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José Álvaro Moisés





O cientista político avalia o mal-estar da democracia brasileira que veio à tona nas manifestações de junho




Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. É autor de Os Brasileiros e a Democracia (Ática, 1995), entre outros, e organizador de Democracia e Confiança: Por Que os Cidadãos Desconfiam das Instituições Públicas? (Edusp, 2010) e A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia (Edusp, 2013), com Rachel Meneguello. Em entrevista à Revista E, Moisés analisa as manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho. “Você tem uma espécie de contradição daquele mito que está no ensaísmo brasileiro (...) que em determinado momento chega à conclusão de que a democracia no Brasil é um equívoco”, afirma. “Essas manifestações estão indicando que se tem uma sociedade civil nova”. A seguir, trechos.



O país pegou fogo com as manifestações de junho. Agora, passado um tempo, como você analisaria esse movimento?

 As manifestações mostraram um sentimento de mal-estar com a democracia brasileira. Isso é uma coisa paradoxal, até certo ponto, pois temos democracia no Brasil, ocorreram avanços extremamente importantes. Ao mesmo tempo, quando esse segmento mais jovem, que está numa faixa entre 20 e 30 anos, nasceu, o país estava se democratizando. O mal-estar decorre do fato de que as pessoas perceberam que algumas coisas próprias da democracia estão funcionando mal. O que gera insatisfação, desconfiança, descrença, principalmente das instituições de representação, Congresso Nacional, partidos políticos. Exatamente porque elas nasceram sob a égide da democracia, elas estão cobrando a promessa da democracia. 



Comparativamente com os regimes autoritários, totalitários, isso indica não apenas que as pessoas podem votar, que é uma coisa certamente muito importante, mas que além do voto as pessoas podem colocar no sistema os seus interesses, suas preferências, inclusive as suas utopias. Acho que esse foi o grande motivador. Claro que isso sempre depende de um estopim. Quando há um curto-circuito, tudo aquilo que estava depositado, reservado, vem à tona. No nosso caso, o que detonou o processo foi a reivindicação em relação ao aumento da tarifa do ônibus. Mas, veja, não foi só a tarifa do ônibus, foi uma percepção do que veio a se chamar  mobilidade urbana, de que, nas grandes metrópoles brasileiras, estamos paralisados no trânsito. 



A partir daí, as pessoas perceberam uma série de questões. Por exemplo, isso impede que as pessoas cheguem aos hospitais. Quando chegam, o serviço de atendimento público é precário. As pessoas também chegam tarde às universidades que ficam localizadas em lugares distantes. Ou seja, a questão do ônibus trouxe à tona uma série de questões que têm a ver, por um lado, com a qualidade dos serviços públicos e, por outro lado, com a própria qualidade da democracia. As pessoas se perguntaram: que democracia é essa em que não podemos ter voz que chegue aos centros de decisão?



Você acha que há um descompasso entre o que parece uma sociedade civil moderna e um Estado antiquado? Hoje essa revolta vem dos filhos da estabilidade econômica e democrática?

 Sim, com toda a certeza. Eles são filhos mais informados e mais conectados dessa estabilidade. Eles têm uma tecnologia disponível para fazer contato e produzir reações de maneira imediata. Isso é inteiramente novo. Na medida em que essa disponibilidade tecnológica permite que a comunicação seja imediata, essa reserva de informação mais qualificada sobre o funcionamento da democracia e da economia transforma-se em um estopim muito forte. A sociedade civil está mais avançada do ponto de vista das suas preocupações e do que ela espera do funcionamento do Estado. Nesse sentido, talvez o exemplo mais importante seja o acesso à Justiça. Ela se modernizou, foi criado o Conselho Nacional de Justiça. Num certo sentido, está havendo o esforço de controlar o nepotismo dentro do Judiciário. Mas, ainda assim, a Justiça é muito lenta, e o acesso é difícil.



Essas manifestações se deram sob a égide de uma situação econômica nacional favorável. Geralmente, as crises são detonadas na miséria. Isso mostra uma maturidade?


É por essa razão que digo que a motivação mais importante não foi crise social ou econômica, embora houvesse alguns indícios de problemas na área econômica. Principalmente um retorno da inflação, uma diminuição da taxa de emprego que estava vindo desde o ano passado num ritmo melhor... Começou a haver um ou outro sinal de desaceleração da criação de oportunidade. Mas o foco foi político, não econômico nem social. Tendo a experiência democrática, as pessoas estão cobrando mais dessa experiência. As pessoas cobram transparência, agilidade nas decisões, maior diálogo, aperfeiçoamento dos serviços públicos, que são mantidos pela contribuição dos que pagam impostos.



As invasões que tentaram fazer ao Congresso em Brasília, à Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro, à Câmara Municipal em São Paulo e outras cidades... Curiosamente, são os edifícios onde está sediado o Poder Legislativo. As pessoas querem melhorar o funcionamento dessas instituições, elas têm que estar a serviço das populações, têm que estabelecer um nexo e de alguma maneira ouvir a população – coisa que não está acontecendo. Não é pouca coisa.
Esse mito da não participação da população brasileira...



