Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Dos arquivos históricos ao Big Brother: uma reflexão sobre registros, documentos e pessoas no século XXI

KAREM WORCMAN

Quando comecei a empreitada do Museu da Pessoa, cerca de 20 anos passados, a ideia de constituir um espaço virtual que permitisse a toda e qualquer pessoa registrar sua história de vida era bastante inusitada. O objetivo era ampliar, por meio de narrativas de pessoas, as perspectivas e olhares sobre nossa sociedade. Naquele momento, o mundo da cultura e o da comunicação já estavam transformando-se e a Internet passou a inverter o papel dos indivíduos não só na comunicação, mas também na produção da memória.

Desde a implantação do que se supõe seja um dos primeiros “arquivos” no mundo, no quarto milênio a.C., a produção de imagens e registros significou sempre um grande esforço social. Obviamente que este esforço veio permeado pelos valores de então. Não é à toa que os retratos pintados representassem preferencialmente as famílias reais; ou ainda, que os arquivos estivessem sempre conectados aos palácios, aos templos e ao Estado. Não faz nem 200 anos que a fotografia passou a ser um elemento constitutivo de registro e memória. Menos de cem que ela se tornou uma possibilidade para que famílias e pessoas comuns pudessem produzir suas próprias imagens. Em menos de 50 anos tudo isso mudou. Hoje um adolescente, esteja ele na África ou em Nova York, tira milhares de fotos e faz vídeos de seu show predileto. O esforço em registrar deixou de existir e, por consequência, o que está registrado não é mais necessariamente memória. Não é mais seleção.

Por outro lado, não foi somente a possibilidade de produzir registros pessoais que mudou. A ideia de que a vida privada tem valor e deve ser compartilhada veio se fortalecendo. E isto também tem muito a ver com as novas tecnologias. Anthony Giddens (Mundo em Descontrole: o que a globalização está fazendo de nós) diz que “a comunicação eletrônica instantânea não é apenas um meio pelo qual notícias ou informações são transmitidas mais rapidamente. Sua existência altera a própria estrutura de nossas vidas, quer sejamos ricos ou pobres. Quando a imagem de Nelson Mandela pode ser mais familiar para nós que o rosto de nosso vizinho de porta, alguma coisa mudou na natureza da experiência cotidiana.” A popularização da Internet transformou de fato o papel dos indivíduos na produção e troca de informações. Os blogs e as redes sociais reverteram de vez os conteúdos na Internet, tornando a vida privada um foco de atenção. De leitoras a produtoras de conteúdo, as pessoas passaram a perceber que o registro de seu próprio cotidiano era factível e que, além de interessar a si próprias, podia e devia ser publicamente compartilhado.

Quais são nossas questões hoje no que se refere a entender história e identidade como sendo nossas? Pois fomos, em menos de cem anos, de um extremo a outro: da total institucionalização da cultura e da memória a sua banalização. O que passou a reinar foi a ideia de interatividade – e a ideia de o dia a dia de pessoas comuns também poder ser espetacularizado. Neste sentido é que chego ao Big Brother, programa exibido pela Rede Globo. Em sua décima primeira edição no Brasil, presente em cerca de 42 territórios do mundo (http://www.endemol.com/programme/big-brother), o programa é quase um pesadelo para todos os que sonhávamos com a possibilidade de valorização das pessoas comuns e com a possibilidade, que a interatividade traria, de aumentar o poder participativo do público. No Big Brother, acompanhamos o dia a dia banal de pessoas (quase) comuns. E podemos votar!

Mas é isto de fato uma democratização de nossa cultura, de nossa memória? Obviamente que não. Pois, a meu ver, ampliar as possibilidades de registrar acontecimentos e trazer à tona o dia a dia de cada um só é transformador se estiver permeado de significado. Para que este significado seja validado, é necessária a ritualização. Quase como se depositássemos, mesmo que em nosso mundo privado, alguns momentos, alguns fatos, alguns objetos no altar de nossas vidas. Aí retomaríamos a ideia de que tais fatos, ainda que pessoais, são parte de nossa memória pessoal e social. Ou seja, são coisas pelas quais vale a pena nos esforçar, para que permaneçam no tempo. O esforço terá que mudar de foco, não mais no registro, não mais no objeto. Mas no olhar, no rito, no significado.

Essa divisão é necessária de fato? Creio que sim. Pois assim como a diferença entre música e ruído está na articulação entre os sons, também na memória é a seleção entre o que é significativo e o que é banal o que pode nos salvar da amnésia.

--

Karen Worcman é idealizadora e diretora do Museu da Pessoa. Site: www.museudapessoa.net.

Leia a edição completa: