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Pontos de Suspensão


Na esteira da última página da folhinha, o 1.999... Reticências mostra, até dezembro, a multiplicidade cultural de um mundo sem fronteiras

O indefectível balanço de fim de ano, desta feita, será radical. Graças ao frenesi causado pelo final do milênio, as respostas para todas as perguntas trazem as palavras "fim", "século", "começo" e, dependendo do grau de esoterismo, "era" e "Aquário". Nada escapa à febre do 2000. Política, esporte e cultura sucumbiram à força das retrospectivas.

Veja o calendário cultural. Não importa o evento - festivais de cinema, entrega de Oscar ou reunião anual de fã clube. Antes de tudo, recebem a alcunha de "o último (ou o maior) do milênio".

Até agora, nenhum profeta mereceu que seu prognóstico fosse confirmado pela frieza dos fatos, mas os entusiastas do novo tempo resistem. Então vamos, também, entrar na contagem regressiva: 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...0. Bum! O bug do milênio.

E junto com a ameaça de paralisação incontinenti das engrenagens do mundo assim que o último átimo dos novecentos expirar, surge, com vigor, a nova palavra de ordem que rege as relações internacionais: globalização. Essa força imaterial pode ser traduzida, a grosso modo, no esmorecimento das fronteiras físicas e no trânsito instantâneo de informações.

Porém, pelo menos no contexto geral, no plano cultural, tal movimento apresenta características ambíguas, pois, entre os países, a padronização de comportamentos confronta-se com o realce das manifestações locais, carregadas de conceitos particulares e tradicionais. Acompanhando a euforia da virada, no limiar do nosso século, é preciso reconhecer o emaranhado de diferenças que delineiam a graça do mundo. Aceitar que, ao contrário de outras épocas, no cenário da cultura internacional não existe nenhuma tendência preponderante: o rock compete com o axé; Hollywood não dita mais padrões.

No Brasil, não é difícil verificar esse movimento. O Sesc de São Paulo, por exemplo, em seus mais de cinqüenta anos de existência, vem se encarregando de trazer ao público as mais diversas expressões artísticas da música, do teatro e das artes plásticas.

Essa preocupação do Sesc em ampliar platéias por meio da diversificação dos espetáculos é notória, mais agora, no esteio fervilhante do século 21, com o megaevento 1.999... Reticências. O título (que deve ser lido como "um ponto nove nove nove reticências") é o que se pode chamar de trocadilho com o momento atual.

Como? Com a palavra, os organizadores: "O número 1999 é muito sugestivo", esclarece Celina Neves, técnica da Gerência de Ação Cultural do Sesc. "Sugere uma série de acontecimentos seqüenciais. Isto é, um pouco do que vivemos atualmente nas artes. Nós temos espetáculos de dança, música, artes plásticas, etc. Uma série de acontecimentos simultâneos, um plano geral, global, mas no qual ainda é possível perceber as diferenças, cada vírgula, ou seja, cada espetáculo podendo ser visto de maneira isolada."

O logotipo do evento é, na verdade, a grafia de seu nome: o número 1999 acompanhado da palavra "reticências". Só que escrito de uma maneira segundo a qual o ponto que separa o primeiro número dos demais fica bem visível, sugerindo um momento de reflexão; os "noves" são desenhados como vírgulas, remetendo à singularidade de cada espetáculo, nacional ou estrangeiro; e a palavra "reticências" substituiu o sinal gráfico que as representa. "Mas o significado gramatical ainda pode ser usado", completa Rosana Cunha, técnica do Sesc. "São como pontos de suspensão num período." Porém, na concepção dos organizadores do evento, os três pontinhos convidam também à interação da platéia com os artistas e os espetáculos. "Há uma expectativa", ressalta Celina. "Está tudo em suspensão mesmo", brinca.

Milênio em Análise

Em termos mais práticos, o evento pretende ser uma amostragem das manifestações culturais do Brasil e do mundo. Mas, claro, sem o caráter de conclusão de século. "E se houvesse uma linha programática dentro desse projeto, não seria justamente a da pretensão de concluir ou fechar o balanço do século ou do milênio", esclarece Felipe Mancebo, assessor da Gerência de Ação Cultural. "Tem muita coisa sendo mostrada neste evento, mas também ainda há muitas a serem vistas, não há um desfecho previsto", conclui. Respeitando a natureza dos próprios acontecimentos, o formato do evento tem uma espinha dorsal, mas não está totalmente fechado, em nenhum dos sentidos. "Mais do que nunca, a filosofia do Sesc está sendo refletida num evento", retoma Rosana. "O que estiver acontecendo de novo, a gente tentará trazer para o 1.999... Reticências". O projeto vem reforçar a idéia de que o Sesc São Paulo por si já é uma rede. Uma entidade formada por 26 unidades na capital e no interior, na qual cada uma delas tem autonomia suficiente para que se desenvolva um trabalho inteligente e diversificado, mas todas conectadas à instituição. Tanto é assim que muitos dos artistas que fazem parte do evento fizeram pequenas turnês pelas unidades, apresentando-se no Sesc Carmo e em Interlagos, por exemplo, para o mais variado público. Aliás, a busca de uma diversidade na platéia é algo comum nas práticas culturais do Sesc.