Acho que as manifestações desse ano estão na sequência de coisas que vinham acontecendo no Brasil desde os anos 1970. No século passado, tivemos as grandes reivindicações que deram origem ao novo sindicalismo. O Lula liderava assembleias de 300 mil pessoas, não era pouca coisa. Depois começou a haver uma série de manifestações em função da anistia, para o retorno das pessoas que estavam exiladas. Depois, as manifestações das Diretas Já, que foram as maiores manifestações políticas do Brasil contemporâneo, com 2, 3 milhões de pessoas em São Paulo, no Rio etc.



Há uma espécie de contradição daquele mito que está no ensaísmo brasileiro – Oliveira Viana, Alberto Torres, mesmo em alguns autores como o Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda – que em determinado momento chegou à conclusão de que a democracia no Brasil é um equívoco. Uma ideia de que nós não estávamos preparados, de que o povo não tinha uma espinha dorsal adequada para ser participante. Coisa da época da monarquia.



Essas manifestações estão indicando que há uma sociedade civil nova. E uma sociedade civil que não é apenas organizada nas velhas instituições. É uma sociedade civil que se conecta imediatamente. A internet está sendo utilizada a serviço de um aperfeiçoamento da democracia. Se você entrar no Facebook tem uma infinidade de segmentos de sites de cobrança da impunidade em relação à corrupção, por exemplo. Isso, de alguma maneira, tem o potencial de formar uma mentalidade nova sobre o funcionamento do Estado, uma modernização política do Estado, que talvez não tenha ainda ocorrido na dimensão que as pessoas esperavam.


 

Há um mito de que a juventude não se interessa por política. Essas manifestações colocam esse mito por água abaixo. Percebe-se uma nova politização?

 Em certo sentido, os jovens hoje afirmam direitos individuais. Eles querem se realizar como pessoas, querem ter o seu emprego, querem poder organizar a sua vida alternativamente, desde o plano da sexualidade, do comportamento, como também economicamente. Há muitas iniciativas de criar pequenas empresas, de as pessoas se estabelecerem. Há um aspecto de afirmações individuais que não colide com a democracia. Exatamente por quererem se realizar, elas cobram do sistema que responda. Isso é interessante, pois faz conexão com o mundo real, o mundo da vida.


Esse mundo tem conexão com a política, pois as decisões que são tomadas na esfera política afetam a qualidade de vida das pessoas. Só que isso nem sempre acontece. Quando começa a haver uma desconexão muito grande, por exemplo, dos ¿partidos políticos com a população, a lógica passa a ser quase que estritamente a de chegar ao poder e permanecer no poder. É uma lógica de um grupo limitado que se mantém no poder sem conexão, sem falar com a população, sem ouvir os eleitores – veja que coisa estranha. Não há mais debate, nem discussão. Isso vai diminuindo a estrutura de oportunidades através das quais as pessoas podem participar.



Se além disso as pessoas estão querendo afirmar seus direitos individuais, dá em manifestação de rua. Há também os desvios, pois tem uma porção de gente que não possui emprego, não tem perspectiva de se ver integrado ao sistema, que pega carona e começa a quebrar bancos, queimar ônibus etc. É um desvio do ponto de vista do segmento central, mas, em última análise, eles estão passando a mensagem de que também querem participar. Infelizmente, isso se dá de maneira equivocada, fora das regras democráticas e do que a Constituição prevê.



Nem a esquerda nem a direita deram atenção suficiente à política de segurança?

 A esquerda e a centro-esquerda viram a polícia como um aparato envolvido na repressão e na manutenção da ordem durante o período da ditadura. É muito difícil de mexer, muito difícil de tocar e, desse ponto de vista, uma instituição que não teve proposições de políticas específicas para se democratizar. Polícia tem que existir sempre. Nós, as pessoas da sociedade civil, não temos como controlar os conflitos, os desrespeitos à lei que ocorrem na sociedade.



Mas, nas democracias, as polícias têm que ser democratizadas, significa que elas devem entender as regras de funcionamento da sociedade democrática e compreender como cabe à polícia respeitar esses direitos. Isso supõe uma preparação. A Polícia Militar de São Paulo tem feito coisas nessa direção, no Rio isso também está avançando com as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora].



A segunda observação que eu faço é fruto dos resultados de pesquisas feitas na USP, em que aparece a seguinte questão: olhando comparativamente os estados brasileiros, os governos, de direita ou esquerda, que resolveram colocar mais recursos na segurança e atender a alguns pontos específicos da política de segurança apresentam melhora, diminuem os roubos, assassinatos etc. A área de segurança está dependendo de mais recursos e da definição de políticas específicas. Policial tem que ganhar bem para você ter uma pessoa preparada, que passe por cursos e entenda as circunstâncias e as exigências de um policiamento que leve em conta os direitos humanos. Senão, ele tem um emprego na PM e vai arranjar um bico de segurança particular.




