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A memória no cinema e na TV

MÔNICA ALMEIDA KORNIS é doutora em Ciências da Comunicação, na área de Cinema, Rádio e Televisão, pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). É responsável pelo acervo audiovisual do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Como pesquisadora, há mais de uma década trabalha com análises sobre a relação entre história, mídia, cinema e televisão, e também com documentação audiovisual. Nos estudos sobre imagem e narrativas históricas, publicou artigos com análise de minisséries históricas da Rede Globo, como Anos Dourados e Anos Rebeldes. É autora do livro Cinema, Televisão e História. Atualmente estuda as narrativas biográficas produzidas pelo cinema brasileiro recente no contexto de regimes ditatoriais.

Como pesquisadora no campo das ciências sociais, como você começou a interessar-se por cinema e TV? E quando começou a estudá-los sob a perspectiva da história?

Adolescente, acompanhava, mesmo sem ser militante, os debates políticos do final dos anos 60 e começo dos 70. O meu interesse pelas questões sociais levou-me a fazer Sociologia na PUC do Rio e depois na Unicamp. É também dessa época o meu interesse por cinema. Frequentava a Cinemateca do MAM e o cine Paissandu, no Rio, e acompanhava o cinema moderno: no Brasil, o Cinema Novo e as diversas vertentes modernas no mundo inteiro. Já a história entrou na minha vida quando comecei a trabalhar no CPDOC da FGV e entrei em contato com a história recente. Em conversas informais, o professor e amigo Ismail Xavier incentivava-me a estudar a relação entre cinema e história. A televisão em particular. Ismail me deu forças, porque eram poucos os estudos sobre isso no Brasil. Fiz o doutorado na ECA na área de televisão e história, tendo como orientador o professor Ismail Xavier.

Qual a importância e quais as particularidades do documento audiovisual como fonte histórica?

Com o cinema, um maior número de pessoas começa a ter referências novas. É um fenômeno do século 20, com que os historiadores e cientistas sociais têm de lidar. Para entender como foi o pós-guerra, por exemplo, na Itália, é interessante assistir aos filmes de Vittorio de Sica e Rosselini. São dados fundamentais, porque falam sobre a crise social, sobre a crise das pessoas, as perseguições. O cinema e a televisão são ao mesmo tempo espelho e reflexo da sociedade e da história. E que temas o cinema ainda não trabalhou? Não existem muitos temas que ainda não tenham sido tratados pelo cinema. Mas o importante são as diferentes maneiras de se trabalhar com um mesmo tema, que pode ser diferente de um filme para outro, diferentes visões. Por isso é importante relacionar um conjunto de filmes que tratem de um mesmo tema para a construção de uma memória. Porque a memória é exatamente isto: uma construção. Hoje, qualquer um conhece Nova Iorque ou Paris mesmo sem ter ido até essas cidades, simplesmente porque viu na televisão. Então é possível ter uma visão dessas cidades, ter uma referência. E isso é ainda mais acelerado pelas tecnologias digitais, a Internet, o Youtube, ainda mais agora. Então os historiadores e cientistas sociais precisam achar formas de saber como lidar com isso. 

Pensando nos registros audiovisuais como construções da realidade, o historiador ou cientista social deve fazer distinções ao analisar uma peça de documentário e uma de ficção? Da mesma forma, há diferenças de análise entre cinema e TV?

Seja uma ficção ou um documentário, os dois são uma construção da realidade. Um documentário ou uma reportagem de tv sobre as enchentes no Rio de Janeiro, por exemplo, mostram que aquilo está mesmo acontecendo, mas existe uma maneira de como essa informação chega, qual a narração utilizada, que recorte foi usado. Qualquer filme é um documento, não importa se é ficção ou documentário. Um filme está sempre tangenciando as questões do limite entre ficção e documentário. Todo filme ou programa de TV reconstrói uma realidade.

Quais são os cuidados que devem ser levados em conta pelas emissoras de TV e centros de documentação audiovisual públicos e privados, para a construção de um acervo audiovisual?

É necessário ter, muito antes de uma preocupação pessoal, uma consciência das instituições em preservar esses documentos. Ter verba, local apropriado, estrutura, estudos. Isso também se aplica a empresas privadas, que também precisam ter consciência de que seu acervo deve ser preservado, de que seus arquivos devem ser disponibilizados ao público, para consulta, pesquisa. Para isso é necessário investimento. Além disso, é preciso formar profissionais de restauração e preservação, inclusive nos novos suportes que estão chegando, digitais. Mas também nos tradicionais, em película, porque o digital não resolve o problema da película, é preciso continuar preocupando-se em preservar os filmes em película.

Que seleção deve ser feita nos acervos de emissoras pensando em formar um conjunto de memória audiovisual que possa ser ferramenta de pesquisa?

As emissoras de TV devem guardar tudo o que produzem. Certamente com o tempo muitas delas perderam algumas coisas. Mas eu não acredito que elas devam fazer uma seleção de seu acervo: tudo deve estar guardado. Quando um pesquisador está pesquisando sobre um assunto e precisa ver como ele foi tratado na tal minissérie, a seleção não pode existir, ele deve ter acesso a tudo o que for possível. É como pensar em selecionar que jornais serão guardados no Arquivo Público ou na Biblioteca Nacional. Isso não se discute: é claro que eles devem ser todos guardados.

Como os pesquisadores brasileiros têm lidado com a questão da memória audiovisual?

Os historiadores brasileiros estão interessando-se pela questão, mas volto a dizer que existem poucos, que há pouco estudo. São mais de cem anos de cinema e 60 anos de televisão. Isso precisa ser mais tematizado. E, mesmo que se fale sobre isso, a tendência é que se lide com a questão de maneira simplista, não considerando o audiovisual em sua complexidade. Precisa haver uma maior sofisticação e reflexão sobre o universo da imagem. O filme Tropa de Elite, por exemplo, é um fenômeno social, e um prato cheio para cientistas sociais. Há um fenômeno social por trás da explicação para o que atrai o público nesse tipo de filme, ou seja, trata-se do universo da recepção do público. Porque até aqui estamos falando da emissão, de como o filme é feito, do contexto de produção. Mas o universo da recepção é ainda mais complexo e menos óbvio, impossível de simplificar.

Como a comunidade acadêmica internacional enxerga a importância da televisão brasileira e dos estudos brasileiros na relação entre audiovisual e história?

Existe a consciência internacional da importância da televisão brasileira, mas existem fenômenos semelhantes no mundo inteiro; franceses, alemães estudam, em todos os países se estudam o cinema e a TV em relação com a história. O Brasil tem grandes sucessos internacionais, como a novela Escrava Isaura, e a grande exportação das novelas brasileiras. Mas o fenômeno de pensar a TV e o cinema como história e como construção de identidade nacional é mundial. O próprio cinema americano, Hollywood, tem essa força.

Você acha que é possível comparar o papel de construção de identidade nacional das novelas no Brasil com o da indústria cinematográfica de Hollywood para os Estados Unidos?

Sim, acho que é possível fazer essa comparação. Hollywood tem a mesma força, nos Estados Unidos, de formar uma identidade nacional, que as novelas também têm no Brasil. Guardando as devidas proporções, é claro, pois as novelas são mais destinadas ao consumo do público interno, enquanto os filmes hollywoodianos foram para o mundo inteiro. O Brasil não teve, no cinema, a mesma força de Hollywood nos Estados Unidos, mas a indústria televisiva cumpriu esse papel.