As Programações - Teatro

Geralmente, um evento pressupõe uma programação centralizada. Este não. Engloba várias. Diferentes no conteúdo e na forma, mas sempre com algo em comum, o que garante a unidade do projeto. "Por exemplo, a maioria dos artistas estrangeiros estão se apresentando pela primeira vez no Brasil", explica Rosana. E mesmo os nacionais trazem trabalhos inéditos ou que estão estreando em São Paulo. É o caso da peça Nowhere Man ("homem de lugar nenhum", em tradução livre), dirigida pelo encenador Gerald Thomas. O dramaturgo que já tinha trabalhado com o Sesc em outras ocasiões, como no evento Lorca na Rua, em setembro do ano passado, desta vez vem unplugged ("desconectado"). Dispensando microfones e efeitos sofisticados de luz e som, Gerald descarta até mesmo o próprio teatro como espaço físico. Perfeitamente instalados numa das salas da unidade do Sesc Consolação, os atores encenaram a história de um artista culturalmente desterrado, o homem de lugar nenhum que confirma o título. O personagem, filho de uma bailarina e de um gigolô, retrata o fim da era moderna. Qualquer semelhança com o nosso momento atual não é mera coincidência. O próprio despojamento que Gerald levou em cena casa com a estética minimalista que alguns quiseram atribuir aos anos de 1990.

O decênio que termina, considerado a década do "clean" (algo que traz a conotação de limpeza, sem exageros), dispensa grandes explicações, pois dá a impressão de que tudo já aconteceu. Parece que o futuro já nasce obsoleto.

Dance a Música do Mundo

A França marcou forte presença no 1.999... Reticências com quatro convidados. O grupo Metalovoice, por exemplo, une poesia, música e fagulhas, num espetáculo que, na falta de melhor definição, poderia ser chamado de teatro siderúrgico. Além da companhia de dança Montalvo-Hervieu com o espetáculo Paradis e dos percussionistas do Baron Samedi e sua mistura de gaitas de fole e tambores japoneses, o Sesc Vila Mariana assistiu a ópera rap Malcom X, dirigida pelo dramaturgo francês Mohamed Rouhabi.

No palco, a multiplicidade cultural atingiu o ápice. O ritmo sincopado do hip hop foi vertido para o português e para o francês, sem perder o compasso. Cantores de rap franceses e brasileiros se alternaram no microfone para transmitir mensagens contra o preconceito e a violência, enquanto o próprio Mohamed encarnava o líder negro, assassinado em 1963, a disparar fragmentos dos discursos do ativista. Ao mesmo tempo, foram entoados os cantos lamuriosos dos povos africanos.
Teve ainda música japonesa com Takashi Kako, canadense com a banda Nexus e rock alemão com o grupo Einstürzende Neubauten, formado em 1980 e famoso por já ter utilizado sons de poços de petróleo em chamas durante a Guerra do Golfo em uma de suas canções.

O estilo industrial e denso da banda fez sucesso entre os brasileiros e lotou a Praça de Eventos do Sesc Belenzinho no dia de sua apresentação, prova de que a música é, como já foi dito, uma linguagem universal. O vocalista do grupo, Blixa Boldger, que também toca com o cantor americano Nick Cave, em entrevista exclusiva à Revista E, reforçou essa noção: "Não é porque uma música é feita por alemães que ela é alemã", disparou. Blixa relega à mídia a definição dos vários estilos e não se incomoda com os rótulos que impõem à sua música. Rock, punk, tecno? "Não importa", disse ele. "A música não escolhe caminhos."

Michel Boiton, do grupo francês Baron Samedi, faz coro ao colega: "É imprevisível o que vai acontecer com a música. Da nossa, por exemplo, pode-se dizer que ela é francesa porque recebe uma leitura francesa, mas por outro lado não caracteriza nosso país".