 

As pesquisas do marketing político não captaram essa insatisfação popular que desembocou nas manifestações de junho. O que você acha disso?

 As pesquisas que tenho conduzido na USP desde meados ¿dos anos 1980 e a pesquisa que fizemos junto com uma colega da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] em 2005 e 2006 mostraram um grau altíssimo de desconfiança das pessoas em relação às instituições, em particular ao Congresso Nacional e aos partidos políticos. E os livros Democracia e Confiança: Por Que os Cidadãos Desconfiam das Instituições Públicas? e A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia mostram exatamente isso que aconteceu.


Há um grau de insatisfação não na democracia como um valor ideal, mas com seu funcionamento, mostrado nas instituições. Mas essas pesquisas são feitas na universidade, com muito rigor e são diferentes das pesquisas feitas pelo marketing político, que ficam muito ligadas ao desejo dos partidos, dos políticos ou do governo federal. Com isso, a pesquisa é direcionada para responder o que o político quer ouvir. Esse tipo de pesquisa tem duas particularidades: primeiro é caríssima, o que encarece as campanhas eleitorais desnecessariamente. O Brasil tem as campanhas eleitorais mais caras do mundo.



O segundo aspecto é se a população apoia a apresentação dos candidatos e dos partidos pelo marketing político. Assim, desloca-se um elemento extremamente importante da comunicação política que é entender o que a população quer e transformar isso em itens do programa político. Se você inverte a relação, e vai buscar o que a população quer em função da imagem que o político quer projetar, você perde essa conexão que cabe aos partidos fazerem. Em última análise, os partidos políticos são uma intermediação para organizar e identificar uma parte da sociedade, definir temas, políticas e reivindicações para serem colocados em pauta no sistema político. Estamos vivendo o oposto, o partido está acionando desejos da população para garantir sua eleição ou reeleição.



Qual a grande diferença entre a democracia e os outros regimes políticos? Na democracia, você vai empoderar pessoas comuns, os eleitores. Para que eles escolham governos e tenham algum grau de controle sobre o que os governos fazem em seu nome. Mesmo admitindo que temos, em muitos lugares, crises na democracia representativa, nos países de democracias consolidadas, essa crise está sendo respondida com o aperfeiçoamento das instituições ou com a criação de novos mecanismos de consulta da população, como referendos, plebiscitos. Acho que esse é um dos problemas que estamos enfrentando. Temos um processo de envelhecimento dos partidos que surgiram na democratização. Qual a natureza desse envelhecimento? Acho que vem do fato de que os partidos perderam a dinâmica de criar e manter mecanismos de ouvir a população.



A agenda política, das discussões, terá como resultado muito dessas manifestações?

 Essa é uma grande dúvida. Vejo que, pelo lado dos líderes dos partidos, é surpreendente que não houve respostas. A única pessoa que estabeleceu uma ponte com os movimentos foi a Marina Silva. As tentativas da presidente Dilma de responder foram tiros n’água. Até agora a prioridade que o governo disse que daria à questão da mobilidade urbana não surtiu resultado. Pelo lado do establishment político mais tradicional, as respostas dadas serão as mesmas de outros períodos eleitorais, acredito. Onde pode haver alguma novidade é na oposição, que de alguma maneira também foi chacoalhada com essas manifestações, especialmente o PSDB e o PSB.


Se eles vão ser capazes tomar para si os temas que foram postos nas manifestações e estabelecer pontes com as pessoas que se manifestaram? Há risco de que esses temas não apareçam no debate das eleições de 2014. Se as pessoas não sentirem que suas reivindicações são levadas para dentro do sistema, isso pode gerar um desejo de recusa de participação, votos nulos, brancos. Uma forma de resolver isso seria os movimentos que ocorreram em julho serem capazes de identificar suas lideranças e se candidatarem, inclusive, para a construção de uma nova fase de política brasileira, com transparência, controle sobre a corrupção e debate público mais direto sobre as principais políticas públicas; afinal, é o que eles estavam dizendo em junho e julho.


“Se as pessoas não sentirem que suas reivindicações são levadas para dentro do sistema, isso pode gerar um desejo de recusa de participação, votos nulos, brancos”


“Esse mito da não participação da população brasileira... Acho que as manifestações desse ano estão na sequência de coisas que vinham acontecendo no Brasil desde os anos 1970”


“(...) os partidos políticos são uma intermediação para organizar e identificar uma parte da sociedade, definir temas, políticas e reivindicações para serem colocados em pauta no sistema político”


“Em muitos lugares, crises na democracia representativa estão sendo respondidas com o aperfeiçoamento das instituições ou com a criação de novos mecanismos de consulta da população, como referendos, plebiscitos”