso Abordagem Triangular e o Ensino de Artes na Educação Infantil estará disponível no primeiro trimestre de 2022 na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo: www.sescsp.org.br/ead

 

 

 

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