Se você acha que isso é tudo, enganou-se. O evento foi aberto dia 22 de setembro com a dança havaiana do grupo Mauli Dance Group, descoberto pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo, e será encerrado no dia 21 de dezembro por... bem, as coisas ainda continuam acontecendo.

O Ano 2000 na Telona

Como parte das programações que compuseram o 1.999... Reticências, uma mostra de cinema realizada no recém-reformado CineSesc, de 5 a 8 de outubro, trouxe oito trabalhos de cineastas de vários países, que tinham em comum o tema da virada do século. Foi o 2000 Visto por... no qual todas as histórias se passam no dia 31 de dezembro de 1999. Para o americano Hal Hartley, essa é a data em que Jesus volta para abrir o Livro da Vida; de Mali, o cineasta Abderrahmane Sissako expôs o ressentimento da África pela América no A Vida Sobre a Terra. A produção franco-húngara de Ildiko Enyedi, Tamás e Juli, mostrou o encontro de um jovem casal no último reveillon do século. O francês Laurent Cantet filmou a fuga de um grupo de amigos para uma ilha, no final do milênio, em Sanguinários, a Ilha do Fim do Mundo. Um giro pelos subúrbios de Madri durante a virada é o enredo de Minha Primeira Noite, do espanhol Miguel Albaladejo; cinema "made in Taiwan" pela lente de Tsai Ming Liang com o misterioso The Hole. A história de um vendedor de batatas fritas foi contada pelo belga Alain Berliner em O Muro. Por último, o canadense A Última Noite encerrou o pequeno festival mostrando como será o terror e a aceitação do fim do mundo.

Rizoma, o Web Evento

O Sesc OnLine, unidade virtual do Sesc, criou um evento especial para o 1.999... Reticências. "Como o projeto pretende mostrar e falar das coisas do final do milênio, em vez do site simplesmente cobri-lo, nós criamos um evento na Internet", explica Malu Maia, coordenadora do Sesc OnLine.

O símbolo que representa o evento na página de abertura do site é a figura de um gengibre. Essa raiz de gosto ardido foi a melhor maneira encontrada pelos organizadores para simbolizar o conceito de conexão infinita do evento. O mesmo motivo explica o nome Rizoma. "O rizoma é um caule que parece uma raiz", esclarece Malu. "Os filósofos franceses Félix Guatarri e Gilles Deleuze o usaram para desenvolver um conceito que, em botânica, explica ser impossível detectar o começo de uma rede". Para ilustrar a idéia basta pensar num campo coberto por grama. "Há vários caulezinhos que as ligam à terra, são os rizomas delas, só que não dá para saber onde estão, qual deles brotou primeiro, onde começam ou terminam", explica.

O pensamento dos filósofos sugere ao indivíduo uma busca da inter-relação entre as coisas, ignorando prioridades. "Ele diz, por exemplo, que um livro não pode ter um único autor, pois o escritor buscou informações em várias outras fontes para criar aquela obra."

A grosso modo, esse é o conceito simbolizado pela figura do rizoma: uma teia de idéias e ações sem começo e nem fim detectáveis. "Essa é a idéia da rede de computadores. A idéia de que não existe nenhuma central no comando da Internet. Se você tirar um computador dessa rede, não irá acontecer nada. Não há um computador-mãe que uma vez removido inicia o desmoronamento da rede", define Malu.

O que mais explicita essa multiplicidade total de oportunidades oferecida pela Internet é o que se convencionou chamar de hipertexto. Ou seja, quem está lendo um texto de um site pode, por meio de uma palavra-chave, acessar um outro texto e assim sucessivamente. A alquimia do 1.999 e do Rizoma foi juntar as idéias de Deleuze e Guatarri com a natureza da Internet. "A partir daí, desenvolvemos esse site com uma série de séries", pondera a coordenadora.

O Rizoma, que conta ainda com a webring (algo como "anel de redes"), uma "seção" que permite a visitantes colarem páginas suas ao site, foi inaugurado com a série Vozes, que traz as falas dos filósofos padrinhos da idéia, traduzidas para o português (a próxima série se chamará Tempo). "São as infinitas maneiras de mostrar o evento", classifica Malu. Vozes é interminável. Elas funcionam como registros da programação do 1.999. Além disso, todo o conteúdo do site está em HTML (linguagem básica utilizada pela Internet) e também em VRML (versão mais sofisticada que permite a navegação em três dimensões, com "volume").

Com o Rizoma, o Sesc OnLine explora a essência da hipertextualidade, que, segundo os organizadores, pode ser vinculada ao próprio pensamento humano, vivo, associativo e livre para escolher caminhos.