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Mulher, sem vergonha

Depois do nascimento do meu fi lho Pedro, eu me senti motivada a discutir o tema maternidade. Realizei então o documentário de longa-metragem Leite e Ferro, que trata da amamentação no cárcere. A intenção era investigar como a experiência da maternidade acontecia em uma situação limite, tanto física quanto psicológica.

Em 2007, comecei a frequentar diariamente o Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa, um lugar que abrigava detentas em fase de aleitamento. Foram dois meses de pesquisa de campo. Lá, estavam 70 mulheres com seus bebês. Foi uma experiência incrível – muitas vezes dolorosa – mergulhar em um universo que não me pertencia.

Após viver tudo isso, percebo que o que fizemos ali não é diferente do que ocorre com um “bando de mulheres” a uma mesa de bar ou em qualquer outro lugar. Mulher gosta mesmo de falar e de ouvir casos de suas iguais e, claro, eu não fujo à regra.

Se é possível fazer a generalização – sem sermos acusados de preconceituosos – de que mulher gosta de falar, podemos também dizer, felizmente, que mulher gosta de filmar. Mas foi um longo caminho até que mulheres conseguissem discutir “assuntos de mulheres” no cinema. Nossa entrada na tal da sétima arte se deu através das “divas”. A beleza feminina diante de uma lente sempre apontada – diretor e diretor de fotografi a – por um homem. Tempos depois, avançamos para um protagonismo, mulheres
com desenhos psicológicos mais complexos e, agora, assumimos a direção e muitas funções técnicas que eram exclusividade masculina.

No Brasil, foi a cineasta Cleo de Verberena que deu o pontapé inicial na trajetória das diretoras com a realização de O Mistério do Dominó Preto, em 1930. Depois dela vieram algumas outras que contribuíram para a construção da nossa história fílmica e garantiram a discussão do papel da mulher na telona. Vale lembrar também que a responsável pela chamada retomada do
cinema nacional nos anos 90 foi Carla Camurati com o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil. Uma retomada com toque – e retoque – feminino.

Algumas cineastas internacionais me chamam a atenção. Uma delas é Maya Deren, que mudou a lógica dos filmes americanos de vanguarda dos anos 1940 e 50 com a produção de Meshes of the Afternoon, em 1943, reconhecido como um marco do cinema experimental.

Agnès Varda, através de seus fi lmes, foi a mulher que prenunciou a Nouvelle Vague na França. Além das contribuições estilísticas para o cinema, elas são ainda importantes para a discussão do feminino no cinema, no sentido mais amplo que essa expressão  possa sugerir.

Assumir a direção e funções técnicas fundamentais como fotografia e montagem não apaga a figura da atriz. Papéis memoráveis vividos na telona questionaram muitos padrões de comportamento. Um dos que me vêm à mente é Catherine, vivida por Jeanne Moreau em Jules e Jim. Nesse fi lme, ela vive um labirinto de paixão com dois homens em uma história de amor nada convencional.

Grandes nomes como a “femme fatale” Marlène Dietrich, a “mais que heroína” Ingrid Bergman e “a deusa sexual dos anos 50”, Marilyn Monroe, deixaram marcas no cinema e na história das mulheres.

O bom é perceber que chegamos a um momento em que o gênero não é condição para essa discussão. O feminino está no olhar das mulheres, mas está também na mira de Pedro Almodóvar, que carrega nas cores para falar com propriedade do feminino.
Pensando bem, as grandes mulheres/personagens do cinema foram criadas e dirigidas por homens e, na minha opinião, isso não é problema algum. É bonito ver que o feminino também pertence aos homens. O que faz sentido é ser assunto corriqueiro, pauta de
discussão e interesse, já que falar de mulher é falar, “somente”, da vida e do mundo.

O feminino hoje é impossível de enquadrar, de encaixar e, por isso, torna-se indefi nível. O termo se espalha e segue variadas direções. Não pertence à esfera do palpável. O que é feminino? Impossível responder, porque não existe mais uma gaveta que o comporte. O feminino está diluído. Está em tudo e em todos.

Depois do filme com as mães presas, segui fazendo outros. De algum modo, todos apontam para o feminino. Nos meus últimos trabalhos dividi a direção com dois homens. No longa-metragem Olhe Pra Mim de Novo, o parceiro foi Kiko Goifman.

No curta Vestido de Laerte, dividi a direção com Pedro Marques. Os dois tratam de transexualidade por óticas diferentes. No primeiro, Syllvio Luccio, personagem central, se define assim: “Nasci mulher, fui lésbica e agora sou homem”. Na ficção Vestido de Laerte, a cartunista Laerte é o foco.

Vestidos, batons, calças jeans ou terno. O feminino está sempre em deslocamento. Cada vez menos a genitália como forma de medida. Vem-me à cabeça a ideia de uma mulher sem vergonha. Que bom, sem vergonha  nenhuma. Nenhuma. O feminino está livre. Ainda bem.

Cláudia Priscilla é cineasta e diretora do longa-metragem  Leite e Ferro (2010). É autora do  lme Sexo e Claustro, em exibição pelo Sesctv neste mês, na mostra Feminino Plural.